quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Devia ser todos os dias...

Mas não é. Por isso - concentrado naquele que efectivamente existe - desejo que este Natal seja para todos os que por aqui passaram, um dia particularmente mais feliz que os anteriores e muito semelhante aos que virão.

Agradeço a 5 pelo postal original e motivador que me enviaram. Em troca, acedo como é óbvio, ao pedido de voltar a publicar aquilo que eles consideram ser a minha única história de Natal.




A Árvore


O Aviso foi lançado em milhares de papelinhos brancos, espalhados por um vento de Dezembro que cumpria a função de uma brisa primaveril. Sobre os casacos e sobretudos nevou o desafio: 


“A maior árvore de Natal do mundo será construída. Decorem-na com dependências, sonhos e frustrações”.


No primeiro dia, a decoração era tão feia quanto óbvia – centenas de maços de tabaco, seringas e caixas de anti depressivos compunham os ramos superiores da árvore. Mas reconheço que a combinação tinha o seu encanto.
Ao terceiro dia, 24 pintores juntaram-se e entregaram os seus pincéis e paletas de cores. A árvore ganhou vida. Exprimia-se por cores, chorava e ria. Os que passavam por ela paravam e questionavam: “O que será que quer dizer?”
Uns dias depois, foi a vez de alguns poetas rasgarem as folhas dos seus cadernos para taparem os ramos despidos da árvore. A árvore começou a falar. Muitos correram para assistir a tal fenómeno, mas a visita durava pouco tempo, perante o som ensurdecedor de tantas palavras. Os que fugiam dela, com as mãos nos ouvidos, gritavam: “Ouvi a árvore falar muitas coisas, mas o que será que ela queria dizer?”
Nos dias que se seguiram, a peregrinação de decoradores foi contínua e os ramos encheram-se. As dependências abanavam ao vento e assobiavam cantos de sereia. Os sonhos acendiam-se e apagavam-se numa intermitência tão acelerada, que quem os via, questionava se os tinha visto mesmo iluminados. As frustrações assumiram a forma de cartas dirigidas a um homem de barbas brancas e vestes vermelhas – inventado por um refrigerante. 
Na semana em que todos os comerciantes sorriem, a árvore estava tão cheia que quase tombava. Milhares de pessoas viviam à sua volta, olhando para ela quase sem se mexerem. No entanto, o olhar contemplativo que a imponência da obra deveria provocar, foi substituído por um outro, vazio e desesperado...
No dia 23, uma leve brisa transformada em vento de Inverno, chocou contra a árvore e um maço de tabaco caiu ao chão. Um homem de trinta anos com aspecto de cinquenta, começou a tremer no meio da multidão e numa convulsão contínua, correu para a árvore. Abriu o maço e a tremer, acendeu um cigarro. Os outros viram o fumo branco (tão poderoso em Roma) e correram para a árvore como se fugissem de um incêndio. Em segundos, criou-se um cenário ainda mais deprimente do que as filas de caixa dos centros comerciais, nascidas na mesma altura... Velhinhas atropeladas, crianças a chorar, mães à procura dos filhos, pais esquecidos de que tinham filhos... Arrancavam decorações da árvore com a força que utilizariam para desmembrar alguém. Amealhavam dependências estranhas, coleccionavam frustrações alheias e pisavam sonhos que outros haviam sonhado.
Apesar do caos, todos abandonaram o lugar com um olhar brilhante e feliz. Muitos ainda falaram em usar a árvore para lenha, mas já não havia tempo, as lojas estavam prestes a fechar.
Às onze horas do dia 24 de Dezembro a árvore estava depenada. Nem uma “pinha” de frustrações; nem um emaranhado de dependências; nem uma fiada de sonhos intermitentes piscava... 

Porém, a estrela permaneceu. Ninguém a retirou. A maioria acredita que foi por estar alta de mais, mas alguns questionam se quem lá a pôs, precisava realmente dela.

Filipe Lascasas

Para ouvir com: "Go Do" - Jónsi

domingo, 19 de dezembro de 2010

O Segredo


...e no postal do 56º aniversário vou escrever-lhes:

"Amor intemporal" é uma espécie de indiferença aos defeitos que carregas... E um pequeno palco -  montado pelos que te amam - onde apenas dançam  as virtudes que te tornam único.   

Saibas escutar, sorrir e agradecer as palmas.

Filipe Lascasas

domingo, 12 de dezembro de 2010

31 dias... anjos e demónios


Não acreditas em anjos. 
Existem  muitas coisas em que não acreditas por falta de procura, por falta de viagens. 
Se não acreditas em ti, poderás até viajar mas nada encontrarás. A não ser, talvez, anjos e demónios.

Fui visitar alguns e (talvez por se aproximar o natal) acederam contar-me histórias - recordações suas. 
Tirei uma foto a um. Não procurava baleias mas sim golfinhos. Ao contrário de mim, sabia o que procurava.

Glasser - Home



terça-feira, 30 de novembro de 2010

19 dias... O Pavilhão Chinês (Lx) é mesmo bonito!



- Não te vejo mochilas em redor mas o teu olhar parece-me de viajante...
- Essa foi a melhor coisa que me disseram num mês! Queres uma sandes?
- Aceito as sandes com a companhia. E então?
- Então?!?
- És um viajante?!
- Sou um viajante-falso... Ando a fazer pequenas viagens, em folgas, à procura de histórias, à procura de balei... de mim.

Se encontrares um viajante-verdadeiro – um que o é depois da idade em que o Cartão Jovem expira, que partilha sandes, crava cigarros e não gasta dinheiro em quartos de hotel – tira-lhe uma foto... Encontraste a mais solitária e egoísta das criaturas.

(Tirei-lhe uma foto).

Um viajante- falso não sabe para onde ir; um verdadeiro, não tem para onde voltar. Não tem amigos, pais, recordações de berço – aquelas que ficam de todas as vezes em que renasceste, numa só vida – esta.

Atestei o carro ontem – à meia-noite – e marquei um compromisso. Deixei-a à espera (ou talvez não) na Estação de Serviço de Oeiras.
À hora combinada, estava bem longe – no Pavilhão Chinês (pela primeira vez) – acompanhado de recordações (pessoas) que serão de berço.

Depois de seres (ou mesmo sempre tendo sido) viajante-falso, marcarás compromissos de viagem que na verdade, só cumpririas antes da data de expiração do Cartão Jovem (a antiga).
Quando se falha um compromisso, o adjectivo “egoísmo” é normalmente um dos adequados. Porém, se és um falso viajante, serás apenas egoísta se privares os que te amam da tua companhia. É para isso/esses que existem as férias.  

Hoje perdi histórias mas ganhei recordações.

Filipe Lascasas


Perdoa-me Anna Reinsoo... Norte é norte (venho de lá).



segunda-feira, 22 de novembro de 2010

11 dias...



Ainda não vi(mos) baleias a dançar. 
O melhor de qualquer viagem é fazerem-se novos amigos...

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Adeus...



Voltarei mas não vos sei precisar quando. Fui à procura de ver Baleias a dançar.
Prometo (e mesmo fora dos timmings esperados, nunca falhei uma promessa) que encontrarão um dia, mais histórias minhas. Aqui ou noutro lugar.

Se entretanto passarem por mim, chamem-me... Eu conto-vos uma história.

Para os que  são seguidores do Blog e por isso amigos (distantes ou próximos) haverá mais histórias, nos endereços de e-mail que me deixarem -> flascasas@gmail.com  (Não prometo tentar agradar-vos.)

Obrigado a todos os que deixaram comentários.

As histórias foram até agora dedicadas:


Àqueles que aguardam uma visita mensal e me dão uma cama improvisada (que na verdade é permanente). Àqueles que são génios poéticos e nunca desistiram de me deixar uma palavra mesmo quando (para testar a sua persistência literária) não lhes deixo nenhuma, nas suas libertações.
Àqueles - iguais aos anteriores - que me dão tempo (até para um foundant de chocolate) - O segredo são 11 minutos de cozedura!
Àqueles que choram em recepções de SPA e me forçam a escrever histórias com finais felizes.
Àqueles que insistem em gostar da "personagem" que lhes conta apenas a parte real das histórias.
Àqueles que transformam as histórias numa "matriz matemática" e calculam as fórmulas das suas "vulnerabilidades".
Àqueles - iguais aos anteriores - que são verdadeiros escritores, com mais talento e sensibilidade do que eu.
Àqueles que inventaram o verbo "Pedaçar" e pertencem a um mundo especial - Dica: o melhor. 
Àqueles que não deixam o trabalho misturar-se com um profundo sentimento de cumplicidade, carinho e amizade.


Àqueles por quem me apaixonei e aos que odiei mesmo não tendo amado.
A Lisboa - por me ter reinventado e por me  fazer esquecer a perda de um amigo (numa história que ainda não foi contada).
À PT e ao RT - que são os nomes que Lisboa devia ter, para (inevitavelmente) ser amada.
Ao Porto - pelas cicatrizes (incluindo de carne) e por (ainda) me ignorar.
A Aveiro.
Aos países que me acolheram e aos que me deram oportunidades de trabalho - para pagar multas, viagens de regresso, saídas da prisão e... excessos.
Ao J.F. e ao D.P. - que dão Paixão ao meu modo de sobrevivência.
A todos o que conhecem verdadeiramente os meus defeitos e insistem em amar-me.
Aos meus amigos - a família que decidimos ter (e que quase inclui todos os que foram referidos).
  
Aos meus pais - e consigo provar cientificamente - que fizeram tudo o que foi mencionado anteriormente.


Àqueles que me convenceram que 80 histórias podem ser apenas 40 e ainda assim, mais que suficientes para um livro.

As histórias foram dedicadas a vós mas vocês já as sabiam (viveram).

Filipe Lascasas

Florence and The Machine - "Cosmic Love"

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sala de Espera



Abri a mala para confirmar que tinha trazido mais de sete pijamas e o vento levantou no ar  trinta e três folhas, escritas numa antiga máquina de escrever. Corri uns metros atrás delas mas desisti, desprendendo-me de um sentimento de posse que se tornava cada vez mais relativo.
Nas folhas, voavam letras de uma vida preenchida de trabalho (relatórios criminais) e alguns desabafos – num diário que não visitava muitas vezes. Sentei-me e vi o meu passado voar, num espectáculo que preencheu o céu e me mostrou – de forma tão simples – o quão vulneráveis somos aos ventos da vida.
Quatro folhas pousaram à minha frente: um dos meus relatórios (sobre alguém que se fazia passar por médico - que nunca apanhámos) e três páginas do meu diário...


Folha nº1 (De um relatório – há quinze anos atrás)

A polícia concluiu não haver matéria para indiciação criminal e a Ordem dos Médicos – a mais interessada – prefere evitar possíveis embaraços. Disseram-me que se a imprensa ou a religião forem metidas ao barulho, estarei a atirar-me para um pesadelo institucional – ao  qual todos ousarão dar respostas perante a nossa impossibilidade de  responder a perguntas.
(Todos sabemos o que acontece, no mundo actual, a quem lança perguntas sem dar respostas, mesmo que erradas.)
Não temos suspeitos. As vítimas deste indivíduo não acusam qualquer tipo de drogas nas suas análises, além de cafeína e ácido acetil salicílico.
Todos relatam o mesmo: um médico de bata suja e  estetoscópio ao pescoço pergunta “como se sentem”. Após registar os sintomas, debruça-se na maca e da-lhes um abraço. Segura as suas mãos enquanto lhes dá o que agora sabemos ser uma aspirina. Depois, diz-lhes que vão morrer.

“A sua morte aproxima-se. Prepare-se para a abraçar.”

Pede-lhes cinco nomes e contactos das pessoas de quem mais sentem saudades. Promete – pela sua honra e experiência – aliviar-lhes o sofrimento.  
As salas de espera dos maiores hospitais de Lisboa tornaram-se caóticas, com pessoas vindas de todo o mundo, exigindo ver os seus entes queridos à espera da morte...
No entanto, o que torna tudo pior, são as consequentes reclamações de centenas de visitantes - exigindo indemnizações de viagens e tempo perdidos – perante a constatação de que os seus amigos e familiares não estão assim tão doentes e logo, não irão morrer (pelo menos nos próximos dias úteis).

Facto: os pacientes ficaram curados. Uns - mais psicologicamente voláteis - atribuem a sua cura ao abraço e à visão dos que mais amavam, à volta da sua maca. Outros, ao comprimido milagroso dado pelo falso médico.
Apesar de o caso estar arquivado, continuo, no meu tempo livre, a frequentar salas de espera em hospitais e clínicas. Ele, como que adivinhando os meus passos, nunca apareceu.

Folha nº2 (Do diário - há catorze anos atrás)

Atendi o telefone e do outro lado, um médico disse para não me preocupar. A Beatriz falou-me, a soluçar...

- Estava a correr no recreio da escola e caí, Papá.

Há já dois anos que ela não me chamava “Papá”. A mãe não atendia o telefone e por isso, o pai – eu – estava autorizado a  ir vê-la.
Foi na quarta-feira, faltavam dois dias para a visita oficial deliberada pelos tribunais.
Encontrei-a numa maca com o braço engessado. Disse-me que se portou bem na operação e não sentiu dores porque lhe deram um comprimido. Pediu-me que a abraçasse porque “o médico disse que tinha de o fazer”.

Folha nº3 (Do diário – há seis anos atrás)

A Beatriz telefonou-me, a soluçar. A mãe não tem telefone fixo para assuntos destes e ela precisava que o Papá – eu mesmo – fosse ter com ela, três dias antes da visita juridicamente autorizada.
Fui encontrá-la num banco de jardim, a chorar e a acariciar a cicatriz no braço - como sempre faz quando está preocupada e espera o pai vir salvá-la, num dia da semana.

- O João deixou-me porque gosta de outra.

Dei-lhe um abraço de uma hora e uma aspirina. Ela meteu-se no autocarro, duas horas depois, já sem dores.

Folha nº4 (Do diário – há um dia atrás)

Telefonei à Beatriz a soluçar. Dei um único número ao médico para ele marcar.

- Dizem-me que tenho de ser internado,Bia.

Ela empurrou a porta, trocou umas palavras baixinho com o meu médico de bata suja e começou a acariciar a sua cicatriz – uma antiga ferida que recordarei sempre como a marca da cicatrização com a minha filha de doze anos.


Ela chama-me. Chama-me “Papá” – só não o fez durante dois anos, há muito tempo atrás. Vou atirar esta e as outras quatro folhas ao vento. Vou ter com eles, todos eles.
Compreendo agora que não é preciso um curso de medicina para saber que as mais agonizantes doenças que padecemos, curam-se com um abraço, uma aspirina e a companhia dos que mais amamos.
Quando estas folhas pousarem à tua frente, se estiveres com ressaca de vida, toma uma aspirina e vai... Procura a companhia dos que mais amas e deixa que te abracem. Abraça também todos os que ainda poderão vir a amar-te.
Não desperdices o teu tempo na solidão, pois estarás numa sala de espera onde apenas morte virá, um dia, para te abraçar.

Filipe Lascasas

Para ouvir com: “Vaporous” - Elsiane

sábado, 23 de outubro de 2010

Razões para viver



Não interessam as razões... Há muito que queria morrer.
A vida é uma espiral descendente, onde a cada volta desaparecem a alegria, a novidade, a emoção, a aventura. A rotina é o ponto onde a espiral acaba.
O oncologista escandalizou-se com o sorriso que esbocei quando me disse que tinha um tumor alojado no cérebro... Consegui atraiçoar a espiral.
De repente, a sociedade tornava-se condescendente e simpática para comigo. Levantava-se para me dar lugar, sorria-me, oferecia-me tudo aquilo que me havia privado: dinheiro, tolerância, tempo.
Tentei reunir-me com todos os que me eram próximos mas estavam todos perdidos nas suas espirais. Depois, iniciei uma viagem sem regresso pelo mundo. Senti-me privilegiado, era alguém a quem tinha sido dada a oportunidade de procurar algo para o qual normalmente não se tem tempo: razões para viver. Iniciei, no entanto, a viagem com cinismo, concentrado em desfrutar em pleno da ausência de ansiedade que é fazer a mais tranquila das procuras – aquela em que se sabe, à partida, nada haver para encontrar.

Estava no meio do mar Adriático quando um marinheiro entrou pelo meu camarote a gritar:

- Venha ver isto!!

No início pensei estar a assistir a uma catástrofe natural. As imagens à minha frente fugiam a tudo o que a vida me habituara a tomar como realidade. Então, o capitão com a sua voz serena e bem real puxou-me e disse:

- Incrível como há quem consiga matar estas criaturas…

Eram baleias. Dançavam à tona da água. Não é metáfora, dançavam mesmo! Por momentos jurei ouvir Vivaldi, enquanto as suas barbatanas chapinhavam na água e os seus dorsos rebolavam, harmoniosamente, em sincronia. Não sei o que festejavam mas estavam felizes. Foi a coisa mais bela que assisti em toda a minha vida.
Enquanto jovem cientista utilizei muitas vezes a expressão “sinfonia do acaso” para descrever os fenómenos e as incríveis coincidências manifestadas na natureza… Naquele momento, percebi que não há coincidências. A vida é uma sinfonia, tocada baixinho. Todos participamos nela, mas só alguns a ouvem e dançam.
Um marinheiro foi buscar a flauta transversal que tinha no seu camarote e ao som de Vivaldi, baleias e humanos, todos dançámos.

À noite, na minha pequena cama, escrevi num bloco de notas:

“Razões para viver” por Filipe Lascasas:

1- Dançar como as  baleias ao som de Vivaldi.

No momento em que desembarquei, senti que a minha procura havia mudado. Não foi uma sensação boa... Não há pior momento na vida de um cientista que o testemunho de um fenómeno que contraria todas as suas teorias e convicções. Mesmo que não o digam, sentem-no como um castigo do universo pelo ofício de provar que a fé e os sonhos de muitos são falsos e infundados.
É nessa margem - onde a teoria e o facto terminam, para dar lugar à fé -  que a ciência se encolhe e molha os pés na religião.
Se além de factos e teorias, não temos também qualquer tipo de fé, somos a mais perdida das criaturas e não dançamos.

Também eu, nesse momento, senti o peso dos dias que me restavam…

Por que razão dançavam as baleias?

Por uma questão de fé continuei a viagem, acreditei que no tempo de vida que ainda tinha, encontraria uma resposta.
Quando cheguei a Paris, as dores de cabeça acentuaram-se. Passei a transportar uma prensa dentro do meu crânio. Todos os dias, com uma regularidade mecânica, apertava o meu cérebro. Estava a morrer.

Entrei na estação de metro de Champs Elisé e vi uma rapariga junto às escadas. Era linda. Cabelos lisos, pelo ombro, pele de porcelana e uns olhos enormes, verdes; tão límpidos que quase faziam acreditar que Deus comete os mesmos exageros de um pintor amador quando – orgulhoso de uma obra – não pára de a retocar. Estava com um rapaz, mas ainda assim, olhou para mim e lançou-me um sorriso.

A minha vida foi bonita. Parei de viver entre os vinte e três e os trinta e três anos mas hoje festejei a vida. Dancei com as baleias.

Por entre tubos e balões de soro e oxigénio abri um bloco de notas de escrevi:

“Razões para viver” por Filipe Lascasas:

1- Dançar como as baleias ao som de Vivaldi.
2- Apaixonarmo-nos.

Filipe Lascasas


A todos os que esperam o livro.

Au Revoir Simone – The Lucky One

sábado, 16 de outubro de 2010

O Tesouro veio à tona


Alexandre saiu da prisão com trinta e três anos e uma “missão”.
Afirmou, até ao dia da sua morte, ter tido uma revelação divina… Havia-lhe sido confiada, por “deus em pessoa”, a difícil tarefa de roubar o maior tesouro da Humanidade moderna.
Demorou dois anos a encontrar os cúmplices perfeitos e mais três a convencê-los. A vinte e dois de Agosto, havia reunido a melhor equipa de ladrões de sempre, todos filhos de deus.
Planearam com minúcia e requinte, o plano de assalto. A combinação para o cofre jazia a 665 metros de profundidade da base da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque. O tesouro, esse, havia sido guardado na cave de uma casa cheia de histórias negras, ironicamente conhecida por “Casa Branca”.
Viajaram de barco. Viram o sol desaparecer várias vezes no mar e falaram de como a Humanidade seria, após o tesouro estar destruído.
Dormiram duas horas após a chegada e preparam-se para o assalto.

- Que deus nos ajude e a Humanidade nos abençoe.

Pedro, o especialista em informática, usou um vírus tecnológico para destruir os sistemas de alarme. Contaminou os computadores, a internet e a televisão com imagens de pessoas a passearem em jardins, amigos a jogarem às cartas e conversas à luz das velas.
Luis, especialista militar, desarmou os guardas colocando cravos vermelhos nos canos das suas armas (uma técnica antiga mas sempre muito eficaz).
A tarefa mais difícil cabia a Alexandre – a abertura do cofre. Para não correr o risco de fragilizar ainda mais os alicerces da Estátua da Liberdade, propôs-se descobrir sozinho a combinação do cofre.
Ficou sentado durante sete minutos em frente à porta. Depois levantou-se, sorriu, revelou à fechadura o que realmente pensava sobre ela e abraçou-a num gesto fraterno e sincero.
(Ninguém se lembraria de tal combinação).
O cofre, desarmado, abriu-se e despejou lágrimas encerradas durante anos em paredes de aço. O tesouro estava à vista de todos e brilhava com a intensidade de mil milhões de almas.
 
Quando o assalto se tornou público, as pessoas pararam de se empurrar e saíram à rua, abandonando os seus empregos. Já os líderes das “grandes nações” uniram-se, para perseguirem pessoalmente os assaltantes.
Alexandre, Pedro e Luis fugiam de bicicleta por milhas de alcatrão e as pessoas, sorridentes, atiravam-lhes flores e davam as mãos, dificultando a tarefa dos perseguidores. O mundo moderno parou e o alcatrão foi coberto de pétalas.
Avistavam já o oceano quando Pedro caiu. Luís cometeu o erro de olhar para trás e caiu também. Alexandre pousou o tesouro mas foi incapaz de os puxar. Os líderes destaparam canhões em ouro e lançaram sobre eles milhares de barris de petróleo.
Com os ossos praticamente esmagados, Alexandre ergueu-se e viu os seus cúmplices prostrados em pétalas tingidas de negro.

- Rende-te, devolve-nos o tesouro e serás poupado!

Ignorando os avisos, abraçou o tesouro com todas as forças e saltou para o oceano. No segundo seguinte, vinte e oito balas correram na sua direcção e apenas uma lhe fugiu do peito, perdendo-se na atmosfera.
Enquanto descia às profundezas, esvaindo-se em sangue, deixou finalmente a preciosa Ganância desprender-se dos seus braços e viu um tumulto iniciar-se no mundo subaquático… Os peixes pequenos empurravam os seus semelhantes para a boca dos peixes grandes e os peixes grandes eram comidos por peixes maiores. Passado algum tempo, a água começou a borbulhar e a Ganância veio à tona, boiando por entre espinhas, sangue e milhares de peixes que morreram por comerem demais.
Recolheram-na com uma rede e devolveram-na ao sítio certo.

As pétalas apodreceram no alcatrão e as pessoas ficaram sisudas. Regressaram aos empurrões e fizeram filas de trânsito... Tudo voltou à normalidade.

Filipe Lascasas


Dead Can Dance – The Host Of Seraphim

domingo, 10 de outubro de 2010

Invalidez



- Abre o vidro por favor, prometo que não te faço mal.

Ainda olhei para a luz do semáforo, mas o vermelho estagnado obrigava-me a encará-la…

- Tenho fome, estou com frio mas apenas preciso de dinheiro para curar a ressaca.

Abri a carteira e dei-lhe todo o dinheiro que possuía. Ela agradeceu e o verde pousou o meu pé no acelerador.
Senti-me gozado. Horas antes, num almoço de negócios, divagava com uma convicção inabalável sobre o problema da mendicidade e da pobreza no mundo. “Parasitas” – foi a palavra que mais vezes usei. “Não querem trabalhar. Dão-se ao luxo da rejeição social e parasitam confortavelmente todos os que arduamente contribuem para a sociedade.”
Senti raiva e revolta, por isso voltei para trás. Tinha de exigir o meu dinheiro de volta.
Já não a encontrei nos semáforos. Abordei o primeiro parasita análogo que encontrei naquela zona e perguntei por ela.

- Olhos verdes, cabelo negro, pele suja, casaco vermelho de malha… e não, não te dou esmola!
- Ah! A inválida... Vá em frente. Encontra-a na primeira casa abandonada ao fundo da rua.
Entrei no antro e encontrei-a sentada, com uma seringa espetada no braço.

- Bem-vindo! Sente-te em casa! - Disse-me ela com um tom que assumi provocador.
- Vim aqui apenas para exigir o meu dinheiro de volta. Não entendo muito bem o que me levou a dar-lhe o dinheiro porque condeno pessoas da sua natureza mas agora exijo que mo devolva.
- Posso partilhar uma das doses, foi nisso que converti o dinheiro. A razão de me teres oferecido o dinheiro é simples… Por incrível que possa parecer és sensível à minha invalidez.
 “Invalidez”?! Assumi a palavra como o auge de toda a provocação iniciada nos semáforos. Preparava-me para manifestar também o auge da minha raiva sobre aquela criatura deplorável quando ela se antecipou…

- Não esse tipo de invalidez mais comum… Nasci com a incapacidade de mentir. Por isso, deixei de ter amigos depois da infância. Fui boa aluna na escola mas na universidade chumbei vários anos… No dia em que recebia uma bolsa de mérito, perguntaram-me o que achava do contributo dos professores para a minha aprendizagem e, inválida como sou, disse a verdade.
Anos depois, arranjei um mau emprego numa boa empresa. Fui honesta na entrevista mas apesar de tudo, tinha qualificações para lá trabalhar. A minha vida correu razoavelmente bem como operária e uns tempos depois, fui promovida para um lugar na administração da empresa e tudo mudou. A minha invalidez impossibilitava o desempenho de qualquer função de chefia.
Também estive quase para me casar... Mas deves imaginar o que aconteceu na altura de fazer votos que me exigiam como eternos.
Desde então vivo da caridade de pessoas como tu, sensíveis à verdade, dispostas a aceitá-la e a premiá-la.
Não me lembro se a deixei a falar sozinha. Meti-me no carro e voltei ao meu emprego. Durante todo o dia senti picadas atrás da nuca sempre que eu ou alguém mentia. À noite, quase com a nuca em ferida, fui à varanda procurar a cura para a insónia. A olhar o céu percebi que a nossa maior qualificação profissional e social é a capacidade de mentir ou, simplesmente, nunca dizer toda a verdade. O mundo tornara-me válido.

Procurei-a novamente. Levei-a a um café e pedi-lhe que apenas me ouvisse. Depois, despejei compulsivamente em cima da mesa trinta e dois anos de verdades escondidas.
A mesa caiu, ela chorou e eu gritei. As paredes do café começaram a tremer e o chão a rachar. Tudo o que estava em cima das mesas explodiu. As loiças, a comida e as garrafas saíram disparadas dos armários como se projectadas por canhões.
Todos os que lá estavam fugiram, cobertos de lixo e em pânico, enquanto um buraco, do tamanho do edifício, se abria até ao centro dos pecados da humanidade.
Enquanto caíamos, arranquei com todas as forças a minha máscara e a de todos os que comigo haviam participado no baile de máscaras burlesco e de aparências a que chamamos vida. 

Procurei-a, levei-a a um café, partilhei com ela a dose do dia anterior e fiz-lhe companhia, para vos contar a verdade.


Filipe Lascasas


Esta história – como a vida – é uma obra de ficção. Não sou inválido.



The Irrepressibles - The Tide 

quinta-feira, 30 de setembro de 2010

À procura de um toque


Neste mundo existem coisas muito raras ou difíceis de explicar. Mas existem. Vivemos sob um guarda-chuva existencial feito de leis da física, factos científicos e senso comum que nos protege de uma doença não letal mas incapacitante: a dúvida.

(...) Após três dias, na viagem de resposta à suas dúvidas, teve a sorte de viajar numa das já raras e românticas, carruagens com camarote. Quando entrou no único que lhe pareceu vazio, deparou-se com uma rapariga, encostada à janela, mas era já tarde para recuar. Não a olhou nos olhos – já há muito que o seu ego não o permitia. Ainda assim, reparou pelo reflexo da janela, que ela era bonita. Cabelos lisos, pelo ombro, pele de porcelana e uns olhos enormes, verdes; tão grandes, que quase faziam acreditar que Deus comete os mesmos exageros de um pintor amador quando - orgulhoso de uma obra - não pára de a retocar.
Por difícil que tenha sido, conseguiu durante a viagem não olhar para ela. No entanto, esse receio que ela mostrasse o habitual desprezo por um rosto e uma alma esteticamente desagradáveis, rapidamente se desvaneceu. Ela parecia não se mexer. Começou a questionar se ela respirava. Parecia mergulhada no mais fundo dos oceanos.
Mais tarde, e graças a um momentâneo jogo de sombras e raios luminosos que bombardearam a janela, pareceu-lhe ver os seus olhos banhados em lágrimas. Pareceu-lhe, por momentos, que ela vivia o mais horrível dos choros: o contido – aquele em que o coração, os olhos e a alma, cooperam no limite, para que se fechem as portas a um motim de lágrimas. Conseguiram, nem uma se soltou.
Depois veio um túnel, e ele deixou de ver o seu reflexo.

- Deve ser desgosto amoroso. Uma “boneca” destas deve ter a sua vida preenchida com casos sucessivos de aparentes paixões. Provavelmente rejeitaram-na e não estava habituada. Bem feita!

(A melhor cura para algo que não se quer querer ou não nos é permitido tocar, reside no ódio.)

Ao fim de uma hora de viagem conseguiu pensar noutra coisa.
Estação de Esmoriz – o comboio arrancou de novo. Ainda iniciava a aceleração quando travou de repente, provocando  um solavanco suficientemente forte para causar embaraço a quem estivesse na casa-de-banho. Foi também suficiente para que um livro pousado numa pequena prateleira, junto do assento onde ela viajava, se projectasse para o chão. Ele, por instinto, rapidamente baixou-se e pegou no livro. Mas não foi cuidadoso... Ao entregar-lhe o livro ela tocou de raspão com a mão no seu polegar.
As pupilas dele dilataram, o coração quase parou e a visão foi imediata: um miúdo numa cama de hospital, ligado por tubos a uma máquina. Viu um acidente de carro. Os olhos encheram-se de lágrimas, e o seu coração, olhos e alma, cooperaram no limite. Havia motim mas só uma se soltou.
Ele ficou assustado com a visão e aterrorizado com a sua natureza. Pela primeira vez, não visionava a felicidade, mas sim a amargura de alguém. Foi a primeira vez que o seu dom lhe transmitiu negrura.
De repente, as suas mãos começaram a tremer, o seu estômago apertou-se; agarrou com força um dos joelhos – para conter a tremura e a dor. 
- Obrigado. – Disse ela.
Ele baixou a cabeça e nada respondeu mas mesmo assim ela notou que ele estava perturbado. Levantou-se e foi à casa-de-banho; sentia as pernas desfalecerem, agarrou-se a tudo o que podia para não cair. Já na casa-de-banho, lavou a cara, olhou para o espelho e viu de novo o irmão da rapariga. Caiu no chão em convulsões, abriu a boca, sentiu um tubo de plástico entrar-lhe nas goelas e viu o irmão dela abrir os olhos. Respirava agora de uma forma ofegante. Sentia as mucosas do nariz e da boca cheias de um líquido estranho. Sentia um estranho sabor na boca e não demorou a vomitar soro fisiológico e várias anestesias...
Só dez minutos mais tarde é que teve uma primeira visão de felicidade. A princípio nem conseguiu distinguir a imagem com que se deparou – o alívio de estar de novo recomposto era tal, que limitou-se a ficar quieto e a recuperar a respiração. Já não sentia o tubo no esófago, apenas o tal sabor...
Momentos depois, com calma, inspirou fundo, fechou os olhos e sentiu um aroma campestre. Levantou a cabeça e viu a rapariga passear de mãos dadas com o irmão. Era incrivelmente linda. Tinha uma papoila na mão – que não iria mais murchar depois de ela lhe ter tocado. O irmão já estava bem.
Ali ficou, sentado numa retrete, envolvido na melodia ensurdecedora dos carris, com uma papoila na mão. Levantou-se, limpou a casa-de-banho e entrou de novo no camarote. Mas não foi cuidadoso... Abriu a porta depressa de mais e a dona da papoila não teve tempo de disfarçar que tinha estado a chorar. Mal se sentou, ela levantou-se embaraçada e foi ao mesmo local onde ele esteve aparentemente hospitalizado.
Ele não desperdiçou o momento de solidão nem conteve o impulso de colocar a papoila no meio do seu livro (que afinal era um diário). Cometeu ainda a indiscrição grosseira, de pegar numa caneta e escrever no diário da moça, por baixo da papoila:

O teu irmão vai ficar bem, prometo.

Depois abandonou a carruagem, antes de ela chegar. Gostou do aspecto da estação e estava na altura de sair.
Ao mesmo tempo, centenas de outros como ele rumavam para a India, evitando tocar em quem quer fosse, à procura das mesmas respostas.
Para esses, um toque é suficiente para absorver toda a tristeza, medo e desespero que outros carregam. Para os outros, um toque deles seria tudo o que é preciso mas dificilmente os encontrarão, no seu mundo de empurrões.


Filipe Lascasas



DeVotchKa – How It Ends


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A tua Alma é uma obra de arte... Porque não a pintas?



Não percebia nada de arte e continuo a não perceber. Olho para um quadro ou uma escultura e ainda não sei dizer qual a técnica utilizada na concepção ou o valor de mercado antes e depois do artista morrer. Raramente sei como se chama o artista e, quando sei, é porque a assinatura é legível. Não sei distinguir quando pago uma exorbitância ou uma bagatela pelo preço do bilhete de uma exposição de pintura. Comprava quadros porque tinha dinheiro, porque os meus amigos diziam que era um bom investimento, um item obrigatório para uma casa e uma pessoa como eu (seja lá o que isso quer dizer...)
Acordava de manhã e nas muitas divisões da minha casa, era perseguido por olhares de pessoas que não conheci, paisagens que nunca vi, formas, cores e pinceladas que (por muito que me esforçasse) apenas me davam a sensação que tinha comprado os quadros antes de eles serem acabados. Depois da minha higiene pessoal e da escolha do fato e da gravata mais adequada, metia-me no carro com mais cilindrada e luxo no mercado, aconselhado pelos mesmos amigos  – por ser o veículo que melhor definia a minha personalidade. (Seja lá o que isso quer dizer, garanto-vos que a minha personalidade sai bem cara.)
Quando chegava à minha empresa e subia ao escritório, era perseguido por mais caras, mais paisagens, mais formas...
Um dia fui interpelado por um sujeito que havia bloqueado a entrada que dava acesso à  minha empresa. Tinha espalhadas no passeio montes de telas pintadas com aguarelas.

- Não quer comprar um dos meus quadros?
- Não obrigado!
- Mas porquê? Não vê nenhum que lhe diga alguma coisa?
- Isso não se pode considerar arte!
- E se fosse você o autor dos quadros, comprava?

Com essa introdução o estranho iniciou o meu primeiro negócio dessa manhã... Propôs que passasse por lá todos os dias e desse uma só pincelada, com a cor e a forma que melhor definissem o meu estado de espírito nesse dia ou no anterior.

- Quando a tela ficar completa, se gostar do seu quadro, compra-o juntamente com mais dez meus. Caso contrário, passo a vender quadros noutro passeio.

Achei um bom negócio – o mais económico dos que celebraria nesse dia – e aceitei.
Durante duas semanas, a espiral azul significou a minha infância, a recta cinzenta a discussão com a minha mãe, o rectângulo amarelo os três dias de férias na praia, o circulo vermelho interrompido o meu namoro, a mancha preta – destoada no centro com duas gotas salgadas – a morte do meu tio.
Nenhuma técnica, nenhum estilo. Apenas eu e um  pincel que mergulhava na minha alma e escorria a cor em que ela estava vestida nesse dia. Depois aterrava levemente na tela, pegava a alma pela mão e dançava com ela... Uma vezes valsa outras vezes tango.
Passadas três semanas, com o pincel mergulhado em verde-esperança, pousei-o numa ponta da tela e acabei na outra. Mas a tela era curta demais para uma diagonal pintada nesse verde... Uma diagonal com essa cor só é grande o suficiente quando não parece um ponto. Por isso, peguei num balde cheio de verde e continuei a recta, pelas paredes do sitio onde trabalhava, pelas caras dos que se pintavam orgulhosamente de cinzento e corações daqueles a quem tinha sido roubada essa cor.
Pelo caminho, sujei um Monet e disso arrependo-me. Não me arrependo porém, de ter despejado o resto do balde no dono da empresa, ensopando-o o suficiente para que todos pudessem mergulhar nele os seus pincéis e pintarem pequenas estrelas da cor que ele mais ofuscava.
Arrumei as minhas coisas enquanto troquei (pela primeira vez em cinco anos) algumas palavras com o segurança da empresa – que descobri ser admirador e um bom conhecedor de arte. Ofereci-lhe um caixote cheio de quadros do meu escritório e em troca, recebi um sorriso – pintado com muitas cores.
Quando cheguei cá em baixo, comprei o meu quadro e mais dez, com medo que alguém passasse naquele passeio e descobrisse tudo sobre a minha vida. Depois sentei-me no passeio e perguntei ao pintor se ele não receava expor-se. Riu-se e confessou que não vendia as telas onde se pintava.
Vendi o meu carro pois a cor não definia qualquer estado de espírito que eu pudesse ter. Ofereci, criteriosamente, os quadros antigos que possuía a alguns amigos que os mereciam e, por fim, mudei de amigos – na   forma e nas cores... Afinal, são poucas as que não destoam com tempo e são precisas apenas algumas para originar todas as outras.

Continuo a pintar...

Mas os meus quadros não estão à venda.


Filipe Lascasas
                                  

Ao Arnaud  (túnel de metro de Montmartre - Paris)


The Irrepressibles - In This Shirt     

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Corre!


Era uma vez uma floresta encantada. Nela viviam todos os seres do mundo, ocupados nas suas vidas, a rir, a chorar, a fugir, a viver, a morrer…
Sim, a morte estava presente. O sofrimento também. Era uma floresta encantada não por tudo ser perfeito mas por ser real, por ser uma floresta da vida, onde a harmonia habita a uns metros do caos, a tristeza coabita com a alegria e por tudo de bom e de mau acontecer em função de um equilíbrio maior, superior a qualquer vontade…
Uma leoa caça uma mãe veado e alimenta os seus filhotes leões, um bebé veado chora a perda da sua mãe, uma flor nasce, uma flor morre, um filhote de coruja cai do ninho e morre na queda, um golfinho dá à luz, uma estrela nasce, outra cai e enquanto tudo isto acontece, os pássaros cantam, as hienas riem, os lobos uivam, uma árvore chora e a floresta vive… Plena de encanto.
Era uma vez um menino e uma menina que percorriam essa floresta. Carregavam enorme sacos às costas, cheios de sonhos enterrados, mágoas mal arrumadas, lágrimas a baloiçar e sorrisos que flutuavam à tona. Mas o que realmente enchia os seus sacos era o Passado. O peso do “Pretérito Perfeito” havia curvado as suas costas, obrigando-os a caminhar lentamente, com olhos postos no chão, fora do ritmo dos sonhos que jaziam no fundo dos sacos. De vez em quando revoltavam-se. Pousavam os sacos a rir e a chorar ao mesmo tempo, despejavam com fúria os verbos que mais lhes pesavam… “Chorei”, “Sofri”, “Perdi”, “Lamentei”, “Traí”,“Arrependi-me”, Menti, “Falhei”, “Desisti”. Esvaziavam o saco, enterravam os verbos, levantavam as costas e caminhavam, mas os verbos desenterravam-se por ordem cronológica e corriam atrás deles, como predadores de uma vítima que olha o horizonte e não encontra razões para fugir. Ao fim de uns minutos já estavam curvados de novo, a chorar e a rir ao mesmo tempo, com o peso de todos os anos que haviam vivido.
Num dia em que os pássaros cantavam, as hienas riam, os lobos uivavam e uma árvore chorava, chocaram um contra o outro e caíram, largando os sacos. De olhos postos um no noutro tentaram apanhar tudo do chão. Molharam-se nas lágrimas um do outro, devolveram sonhos que não lhes pertenciam, trocaram risos e soletraram os verbos que, um a um, voltavam sozinhos para os sacos.

- Deixa-me ajudar a carregar o teu saco! – Disse ele.
- És muito frágil, não conseguirás carregar o peso dos meus verbos!

Um filhote de coruja caiu do ninho e ele desviou-lhe a atenção. Um golfinho deu à luz e ela explicou-lhe porquê. Uma flor nasceu e ele ofereceu-lha. Uma estrela caiu e ambos fizeram desejos.
Encurvados e de olhos postos no chão caminharam, de mãos dadas, para não se perderem.

- Estamos numa floresta encantada, não achas que algo está para acontecer? – Perguntou ela.
 - Sim, definitivamente, algo está para acontecer… Estamos a chegar a uma ponte, um novo ano espera-nos na outra margem.
- Mais verbos? Verbos no Futuro?
- Sim. – Respondeu ele num suspiro.

O som da sua resposta atravessou a floresta e foi-lhe devolvido. Parou de caminhar, olhou para ela e disse baixinho:

- Vamos pousar os sacos e deixá-los nesta margem. Traz só os sonhos, para termos alguma coisa para comer.

Ela disse-lhe que sim com o olhar e ambos pousaram os sacos, muito devagar. Caminharam alguns metros e ela olhou para trás…

- O Passado soltou-se. Vai apanhar-nos!

Ele virou-se ,olhou o Pretérito Perfeito (ironicamente cheio de imperfeições) e disse-lhe:

- Já percebi que não adianta fugir... Vais sempre apanhar-nos. No entanto, não mais aceito carregar-te. Proíbo-te de nos barrares o caminho.

O Passado rugiu e atacou-os. Ele deu-lhe a mão e gritou:

- Corre!

Um veado que fugia parou e a leoa também. Os pássaros sustiveram os seus cantos, as hienas choraram, os lobos ganiram e uma árvore sorriu. Todos ficaram inertes a assistir à fuga dos dois. Eles correram pelas suas vidas, com os olhos fixos no horizonte, a rir e a chorar ao mesmo tempo. Por entre tropeções, quedas, carinhos e incentivos mútuos, lá atravessaram a ponte. Quando chegaram à outra margem ela deu-lhe um beijo na face e disse:

- Feliz Ano Novo!

Ele preparava-se para brindar a verbos no Futuro quando um som arrepiante o fez perceber que o Passado tentava atravessar a ponte…

- Os outros verbos vêm aí!
- Então corre... Corre!

Filipe Lascasas

À inventora (e pronunciadoras) do verbo  "Pedaçar" -  acto de juntar por meio de cola humana, partículas de corações e almas. (Um verbo ainda mais bonito quando pronunciado no Futuro)




Leonard Cohen - Waiting_For_the_Miracle

sábado, 4 de setembro de 2010

Silêncio



Uns anos mais tarde, a verdade quebrou o silêncio.

Alguns dizem que era um super-herói e que os heróis são verdadeiros… O seu super-poder era ouvir. Não ouvia mais do que um humano dito normal, mas conseguia prestar atenção a todos os sons. Todos.

Aquilo que identificamos como “silêncio” é um conceito falso, denunciador da incapacidade generalizada de um humano prestar atenção aos barulhos que não percebe. A própria vida é uma coisa barulhenta; começamos a fazer barulho mal nascemos, num planeta ensurdecedor... Rapidamente deixámos de ouvir.

O primeiro passo lunar gerou um pequeno caos sonoro na galáxia e apenas ele o ouviu… Era um super-herói.
Uns anos depois, quando tentava aproveitar um minuto de menos barulho para tentar adormecer, ouviu um pequeno coração gritar a milhas de distância.

Os corações falam baixinho, mas gritam quando sentem a mão fria da morte amordaçá-los.

Levantou-se da cama de cartão que a humanidade lhe entregara (por ouvir demais) e correu para um contentor do lixo. Encontrou o bebé quase a desistir de fazer barulho. Tomou-o nos braços e correu para uma pequena fogueira na viela, alimentada por uma cama de cartão já sem dono. Enrolou o seu corpo no do menino e aguardou que o seu coração voltasse a falar baixinho.
O sol nasceu quando o bebé acordou. Caminharam pelas ruas durante horas, pedindo esmola e comida a quem passava, mas ninguém os ouviu – concentrados que estavam nos pequenos barulhos que percebiam. Apenas dois ou três, mais distraídos, lhe tocaram no ombro, para perguntar com um tom acusador:

- O que fazes com um bebé, vagabundo?

Fugiu da multidão e levou o bebé a passear pelos subúrbios menos barulhentos da cidade. Roubou a tigela de leite de um gato persa, pousada numa varanda de mármore e,  mais à frente, apoderou-se da ração de carne de um cão com mais vacinas do que ele… O bebé sorriu por fim, saciado, com gotas de leite a escorrerem-lhe do queixo. Ele também.
Quando a noite caiu, elevou o bebé nos braços e disse-lhe:

-Vês aquela bola brilhante no céu? Já lá fizeram barulho!

No dia seguinte choveu e ninguém cometeu a desumanidade de alimentar um animal cá fora. Consciente do caminho a percorrer para encontrar comida quando não há sol, embrulhou o bebé numa manta e pousou-o debaixo de uma escada.

- Espera por mim aqui bebé, não te destapes… Vou procurar comida!

Disputava com um cão sem vacinas, um pedaço de carne enlameada, quando ouviu novamente os gritos do coração do bebé, do outro lado da cidade. Correu para ele à velocidade de um super-herói, mas chegou tarde. O coração deixara de fazer barulho.   
Prostrou-se no meio de uma avenida com o bebé nos braços, a suplicar por ajuda, mas ninguém o ouviu… Havia demasiado barulho.
A viela estava quase a adormecer quando as sirenes de um carro a fizeram acordar.
O herói - já rouco - ainda gritava por ajuda, mas nem nessa altura o ouviram…

- Encontrámos a criança e o suspeito.

Aquilo que identificamos como “justiça” é um conceito falso, denunciador da incapacidade generalizada de prestar atenção à verdade que não percebemos. Ignora os “justos” e define-se na procura de “culpados”- para que ninguém assuma que o conceito é tão falso e vago como o silêncio…

- Confessa que matou o bebé?
- Confesso que não consegui mantê-lo vivo.

O júri não sabia ouvir e declarou-o culpado. Fizeram justiça.
À saída do tribunal, alguém muito barulhento rompeu um cordão policial e cravou-lhe uma faca no coração…

-Morre assassino!

Prostrado e com o olhar fixo na primeira pegada lunar, ouviu o seu coração gritar sete vezes.
Depois...

Veio o silêncio.

Uns anos mais tarde, a verdade quebrou o silêncio.



Filipe Lascasas



Paul Simon & Garfunkel – The Sound of Silence

sábado, 21 de agosto de 2010

Filhos de um deus Maior



Cometeu o maior dos pecados mas viveu. Viveu muito bem.
Um dia porém, perante a visão de uma morte antecipada, tremeu. Quis ser perdoado, quis a sua redenção.
Descobriu – passados uns anos de intensa procura no mercado – que a Redenção tinha um preço mas não estava à venda. O melhor que conseguiu foi um orçamento duvidoso, impresso em letras douradas, lá para os lados de Roma.
Enviou e-mail’s a Maomé, Buda, Jeová, Mórmon, Alá, Jesus e muitos outros, mas nenhum lhe respondeu. Desesperado, pôs um anúncio no jornal:

“Ofereço uma fortuna a quem me vender a Redenção”

Passado um dia, encontrou uma única carta na caixa de correio que dizia:

“Entrega o que tens de mais precioso.”

A carta não tinha remetente e a mensagem tornava-se assim clara…
Saiu de casa e entregou as chaves dos seus carros às primeiras pessoas que lhe apareceram na rua… Durante os meses que se seguiram, a sua vida rodou em torno do complexo processo logístico de se livrar de todas as posses.
Quando entregou as chaves do condomínio onde viva (sozinho) a uma instituição de deficientes profundos, deu o seu plano por terminado. Sentia-se mais vivo do que nunca mas não redimido. Caminhou até à praia e esperou. Esperou pela Redenção.

A Redenção não chegou.

Ao fim de três meses, sem dinheiro, de roupas sujas e com fome, decidiu voltar à sua antiga casa que na realidade, eram várias, ligadas por corredores…

- Por favor deixem-me ficar aqui. Não tenho para onde ir. Preciso apenas de uma cama e comida.
- Tudo isto pertence-lhe, claro que pode ficar. No entanto, se quiser comer vai ter de trabalhar como os outros… Tome um banho e descanse. Começa amanhã.

No dia seguinte, conheceu ao pequeno-almoço os voluntários com que iria trabalhar. Dois meninos, com um olhar tão assustado como o dele mas muito mais brilhante…
- Eu sou o Filipe e ele é o Luís… Como te chamas?
Ele disse o seu nome e perguntou-lhes a idade.

- Eu tenho dezassete anos e ele tem quinze. Eu quero ser escritor, ele quer ser engenheiro. E tu?
- Eu quero ser perdoado.
- Nós também.

Os gritos fantasmagóricos e aleatórios, disparados ao silêncio da noite em que chegámos, mantiveram-nos acordados e alimentaram a nossa imaginação – uma das melhores amigas da insónia. No entanto, nada nas nossas vidas nos havia preparado para o que vimos depois do pequeno-almoço...

Para nós, um “deficiente” era a imagem de um miúdo com o síndrome de Down a pedir donativos de uma forma muito enternecedora, nos intervalos comerciais da televisão. Naquela sala, nenhum miúdo pedia o que quer que fosse. Naquele sítio, as deficiências eram tal e qual o que anunciavam – profundas... Braços nascidos fora do sítio, cabeças de tamanhos impossíveis, orelhas ausentes e outras partes tapadas com lençóis – a esconder o que nem a imaginação, na pior insónia, poderia vislumbrar: a existência de vida no improvável. 
Limitavam-se a permanecer onde os deixavam, nas suas cadeiras de rodas. Babavam-se e de vez em quando, gemiam.

As funcionárias ignoraram-nos durante a primeira meia hora, trocando risinhos de escárnio e fazendo analogias mórbidas entre a nossa palidez e os sanitários onde lhes davam banho. Depois mandaram-nos trocar a roupa das camas.
Quando embrulhámos o último lençol sujo, chamaram-nos para o pé delas. Os miúdos estavam em “tronco nu”, com pequenos sacos presos à barriga – onde caíam as fezes. Quando o Luís trocou o segundo saco perdeu a frieza e vomitou. Eu chorei o tempo todo, baixinho. Já ele, permaneceu calado e fez tudo o que lhe mandaram.

I

Ao fim de treze dias, havíamos conquistado a mesma frieza das funcionárias. O segredo era a rotina: acordar, tomar banho, comer o pequeno-almoço, ir trabalhar à hora de exacta, lavar as mãos todas as vezes em que nos distraíamos a dobrar um lençol, tomar banho para lavar a comida cuspida e pendurada no cabelo, almoçar, voltar ao trabalho, deitá-los com a medicação, jantar à hora do lanche, ir para a cama à hora do jantar, adormecer a tentar reconhecer os nomes por trás dos gritos, dormir.
Ele foi o primeiro a quebrar a rotina. Começou a olhar intensamente para os olhos dos miúdos e a falar com eles. Na hora do nosso “banho da comida”  e do almoço, continuava a conversar com eles.
Começou a ser habitual ver imensas caras novas e pálidas, logo pela manhã, com olhos que não chegaram a adormecer, a tentar visualizar o que a imaginação projectava dos gritos na noite e de um sítio que não conheciam. Entrou na rotina fazer a contagem dos resistentes, das caras que se iriam repetir no dia seguinte, das malas feitas e à espera, na recepção, durante a tarde. Tornou-se comum ver poucas caras repetidas.
Havia mais alguns, mas naquele Verão, as caras que permaneceram, dia após dia,  chamavam-se Maurício e Alex. Não trabalhavam na nossa casa mas numa mais à frente. Traziam guitarras e treze dias após chegarem, conseguiram criar a rotina de as tocar na nossa varanda.
Passado um mês, entrámos todos numa nova fase. Uma a que (quase) nenhuma funcionária conseguia chegar – eternamente perdidas que estavam nas suas rotinas, nos turnos de meio dia e no mundo ao qual voltavam – lá fora. Passado um mês, sem televisão (e tudo o resto que entretanto surgiu – como aqueles aparelhos que não mais nos fariam ter enfiar um cartão de plástico numa cabine telefónica), vivíamos num estado diferente... A rotina desapareceu, ou, pelo menos, deixou de ser uma daquelas conscientes – que criámos quando viajámos para longe. Deixámos de viver num hotel e tornámo-nos residentes. Voltámos a viver.

Algumas coisas tinham mudado. Uma delas era a forma como passámos a conversar com os residentes mais antigos da nossa nova casa. Já não me cuspiam a comida...
O Emiliano, o “Cowboy” e o Zé Maria, indicavam-me com os olhos, o lado por onde queriam que lhes desse a comida. O Rolando – que nascera sem olhos – apertava-me a mão, sempre que havia acabado de mastigar e tinha espaço (ou vontade) para mais uma colherada...
Muita coisa havia mudado. A principal era que nos havia sido concedido o dom de ver anjos e almas através de olhares.

Um cirurgião disse-me um dia – como estímulo para um bom ambiente na mesa – nunca ter encontrado uma só alma na ponta do seu bisturi. Eu calei-me, deixei-o gozar o momento e ri-me (por dentro) porque durante uns dias, em Agosto de 1996,  recebi o diploma dessa proeza. O diploma de reconhecer a existência de alma num corpo, por mais desfigurado ou profundamente improvável que fosse.

Desde que entravámos nas casas, até ao momento em que os deitávamos, mantínhamos conversas intermináveis com olhares. Olhares que riam de piadas, brilhavam quando entrávamos na sala, mostravam preocupação e arrependimento quando um espasmo muscular projectava um murro nos nossos queixos ou entornava a sopa.

Calei-me sempre e ainda rio, por dentro, para não estragar o bom ambiente de um jantar.

II

O Director do centro era um padre salazarista, mais velho que o próprio salazar e que (como ele) se achava Director do mundo.
Às cinco da tarde, depois dos comprimidos e do banho tomados, íamos com todos os miúdos para a capela do Centro, ouvir a missa. Era uma rotina que ele impunha.
Por mais complexo que fosse o processo de levar e acomodar vinte mancos e quarenta cadeiras de rodas numa sala demasiado pequena – cheia  de cruzes e bancos de igreja feitos para pessoas com os membros em “sítios normais” – a  missa tinha de começar às cinco em ponto. Esse foi o único processo que as funcionárias nos transmitiram sem escárnio e com detalhe. Era o único em que não havia lugar à surpresa, à falha, ao imprevisto.
No primeiro dia, ouvi a missa com atenção. No segundo, ouvi a missa com espírito crítico. Nos treze dias seguintes, deixei de a ouvir e passei a tentar fotografar com a memória tudo o que acontecia. Procurava fotografar o cenário surrealista de um pobre velho proclamando em tom ditador e sempre apoteótico (quaisquer que fossem as escrituras), leis e ameaças – para uma sala desinteressada, alheia a tudo. Ria-me por dentro em todos os parágrafos – especialmente profundos – que eram seguidos de um gemido ou de um grito.

Passados apenas treze dias, já quase jurava que os gemidos e os gritos tinham um tom e um “timming” certeiros,  diferentes do habitual. Quase jurava que os miúdos gozavam com ele e comecei a acreditar que a humanidade seria bem melhor se todos gemessemos com escârnio das palavras proferidas por qualquer ditador no mundo.

Nas missas que se seguiram, rimos (muitas vezes por fora) e gemêmos - em escárnio - de todos os “pedaços de carne e osso” que a dado momento nas suas vidas, se acham dignos de representar deus na terra.
O velho não achava piada e incluiu – na sua missão apostólica – a tarefa de se livrar de nós. Colocou-nos todos os dias numa casa (que achava) ainda pior, com mais desfigurações, mais gritos, mais espasmos em forma de socos e cuspidelas.
Pouco a pouco, percorremos todas as casas, cada vez mais próximos daquela de onde vinham os gritos à noite. 

III

Ao fim de um mês, já nada na cerimónia tinha piada... Levávamos Deus a mancar e em cadeiras de rodas para uma sala e durante uma hora, obrigávamo-Lo a ouvir alguém falar de Si, sem direito a resposta. Durante uma hora, o padre falava do seu deus e a plateia era um outro – o verdadeiro.
Após as missas, levávamos os miúdos em grupos, de volta aos quartos. O padre retirava-se entretanto, para ir jantar ao santuário com os seus colegas de trabalho.
Sei que foi ideia dele mas não sei precisar o dia em que o fizemos pela primeira vez...
Íamos buscar o último grupo de miúdos que nos esperava na capela e ele veio ter connosco, em passo acelerado...

- Já falei com a funcionária. Peguem nos miúdos e sigam-me.

Assim fizemos. Quando passávamos junto à porta de emergência de um dos corredores que davam para a lavandaria, ele parou junto a uma porta de emergência, digitou o código do alarme (que ainda era o dele) e abriu completamente as portas – para que as cadeiras pudessem passar.
A porta dava para um pequeno terraço com vista para os vales. Quase os sobrevoava, como se fosse uma plataforma voadora que ganhava asas a cada passo que dávamos.
Sem combinar, sem trocar uma palavra, alinhámos os miúdos de frente para o vale e sentámo-nos ao lado deles.
Ao fim de quarenta e cinco minutos, a funcionária cúmplice abriu a porta e gritou:

- Está na hora!

Virámos as cadeiras e fomos pô-los a dormir, certos que a conquista da cumplicidade das funcionárias – que fariam os turnos dos dias seguintes – era um obstáculo fácil de transpor. E era. Qualquer uma delas já tinha presenciado o olhar de um miúdo quando, por alguma razão – a visita de um parente talvez – lhe era dada a oportunidade de ver o sol, de apanhar vento na cara.
Não sei precisar o dia em que os levámos lá fora pela primeira vez. Sei que foi ideia dele e que – uma a uma – conquistou a cumplicidade das funcionárias. Todos os dias, após a missa, levávamos os miúdos a ver o sol e a sentirem o vento na cara.
A nossa saída diária para o terraço assumiu contornos de uma cerimónia religiosa... Depois de alinharmos as cadeiras e nos sentarmos, todos permaneciam em silêncio absoluto. Durante quarenta e cinco minutos, independentemente dos miúdos que levávamos, não se ouvia um gemido, um osso estalar, um bocejo. Durante esse espaço no tempo, éramos um só, a falar finalmente com o nosso Deus. Éramos donos solitários e distantes do santuário de Fátima, em conversa com deuses que até a Virgem desconhecia.
O terraço era o verdadeiro santuário, e – queira Miguel Ângelo perdoar-me – a mais bonita capela alguma vez construída, onde a cúpula era realmente o céu e as nuvens eram realmente nuvens.
Ao fim de quarenta e cinco minutos, uma das funcionárias abria a porta e gritáva-nos para voltar – como sinos, no fim da missa de domingo.
Sem que ela nos visse, endireitávamos a cabeça e limpávamos a baba que nos escorria para o lado inclinado. Às vezes, se olhasse só para os miúdos, era difícil endireitar a cabeça imediatamente. Por isso, fixávamos o olhar na funcionária, concentrávamo-nos na sua postura – como referência daquela que se devia ter lá fora, no mundo “dos normais”.
A verdade, é que cerimónia após cerimónia, começámos a ficar menos competentes e rápidos a recuperar a postura, a limpar a baba. Para ele, isso estava a tornar-se tão difícil como para nós. No entanto, como líder, de olhos postos na funcionária – para lhe captar a atenção – empurrava a cadeira à nossa frente, o mais direito possível, mostrando-nos como fazê-lo. Seguindo atrás dele, íamos endireitando a cabeça e deixando de arrastar as pernas - que escondíamos atrás das cadeiras.

IV

Ele era o nosso líder. Poderia lembrar-me de uma lista interminável de coisas que o tornavam líder espontâneo e inquestionável, mas seria o mesmo que tentar elaborar uma tese a explicar porque algumas pessoas nascem bonitas e outras não.

Não sei se o dom da liderança está contido num cromossoma mas sei que nasce com certas pessoas. Uns nascem menos feios, com olhos “esverdeados” ou “azulados”. Outros, nascem profundamente bonitos, com olhos mesmo verdes ou mesmo azuis. Ele nascera profundamente líder, com um certificado de sucesso e a certeza de fazer fortuna – caso cometesse os pecados certos.
Quando se é profundamente qualquer coisa – bonito ou líder ou deficiente – as  melhores opções da vida apresentam-se em forma de pecados. Tudo é linear. Apenas desagradável caso optes pelo díficil...
Para os profundamente bonitos, optar pelo difícil é tornar-se feio por fora, deixar que apenas a alma comande o que a vida lhes entrega. Para os  profundamente líderes, a opção difícil é ser liderado. Para os deficientes profundos, a opção difícil é entregar as suas vidas.
Ele era o nosso líder. Era uma opção fácil, dele e nossa. Um líder aponta para um ponto no horizonte e diz:

- Aquele ponto pertence-nos, foi-nos prometido. Nada nem ninguém pode impedir-nos de o conquistar.

Um líder aponta para um ponto no horizonte e alguns reconhecem-no, outros, descobrem o que procuravam sem saber. Todos, sem excepção, seguem e guardam o líder, como se fosse uma única bússola no deserto. 

A Redenção era um ponto no horizonte e ele sabia – entretanto – em que parte do horizonte se encontrava... Aguardávamos apenas que ele apontasse... Seguiríamos com ele, para travar as batalhas que fossem necessárias, para conquistar aquilo que nos havia sido prometido.

As noites tornaram-se festas constantes na varanda do nosso dormitório... Partilhávamos as histórias que cada um vivera naquele dia, as piadas que um determinado miúdo contara com os olhos, as partidas que com eles pregávamos à funcionárias e uns aos outros – tal como a que o Alex organizou com o “cowboy”, para me fazer duvidar da minha sanidade durante uma semana...

O cowboy era um miúdo de quarenta anos que andava na cadeira de rodas com um palito no canto da boca e a altivez de quem se sentava no topo de uma carruagem puxada por doze cavalos (ou treze – quando um de nós o empurrava). Com as mãos nas rodas – que eram rédeas – era ele quem decidia andar, parar ou a direcção a seguir. Era sempre ele o último a entrar para a missa e o que nos deixava mais exaustos – de tanto relincharmos e galoparmos nas alturas em que soltava as rédeas.
Costumava vê-lo de manhã, num corredor que eu percorria quando levava os lençóis à lavandaria. Estava sempre no mesmo sítio, sentado na cadeira, a olhar um horizonte para lá das paredes – como se guardasse os seus cavalos enquanto eles descansavam.
A meio desse corredor abria uma porta que dava para a incineradora e para os contentores do lixo. Deixava o carrinho à porta e ia lá fora pôr as fraldas a queimar e o lixo nos contentores. Uma terça feira, depois de fechar a porta, não vi o carrinho. Ou melhor, vi-o, mas estava uns metros atrás onde jurava tê-lo deixado. Na quinta feira, o mesmo aconteceu; depois no sábado... Parecia que em certos dias, eu não era capaz deixar o carrinho em frente à porta, ou uma estranha e momentânea corrente de ar o empurrava para trás. O que mais me estava a irritar é que a aleatoriedade com que isso acontecia fazia-me nunca prestar atenção ao local exacto onde deixava o carrinho, ou verificar se havia correntes de ar momentâneas depois de abrir a porta. Ao fim de cinco vezes, decidi fazer tudo igual excepto uma coisa: dei apenas um passo lá para fora e aguardei, espreitando o carrinho por uma esquina. De repente, vi o cowboy fazer algo que nenhum de nós julgava possível – movia a cadeira sozinho, sem os cavalos, desde o sítio onde estava até ao carrinho dos lençóis. Depois, empurrava-o uns metros e seguia novamente até ao ponto exacto de onde partira.
O Alex tinha sido o único a conseguir falar com ele e a descobrir que ele conseguia fazer a cadeira andar, caso quisesse, caso houvesse um bom motivo. Pregar-me uma partida era um bom motivo e vê-lo cumprir uma missão, a empurrar a sua carruagem sozinho, também era. Durante todo o tempo que lá estive, tentei fazer sempre o mesmo ar de desorientação e espanto. O cowboy nunca falhou uma missão.  

Contámos essa e outras histórias, rimos de todos e de nós próprios,  fizemos apostas – que um dia fariam os perdedores pagarem finos ao grupo – de quem era o último a deixar as camas feitas, de quem perderia mais vezes a corrida com os lençóis para a lavandaria, de quem sujaria mais vezes as mãos com cocó...
No fim da noite, o Alex e o Maurício pegavam nas guitarras,  eu pegava nas flautas e cantávamos em coro, coisas da altura e coisas do passado. As funcionárias nocturnas vinham muitas vezes bater-nos à porta para fazermos menos barulho, mas uma noite – enquanto  cantávamos “We All Stand Together “do Paul McCartney – as funcionárias assistiram incrédulas os miúdos gemerem em coro e afinados a  melodia cantada pelos “sapinhos” da musica...

BOUM BOUM BOUM,
BOUM BOUM BOUM,
BOUM BOUM BOUM BOUM BOUM.
WIN OR LOSE, SINK OR SWIM,
ONE THING IS CERTAIN, WE'LL NEVER GIVE IN.
SIDE BY SIDE, HAND IN HAND,
WE ALL STAND TOGETHER.
BOUM BOUM BOUM - BY-I-YAH,
BOUM BOUM BOUM - BY-I-YAH.
PLAY THE GAME, FIGHT THE FIGHT,
BUT WHAT'S THE POINT ON A BEAUTIFUL NIGHT?
ARM IN ARM, HAND IN HAND,
WE ALL STAND TOGETHER.
BOUM BOUM BOUM BOUM BOUM BOUM BOUM.
LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA,
KEEPING US WARM IN THE NIGHT.
LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA,
WALK IN THE LIGHT, YOU'LL GET IT RIGHT.
DOO, DOO, DOO,
DOO, DOO, DOO,
DOO, DOO, DOO, DOO, DOO, DOO, DOO, DOO, DOO,
MIAU, MIAU, MIAU,
MIAU, MIAU, MIAU,
BOUM BOUM BOUM BOUM BOUM.
LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA,
KEEPING US WARM IN THE NIGHT.
(BA-BA-BA-BA-BA BOUM BOUM)
LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA-LA,
WALK IN THE LIGHT, YOU'LL GET IT RIGHT.
WIN OR LOSE, SINK OR SWIM,
ONE THING IS CERTAIN, WE'LL NEVER GIVE IN.
ARM IN ARM, HAND IN HAND,
WE ALL STAND TOGETHER.
WE ALL STAND TOGETHER!

A partir dessa noite, nunca mais vieram bater-nos à porta. Todas as manhãs, quando saíamos para o pequeno almoço, as funcionárias do turno acabado lançavam-nos sorrisos e cantarolavam “we all stand together...” como um cântico religioso, tão forte como os do 13 de Maio. Para elas – e isso disseram-nos – era o cântico de um pequeno milagre a que tinham assistido, o símbolo da nossa presença junto dos miúdos.

V

Chegou por fim o dia de entrarmos na casa dos gritos - o último sítio para onde o padre nos podia empurrar. Nela, viviam os únicos residentes que não conhecíamos ainda, os únicos dispensados de ir à missa.
Parámos todos à porta a olhar uns para os outros. Ele – como é óbvio – foi quem abriu a porta...
Viviam sete pessoas naquela casa. Eram diferentes de todos os outros.
Nada, até ali, nos havia preparado para o que vimos depois do pequeno almoço...
Para nós, um “deficiente” era agora a imagem de um miúdo com um corpo diferente do nosso mas com um brilho e uma vida incandescente nos olhos. Os residentes daquela casa possuíam um corpo igual ao nosso – com pernas um pouco mais atrofiadas talvez, por estarem todos os dias sentados em cadeiras de rodas – mas iguais a nós. No entanto, ao contrário dos outros miúdos, tinham um olhar vazio, desprovido de vida, desprovido de alma.
Custou-nos verdadeiramente permanecer naquela casa. Nem a rotina – a repetição daquela que já nos havia salvado, durante os primeiros dias – nos estava a valer. Sentia-se desespero e um grande vazio naquela casa. A palavra “catatónico” ainda hoje abraça todas as imagens que guardei daquele lugar.
As histórias que descobríamos de cada um, eram-nos contadas não por eles mas pelas funcionárias...

O Carlos – que deixara de comer, beber e (para ele) até respirar, no dia em chegou a casa e descobriu – por um bilhete manuscrito – que a esposa havia fugido com os seus filhos para lugar incerto, na companhia do seu melhor amigo.
O Rocha – que escreveu um livro de mil cento e quarenta páginas e – perante a indiferença do mundo ao que tinha para lhe dizer – cortou os seus pulsos e escreveu sete últimas páginas a sangue, na parede do seu quarto.
A Emília – que fora buscar os seus filhos à escola, num dia especialmente mau – daqueles intensamente tristes – à espera que um abraço dos dois a salvasse...


À terceira noite, o Alex e o Maurício continuavam sem tocar guitarra e nós não dávamos conta. Ficávamos em silêncio absoluto - mas um diferente daquele que vivíamos durante a cerimónia no terraço, pois não falávamos com nenhum deus, nem connosco.

- Bem está na hora de cobrar os finos que estão por pagar. Vão tomar banho, lavem bem o cabelo e usem perfume... Estamos todos a cheirar mal.

Tomámos banho, penteámo-nos, fomos buscar roupas bonitas ao fundo das malas e pusemos perfume – como se a cumprir o ritual de uma formatura, como se temendo uma punição militar pela desaprovação do nosso capitão. 

Depois, percorremos silenciosamente os corredores até uma janela que não fechava bem –desde o tempo em que ele ainda era o único morador daquele sitio.
Fugimos até à cidade e entrámos num bar.

VI

A verdade é que entretanto deixámos também de estar preparados para aquilo a que assistimos... O barulho, o fumo, um aparelho estranho a projectar imagens na parede e muitas pessoas. Pessoas aparentemente iguais a nós mas vestidas com roupas bonitas - que nunca ficavam no fundo de uma mala. Eram aparentemente iguais a nós mas depois manifestavam deficiências profundas nas suas conversas, expectativas e ambições. Cometiam a toda a hora o acto provocatório de irem à casa de banho com o maior dos desprazeres, sem darem conta que conseguiam fazê-lo sozinhas e ainda assim voltarem secas, com o copo na mesma mão. Engoliam amendoíns quase sem os mastigar – ignorando o quanto isso lhes seria útil caso um dia tivessem de tomar comprimidos todos os dias.
Quisemos ir embora mas ele sentou-se numa mesa ao canto da sala e nós sentámo-nos à sua volta. Passados treze minutos, conseguimos abstrair-nos do ambiente e criámos o nosso. O Maurício e o Luís pagaram os finos que tinham em dívida e eu paguei os meus – óbviamente por ser sempre o último a entregar os lençóis na lavandaria, enquanto esperava que o cowboy me levasse o carrinho.
Rimos novamente e até chegamos a dançar com os pés, por baixo da mesa. Havíamos voltado ao mundo normal, o nosso, aquele em que éramos verdadeiramente felizes – não cá fora, não dentro da casa dos gritos mas algures no meio. Algures no terraço com vista para os vales, nas conversas com os miúdos, nos concertos de Pearl Jam, Nirvana e Pixies que dávamos na nossa varanda. Ainda hoje, em dias especialmente tristes, vou até um desses sítios, até ao nosso mundo... Umas vezes chego lá, outras... Há simplesmente muito barulho.

VII

O dia seguinte foi melhor porque ao pequeno almoço, o Capitão comunicou-nos uma missão:

- Hoje vamos levar os miúdos desta casa à varanda... Vou tentar negociar mais do que quarenta e cinco minutos.

No fim da missa levámos os miúdos todos para as suas casas e fomos os buscar os outros. Seguimos o ritual sem escapar nenhum pormenor: alinhámos as cadeiras, sentámo-nos, não fizemos barulho...
Eles permaneceram como sempre estavam, inertes, de olhos postos no nada. Nós não conseguíamos ir a lado algum, não levantávamos voo em grupo como com os outros. O Alex levantou-se, pegou na Emília e disse-nos:

- Vou com a Emília até lá abaixo, vou mostrar-lhe umas flores.

Ao fim de 13 minutos estávamos já todos a pensar o mesmo – a pensar em voltar antes do “sino tocar”. No entanto, antes que nos levantássemos, vimos o Alex correr sozinho pela encosta acima. Parou junto a nós, ofegante e com lágrimas a escorrer-lhe dos olhos...

- Ela falou! Ela está a falar... Venham rápido!

Fomos a correr e parámos junto dela. Olhou para o Alex e disse:

- Que bom! Trouxeste os teus amigos... Tu e aquele menino lembram-me os meus filhos. Quando vos vejo fico mais feliz mas também mais ansiosa, à espera que eles apareçam.
Estou à espera de os ver desde que aqui cheguei, estou à espera que apareçam e me abracem.

Foi assim que ela repetiu o que dissera ao Alex. Nós, de lágrimas nos olhos, caímos de joelhos à altura da cadeira e abraçamos a Emília. Com vontade, com amor, com toda a força que as nossas almas pudessem emprestar a Emília. Ela chorou e depois sorriu...

- Obrigado. É assim que o abraço deles vai saber.

Depois inclinou a cabeça  e desapareceu. Voltou para parte incerta. Falámos para os seus olhos, sacudímo-la, gritámos – mas ela já não estava lá.

Ele levantou-se, olhou para cada um de nós e disse:

- Amanhã partimos de madrugada. Vamos encontrar os filhos da Emília e cobrar-lhes o abraço que já lhe deviam ter dado.

VIII


O Alex e o Maurício não podiam ir connosco. Na noite anterior, os pais do Maurício e a namorada do Alex haviam-lhes lançado um ultimato de regresso. Um ultimato que consumira praticamente todos os impulsos dos cartões, na cabine telefónica.
À noite, na varanda,  eles tocaram várias musicas da altura e do passado. No fim, cantámos aquele que sabíamos tornar-se para sempre o hino da nossa despedida: “Hey” – dos Pixies.
De madrugada, após saltarmos a janela que não fechava bem, juntámos dez mãos num circulo. Demos um abraço que durasse para sempre... Sabíamos que não nos íamos encontrar tão cedo.

(Uns anos mais tarde encontrámo-nos, mas numa história diferente.)

O Maurício e o Alex pegaram nas malas e rumaram à cidade, para apanhar o primeiro autocarro do dia – não convinha estarem na cidade quando dessem pela nossa ausência.
Eu, o Luís e ele demos um beijinho na Emília, levantámos a sua cadeira e descemos a encosta.
A Emília não estava ausente. Esboçava um sorriso ténue, quase imperceptível mas consciente, enquanto seguia em braços, pela encosta abaixo – como se em cima de um andor.
Nós transportávamos a Emília com o mesmo orgulho e firmeza com que carregámos o andor da Nossa Senhora de Fátima, numa  noite em que o Maurício quis fazer chichi e demos por nós nas traseiras da capela da Aparição – onde se juntavam os voluntários para carregar o andor.

Quando carregas nos ombros um símbolo de adoração de doze mil fieis - doze mil mãos que seguram velas para iluminar a sua fé – sentes-te pequenino mas muito orgulhoso. Os doze mil olhares que lançam sobre ti, mantêm-te firme, dão-te forças que não julgavas ter, dissipam as dores no teu ombro e na tua alma.
O andor da nossa Senhora de Fátima é pesado e leve. Quem o carregou sentiu o peso dos seus pecados mas também a solidariedade de doze mil almas ou mais – identificadas pela luz das suas velas –  que como tu, buscam a Redenção. 

Quando chegámos a uma vila, demos um pequeno passo atrás na nossa redenção e roubámos três bicicletas. Empurrávamos a Emília com uma mão na pega da cadeira e outra no guiador da bicicleta.

A minha luz favorita era a do crepúsculo mas nesse mês, nesse dia, passou a ser a da alvorada.
Gosto muito do sol. No entanto – e como pelas pessoas de quem sinto saudades – a altura em que o meu coração se enche de maior felicidade não é aquela em que os meus olhos os vislumbram e se encadeiam... É aquela em que uma luz única os anuncia. 

Havia uma luz única a iluminar a estrada – que se estendia à nossa frente como uma promessa cujo asfalto, metro após metro, ajudava a cumprir. Ao contrário de muitos, que seguiam em sentido contrário ao nosso – em direcção a Fátima – a promessa do caminho havia sido feita a nós. A promessa da Redenção estava à distância de um ponto no horizonte.
Íamos trocando entre nós a tarefa de empurrar a cadeira da Emília, de forma que – durante um espaço no tempo – havia um que ficava livre, a pedalar à frente, como se reconhecendo o caminho. Foi num desses momentos – em que ele seguia à frente – que o vímos sorrir pela primeira vez, de olhos postos no horizonte. Nesse momento, tive a certeza que seguíamos o caminho certo – porque quando os líderes sorriem, existe a certeza que tudo vai correr bem.
Já a Emília sorriu o caminho todo, com o vento a bater-lhe na cara e campos intermináveis de trigo a apontar-lhe, de cada lado da estrada, o caminho para os seus filhos.

O padre entretanto acordou. Interrogou as funcionárias e telefonou à Guarda Nacional Republicana. Moveu as suas influências para falar directamente com o chefe máximo do exército Romano que – entretanto, e por todo o mundo – deixou de seguir César e passou a lançar aos leões todos os seguidores de deuses diferentes.
O padre entrou na esquadra e baixou o polegar – condenaram-nos por “rapto”.

IX

A ficha clínica da Emília levou-nos até à aldeia que registava a sua última morada.
Ele entrou numa padaria e perguntou pelo paradeiro dos filhos da Emília...

- Vai encontrá-los onde estão há anos: no cemitério da aldeia.

A Emília teve um dia intensamente mau e decidiu ir ter com os seus filhos. Sabia o que apenas alguém muito só não sabe – que o abraço de alguém que amamos e nos ama de volta, pode trazer-nos à vida.
Viu os seus filhos saírem da fábrica e olharem para ela – criando aquela linha invisível de amor que nem os cientistas ousam falar. Já estive em milhares de aeroportos e estações de comboios, assistindo à criação dessas linhas - que medem a distância exacta entre pessoas que se amam e definem o caminho mais curto entre a multidão e o abraço. Nunca consegui fotografar essa linha.
A Emília esperava, do outro lado da rua, o abraço  dos seus filhos. Um camião rasgou a linha entre eles e atropelou-os.  

Quando ele voltou, percebemos que a alma da Emília estava perdida num ciclo interminável; um ciclo que começava por lhe dar o direito a ver os seus filhos ainda vivos, a serem felizes – não para sempre, apenas depois dela. Depois, havia um retrocesso e isso era-lhe retirado.
Percebemos que vivia meia acordada, meio a dormir; afundada num oceano negro que não a deixava vir à tona e viver muitas coisas, entre as quais, o sentimento que qualquer pai deveria receber por direito (qualquer que seja o nome do deus que o concede):  o de morrer antes dos seus filhos.
 A Emília vivia acordada e a dormir um daqueles sonhos que todos já tivemos - em que tudo corre bem até determinado ponto em que algo se desmorona. Todos já tivemos sonhos de duas horas em que o mundo é perfeito e depois, cinco minutos antes do despertador tocar, algo transforma o sonho num pesadelo. Acordamos tristes e às vezes a chorar. Programamos o despertador para tocar um pouco mais tarde e voltamos a sonhar...
Os primeiros dois minutos de felicidade repetem-se, mas depois tudo se desmorona novamente, até o despertador tocar, outra vez.. Repetimos o processo uma, duas, cinco vezes  e o sonho - que afinal é um pesadelo – impõe-se. Levantámo-nos tristes, sabendo que o dia já correu mal. Chegamos atrasados ao trabalho.    
A Emília vivia isso e todos os dias lhe corriam mal. Todos os dias vivia em busca dos seus filhos, em busca de um abraço que ficaram por lhe dar.

Em silêncio, levantámos as bicicletas e agarrámos novamente os punhos da cadeira da Emília. Estávamos vazios, sem nada à frente ou atrás do nosso olhar.
O líder estava perdido e pedalava à nossa frente, fingindo saber para onde íamos. Pedalámos até à antiga casa da Emília, com a esperança oca que nela morassem ainda recordações capazes de desbloquear os sonhos da Emília, capazes de interromper os ciclos que os faziam inevitavelmente acabar em pesadelos.
Quando parámos à porta, vimos dois meninos a brincarem num imenso jardim – eram os netos da Emília. Mal ela os viu, levantou-se da cadeira e permaneceu firme. Juntou todas as forças para dar dois passos em frente e disse:

- São eles... estão iguais.

X

A Emília não via os netos mas sim os seus filhos – na idade exacta em que os seus sonhos os haviam congelado.
Os meninos olharam para ela, só para ela – como se vissem perfeitamente (e pela primeira vez) a linha que mede a distância até alguém que amamos.
De repente, o som dos pássaros, numa calma tarde de Agosto, foi abafado por vinte sirenes fazendo a função de sinos – em jipes da Guarda Nacional Republicana. Sem nunca se calarem, cercaram o jardim.
Os netos corriam para ela e ela para os netos, encurtando uma linha à prova de som e de tudo, antecipando um abraço.
Ele correu em desespero para os guardas e gritou:

- Esperem! Por favor, esperem!

No exacto momento em que os meninos abraçaram a Emília, uma bala disparada por um romano, trespassou o peito do nosso capitão – como uma lança forjada para infiéis.
Ele caiu de costas no chão. Corremos para ele a chorar e ajoelhámo-nos junto a uma bússola partida...
Ele, com os olhos postos no céu, sorria...

- Estão a ver aquele ponto brilhante? Chegámos.

XI

“Ofereço fortuna a quem me vender a Redenção”

“Entrega o que tens de mais precioso.”

Bastava-lhe afinal entregar a sua vida. A Redenção foi-lhe oferecida.

XII

A Emília nunca mais voltou para o Centro. Durante o funeral, de mãos dadas com os netos, esforçava-se por manter uma cara séria, em sinal de respeito. Porém, de vez em quando, olhava para nós e sorria. Umas vezes, enquanto nos sorria, carregava a sobrancelha – para nos lembrar de endireitarmos a cabeça; outras, piscava-nos o olho – para nos confirmar que estava feliz e a sonhar, muito acordada. Confirmava que passara a ter sonhos felizes, até ao fim.

Os meus pais respeitaram-me o suficiente para não acreditarem na polícia e me tratarem como como uma vítima. Fiquei de castigo durante duas semanas mas não notei. Todos os dias – e durante treze – levantei-me  às sete da manhã... Fazia a  minha cama e a dos meus pais, depois de se levantarem. Durante treze dias, vagueei pela casa, de cabeça inclinada, a babar-me sem notar e a dar conta de todos os momentos em que ia sozinho à casa de banho ou levava uma colher à boca.
Não cheguei a ir à consulta que marcaram – logo após me comunicarem que já não estava de castigo. Passados esses treze dias, comecei a falar e a caminhar direito, sem me babar, de novo com expectativas e ambições profundamente fúteis mas normais.
Com o fim do castigo veio a autorização para me juntar aos meus amigos da rua, na casa da praia de um deles. 
Na noite em que fiz 18 anos, os meus amigos organizaram uma festa à noite, junto ao mar, com direito a fogueira e vodka, para festejarmos.
Gritei, cambaleei, caí e talvez até me tenha babado, mas não havia mal, pois estava bêbedo. Acordei de manhã com a lenha da fogueira ainda a crepitar e uma rapariga cujo nome desconhecia, a dormir no meu braço. Depois levantei-me. Olhei para o mar e para o céu no ponto do horizonte onde se encontram. Vi a vida apresentar-se a mim sobre a forma de opções fáceis. Optei por todas elas, no meu caminho de volta.
Voltei e permaneci no mundo das deficiências mais profundas. Voltei para vós.




“Ofereço fortuna a quem me vender a Redenção”.


Filipe Lascasas


Uma historia (praticamente verídica) que demorei dezasseis anos a escrever. Dedicada ao Centro e aos Miúdos que todos os dias me salvam. 
















Um abraço – um simples abraço – ao Luís, ao Maurício, ao Alex e à Emília.











No entanto - e perdoem-me a perda do vosso tempo - é também dedicada à Mafalda, que me conhece e (reconhece) a história. E ao meu afilhado, Bruno - que escreveu a carta da minha redenção -  e é, em vida, a pessoa em quem deposito a confiança daquilo em que me desejaria tornar. 
Perdoem-me a perda do vosso tempo, enquanto deixo também um abraço às minhas irmãs  - que  se preocupam - a Paula, a Jessy e a Carla Lascasas..




“We All Stand Together” – Paul MacCartney / “A Rose Among Thorns” – Ennio Morricone  & Dulce Pontes / “Hurt” – Nine Inch Nails “ / Hurt” – Johnny Cash (cover) / “Snow Girl” – Blind Zero / “Partida Del Leprosario” – Gustavo Santaol / “De Usuahia a La Quiaca – Gustavo Santaol / “Hey” - Pixies