domingo, 27 de dezembro de 2009

A árvore (a pedido da Jessica por ser época festiva)






O Aviso foi lançado em milhares de papelinhos brancos, espalhados por um vento de Dezembro que cumpria a função de uma brisa primaveril. Sobre os casacos e sobretudos nevou o desafio: “A maior árvore de Natal do mundo será construída. Decorem-na com dependências, sonhos e frustrações”.
No primeiro dia, a decoração era tão feia quanto óbvia – centenas de maços de tabaco, seringas e caixas de anti depressivos compunham os ramos superiores da árvore. Mas reconheço que a combinação tinha o seu encanto.
Ao terceiro dia, 24 pintores juntaram-se e entregaram os seus pincéis e paletas de cores. A árvore ganhou vida. Exprimia-se por cores, chorava e ria. Os que passavam por ela paravam e questionavam: “O que será que quer dizer?”
Uns dias depois, foi a vez de alguns poetas rasgarem as folhas dos seus cadernos para taparem os ramos despidos da árvore. A árvore começou a falar. Muitos correram para assistir a tal fenómeno, mas a visita durava pouco tempo, perante o som ensurdecedor de tantas palavras. Os que fugiam dela, com as mãos nos ouvidos, gritavam: “Ouvi a árvore falar muitas coisas, mas o que será que ela queria dizer?”
Nos dias que se seguiram, a peregrinação de decoradores foi contínua e os ramos encheram-se. As dependências abanavam ao vento e assobiavam cantos de sereia. Os sonhos acendiam-se e apagavam-se numa intermitência tão acelerada, que quem os via, questionava se os tinha visto mesmo iluminados. As frustrações assumiram a forma de cartas dirigidas a um homem de barbas brancas e vestes vermelhas, inventado por um refrigerante.
Na semana em que todos os comerciantes sorriem, a árvore estava tão cheia que quase tombava. Milhares de pessoas viviam à sua volta, olhando para ela quase sem se mexerem. No entanto, o olhar contemplativo que a imponência da obra deveria provocar, foi substituído por um outro, vazio e desesperado...
No dia 23, uma leve brisa transformada em vento de Inverno, chocou contra a árvore e um maço de tabaco caiu ao chão. Um homem de trinta anos com aspecto de cinquenta, começou a tremer no meio da multidão e numa convulsão contínua, correu para a árvore. Abriu o maço e a tremer acendeu um cigarro. Os outros viram o fumo branco e correram para a árvore como se fugissem de um incêndio. Em segundos, criou-se um cenário ainda mais deprimente do que as filas de caixa dos centros comerciais, nascidas na mesma altura... Velhinhas atropeladas, crianças a chorar, mães à procura dos filhos, pais esquecidos de que tinham filhos... Arrancavam decorações da árvore com a força que utilizariam para desmembrar alguém. Amealhavam dependências estranhas, coleccionavam frustrações alheias e pisavam sonhos que outros haviam sonhado.
Apesar do caos, todos abandonaram o lugar com um olhar brilhante e feliz. Muitos ainda falaram em usar a árvore para lenha, mas já não havia tempo, as lojas estavam prestes a fechar.
Às onze horas do dia 24 de Dezembro a árvore estava depenada. Nem uma “pinha” de frustrações; nem um emaranhado de dependências; nem uma fiada de sonhos intermitentes piscava...

Porém, a estrela permaneceu. Ninguém a retirou. A maioria acredita que foi por estar alta de mais, mas alguns questionam se quem lá a pôs, precisava realmente dela.

Filipe Lascasas

P.S. Aos amigos do Diário de Aveiro que até na noite de dia 24, decoram páginas com palavras.

Corações



O verdadeiro amor é um acidente, não a viagem programada que muitos tentam fazer. Faz corações mortos baterem e corações vivos pararem.

Chocaram um com o outro por acidente. Depois do choque, ele olhou-a profundamente e ela retorquiu. Apaixonaram-se.
Senti-me agoniado.
O primeiro dos cépticos, representado por S. Tomé num livro bastante lido, fala de alguém que toca umas cicatrizes e acredita num milagre. O momento vivido entre aqueles dois, destroçou o meu cepticismo e abriu as cicatrizes dos amores que vivi - sem milagres. Fez- me perceber que só para alguns há ressureições, aparições de amor à primeira, ou à vista desarmada.
Mais tarde vi-o aconchegá-la. Pressionou o seu coração e beijou-a, vezes sem conta.
O momento acabou quando chegaram os bombeiros para nos socorrer. Tiveram que o afastar à força da sua amada. Ela, ainda que rendida, parecia não responder às manobras de ressuscitação intercaladas com afectos, e beijos misturados com insuflações.. Enquanto me desencarceravam, vi-o entrar numa ambulância, inconsolável, partindo para uma guerra que não queria lutar e deixando no asfalto rastos de um sentimento a que muitos (mesmo eu) apenas se referem como ficção.
Perguntei-lhes como estava a minha namorada – que ainda jazia inerte junto ao carro que nos bateu. Reponderam-me que ela estava viva graças ao outro condutor – eu não havia sido o único a testemunhar o milagre entre os dois...


Se amor é como alguns livros (muito lidos) dizem ser, então é ressureição em estado puro. Mas faz viver a alma, não o corpo.

No hospital voltei vê-lo...
- Já soube que é sua namorada. Peço-vos perdão... Distraí-me com o GPS e não vos vi.... Como é que ela está?
Ela estava apaixonada, conhecia-a bem. No entanto, o seu coração não batia. Estava cheio de um amor que ansiava bombear mas não conseguia. O acidente havia-o rasgado em duas partes que não poderiam ser unidas.
Ele pediu-me para a ver e eu não o impedi. Ao olhá-los, percebi que era urgente uma cura.


O coração é apenas um órgão, sem mais nenhuma função ou particularidade que não a de bombear sangue. É, no entanto, o cumprimento rotineiro dessa função que origina tudo o resto. Tudo aquilo de que falamos e sentimos, desde que ele arranca até ao momento em que pára.


Tentei manter-me o mais afastado dela que podia, perante o olhar sofredor e atento do namorado. A calma com que ele agia perturbava-me. Esperava gritos, socos, manifestações genuínas de raiva e vingança. Afinal, o meu erro grosseiro de condução havia-o privado da companhia de um autêntico anjo.
Ela repousava, serena, quase esboçando um sorriso, quase feliz. Não me saía da cabeça o olhar que trocámos e quase, quase, ousava não recusar o sentimento confortante e egoísta de que o seu último pensamento acordado havia sido para mim.
Tentei manter-me afastado dela e quando já não parecia conseguir, ele tocou-me no ombro e deu-me um café...
- Ela precisa de um dador. A lista de espera para transplantes cardíacos é quase tão infindável quanto deprimente. Eu conheço alguém que nos pode ajudar. Vem comigo!
Entrei no carro e só passados uns quilómetros questionei quem seria tal dador disposto a dispensar um órgão tão singular. Depois pensei pior... Quem estaria em poder de tal órgão e de quem o haveria retirado? Mas não abri a boca, invadido pelo o sentimento egoísta e confortante de que a poderiamos salvar e que pelo menos um dos seus pensamentos seria para mim.
Quando acordei, estava amarrado e ele, mergulhado numa banheira cheia de gelo...
- Já liguei para a polícia a explicar tudo. Entrega esta carta e faz o meu coração chegar até ela.
Ela enterrou o seu corpo no dia 23 e eu mantive-me longe.
Passado um ano voltámos juntos, com o seu coração a bater dentro dela. Enterrámos, junto à sua campa, o coração rasgado em dois.
A ele bastava a metade que lhe pertencia.

Filipe Lascasas