domingo, 28 de fevereiro de 2010

Crepúsculo*




Quando era pequeno tinha crises de ansiedade na véspera do meu aniversário. Não era a expectativa das prendas que me fazia sofrer – a pobreza do meu meio nunca me criou tal problema –, era sim a visão de durante umas horas, que pareciam segundos, conseguir ter os seres que mais prezava no mundo, à minha volta. A contemplação dos seus olhares e expressões, celebrando a minha existência.

Depois cresci. Alguns cresceram comigo e outros envelheceram. Por estas e outras razões, a celebração da minha existência deu lugar a esporádicas confirmações da minha sobrevivência... “O que é feito de ti?” “Estás a safar-te?” “Corre tudo bem?” “Quando é que vens a casa?”
Soube que havia parado de crescer e passado a envelhecer quando à vez, de forma aleatória, alguns dos seres - outrora habituais - deixaram de vir...
Quando a meio de uma celebração reparamos que não conseguimos antecipar a maioria dos olhares e expressões que nos rodeiam,  sabemos que mais tarde ou mais cedo, seremos nós os ausentes. Pouco a pouco, deixamos de celebrar e passamos a contabilizar... “Quantos vêm?” “Quantas velas?” “Quanto custa?” ”Demora muito tempo?”

Quando era pequeno tinha crises de ansiedade na véspera do meu aniversário. Por isso, ia para a cama e obrigava-me a dormir. O tempo passa mais depressa quando dormimos; não pelo estado de semiconsciência que “os mais objectivos” evocam mas por causa dos sonhos que não lembramos. São eles que recapitulam os momentos e antecipam as emoções que queremos sentir. Muitas vezes, com sorte, repetem-se.

Ontem adormeci no carro. Era véspera de mais um dia importante na minha vida.

Acordei e já estavam todos presentes, prontos para celebrarem a minha existência. Tinha doze anos quando o mesmo aconteceu. Não ouvi a campainha e quando acordei, já todos haviam chegado. E como é bom acordar sem a ansiedade de que mais um dia passe ou mais alguém chegue. Durante anos, ansiei que tal sonho se repetisse...
Coloquei-me ao centro dos meus seres e antecipei as suas expressões. Depois, com os olhos da alma bem abertos, contemplei-os, iluminados pelo crepúsculo em que as janelas dos meus pais transformavam o sol...
Vi cada um dos meus amigos e praticamente todos os meus amores, recordar-me, num dia em que se celebrou a minha existência. O Pedro e o Luís, que conseguiam sempre no último minuto, arranjar um punhado de papelinhos coloridos para me atirarem à cabeça, lançaram-me um punhado de terra, repetindo a mesma frase de tantos sonhos repetidos: “ Fica bem maior, fica bem”.
Entretanto alguns envelheceram também e ficaram comigo, a contar-me histórias da minha existência. 

Mais tarde voltaria a nascer. 

Filipe Lascasas

*Crepúsculo: do Lat. crepusculu
                         s.m., claridade frouxa que se nota antes do romper e depois do pôr do sol.
                         figurativo: decadência; ocaso; declínio.  




Samskeyti - Sigur Ros

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Pétalas de uma só árvore




(9h 00m 52 segundos): Uma amendoeira em flor deixa cair no chão as primeiras cinco pétalas.
(9h 01m 35 segundos): Luís, presidente de uma grande empresa, olha pela janela do seu gabinete e deixa cair todos os papéis que tem na mão. Não encontra sentido no que o rodeia, nas roupas que traz vestidas, nos objectos que decoram a sua sala do trono. Tira a gravata e sem dizer uma palavra, arranca no seu carro preto sem destino certo.
(9h 02m 36 segundos): Raquel, uma rapariga morena, procura desesperadamente uma faca de cozinha, por entre seringas usadas, limões espremidos e pratas amachucadas. Vai para a sala, atira contas por pagar e uma ordem de despejo para o chão e escreve uma carta em cima de uma pequena mesa cheia de marcas de cigarros. Após o ponto final, arregaça as mangas e a tremer, pousa a lâmina no seu pulso direito.
(9h 03m 12 segundos): Filipe, um menino com oito meses de idade, é abandonado num contentor cheio de trapos velhos.
(9h 04m 26 segundos): Carla, uma médica de urgências, acorda a chorar e decide faltar mais uma vez ao emprego. Caminha até ao quarto azul-céu do filho, com dois caixotes de cartão, para empacotar brinquedos que nunca foram usados. Olha para o seu ventre, deixa cair os caixotes e prostrada num berço, chora compulsivamente.
(9h 05m 06 segundos): Ricardo, em liberdade condicional, entra no seu carro vermelho decorado com fotografias de Carla, uma médica grávida que há oito meses atrás lhe retirou duas balas perto do coração. Vive amargurado, por Carla não reconhecer a sua cara desde que lhe limparam o sangue.
(9h 30m 06 segundos): um violador sai de uma drogaria com um pé-de-cabra e quatro metros de corda. Arranca num carro vermelho a grande velocidade, rumo a casa de uma médica.
(9h 31m 26 segundos): Um trapo enrola-se no pescoço de um bebé que aflito, agita-se e chora.
(9h 32m 40 segundos): Uma brisa forte corre por entre as árvores de um pomar e abraça uma amendoeira, levantando no ar milhares de pétalas.
(9h 33m 12 segundos): Uma rapariga morena fazia nascer do seu pulso duas gotas de sangue quando ouviu o choro de um bebé. Saiu de casa a correr e com uma faca que tinha na mão, cortou um trapo que apertava o pescoço do bebé quase sem ar. Pegou na criança, colocou-a cuidadosamente no banco de trás do seu carro, apertou-a com o cinto de segurança e arrancou rumo à cidade, para lhe buscar fraldas e comida.
(9h 44m 29 segundos): O pára-brisas de um homem vestido com um fato sem gravata, encheu-se de pétalas e ele parou o carro no meio da rua. Ao sair, viu uma chuva de pétalas abater-se sobre um pomar e caminhou para lá. Aproximava-se de uma amendoeira quando ouviu um estrondo, mas continuou a caminhar. Olhou para o céu, abriu os braços e permaneceu inerte, coberto por um manto de pétalas.
(9h 45m 13 segundos): Uma rapariga com um bebé no banco de trás do seu carro deparou-se com um carro preto parado numa curva e para evitar bater-lhe, desviou-se, colidindo com um carro vermelho que vinha em sentido contrário.
(9h 45m 14 segundos): Um homem chocou com outro carro e desmaiou, deixando a cabeça cair sobre a buzina do seu volante.
(9h 45m 15 segundos): Uma médica ouviu uma buzina, abriu a persiana de sua casa e viu dois carros a deitar fumo. Pegou no seu estojo médico e correu para lá.
Abriu a porta de um dos carros e uma rapariga caiu no chão. Impulsivamente mediu-lhe o pulso ensanguentado, mas após reparar no seu estado, percebeu que já nada mais podia fazer por ela. Correu para o carro cuja buzina tocava e viu um homem caído sobre o volante, com quatro metros de corda e um pé-de-cabra pousados no seu regaço. Partiu o vidro da janela e utilizou o pé-de-cabra para abrir a porta que estava encravada. Depois, transportou o homem com a cara tapada de sangue, para o meio da rua; fez-lhe respiração boca-a-boca, massagens cardíacas e conseguiu traze-lo à vida. Quando acabou de ligar para o Hospital ouviu um bebé chorar no primeiro carro. Desapertou-lhe o cinto e pousou-o cuidadosamente em cima da mala de um carro preto, parado no outro lado da rua. Verificou com rigor, se o bebé estava bem...
- “Tens muita sorte em não te teres magoado, meu menino lindo! Estás a precisar que alguém te mude as fraldas...”
Ouvia-se já o som das sirenes quando a médica levou o bebé para um quarto azul-céu de sua casa. Deitou-o num berço vazio e foi buscar fraldas a um caixote de cartão.
(9h 50m 07 segundos): Um agricultor viu no seu pomar um homem de braços abertos e olhos fechados, coberto de pétalas e estático, debaixo da sua única amendoeira...
- O que é que está aqui a fazer?
- Engraçado... Andei todo o dia a fazer-me essa mesma pergunta.

Acabei este relato com um borrão de tinta que me escorreu da caneta inerte. Fechei o bloco cheio de perguntas, paguei o café e meti-me no carro. A caminho de casa fui de repente iluminado por dois ou sete raios de sol que haviam conseguido furar as nuvens cinzentas dessa tarde. Faziam questão de morrer no mar, magnífico e majestoso, como só ele fica quando pensa que o sol, nesse dia, brilha só para ele.
Parei o carro no meio da estrada e caminhei para as ondas iluminadas. Ouvi um estrondo, mas continuei a caminhar...

Filipe Lascasas

Para Salvador Dominguez e para aqueles que carregam as mais árduas missões. 

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

A Vida é Bela!




1- O meu trabalho não é interessante. A minha função é conservar um registo metereológico do tempo passado. Podia aspirar a ser um dos tipos que prevêm o tempo que vai fazer mas, na realidade, nem isso seria suficientemente interessante.
Vinha a pensar nisto quando calquei merda no passeio, a caminho de casa. Soube, nesse instante, que o resto do meu dia estava estragado. Um optimista passou por mim, riu-se e disse-me que aquilo era pronúncio de boa sorte. Apeteceu-me limpar o sapato nas calças dele (e partilhar a minha sorte) mas limitei-me a sorrir de volta.

2- É verdade que não sou um optimista, por isso podes optar por ignorar-me e passar já para o parágrafo nº3 da história. No entanto, se queres mesmo ouvir tudo, sabe que se realmente eu quisesse, podia ser um - gosto de rir, sou suficientemente sonhador, não me deixo abalar com futilidades, tenho criatividade para imaginar cenários alternativos à realidade...
Em vez disso, opto por não ser estúpido. Encaro a vida como ela é – uma merda. É o que ela é por defeito e saber viver não é mais do que a majestosa capacidade em evitar que a vida se apresente a ti na sua forma pura.
Ser optimista é calcar o dejecto de um cão e acreditar ou fazer acreditar (o que é pior, pois aí roças a desonestidade) que os passeios de lisboa estão plantados de flores.
Para onde quer que olhes e vejas vida (e será mais fácil focares-te em criaturas que consideras inferiores por seres optimista) verás que desde a criação ou do “caldo biológico”, nada mais aconteceu senão o puro acto de evitar a merda que nos pode acontecer. Tudo o que recebe “vida” passa o seu tempo de duração a tentar ultrapassar os dejectos nos passeios que é forçado a percorrer. 
Com o espírito sempre aberto a contra-argumentações, vi um filme intitulado: “A Vida é Bela”. Surpreendentemente (para um optimista) o filme acaba com o heroi a levar um balázio na cara e um filho sem pai, simplesmente feliz por andar numa máquina construída para matar outras criaturas. Também poderia falar-te de Romeu e Julieta... Mas é mesmo preciso?

3- Estava a tentar raspar o sapato no passeio quando a raiva, misturada com o resto, fez a sola do meu sapato partir-se em duas. Descalço de um pé e debaixo de um candeeiro - que se tivesse acendido, evitaria o meu azar -, sentei-me.
Para um optimista, esta é a parte da história em que ele proclamará “ficção”, mas a verdade é que mal me sentei, começou a chover torrencialmente. (Confirmar registo metereológico às dezassete horas do dia 9 de Fevereiro de 2010).
A chuva foi de repente interrompida por um guarda-chuva amarelo... Ela debruçou-se e disse:
- Já percebi que estás a ter um dia mau! Estava ali abrigada e assisti à tua “odisseia”...
Sentou-se ao meu lado e pôs o guarda-chuva entre nós...
- Confesso-te que o meu dia também não estava a ser famoso. No entanto, depois de te ver, fiquei contente por pelo menos me ter lembrado de trazer um guarda-chuva. Tive sorte... Raramente ouço as previsões do tempo mas como hoje estava atrasada, deixei o rádio ligado mais tempo.
Tirei a peúga ensopada do pé azarado e espremi-a...
- Estou num dilema... Não sei se deva manter pelo menos um pé calçado ou deixar os dois partilharem o mesmo infortúnio.
- Esquece o infortúnio, hoje é o teu dia de sorte! Comprei uns chinelos nos saldos... Vê se te servem!
- Isto é tão embaraçoso como assustador! A minha mãe aconselhou-me sempre a não aceitar chinelos de estranhas!
- Vês? Ficam-te bem! Mas não te habitues... São só emprestados! Estás pronto para o caminho?
- Até tenho medo de tentar... Se conseguires tirar-me daqui no meio desta escuridão, sem pisar novamente “uma flor”, pago-te o jantar.
- Temos negócio! Nasci com o dom de ser um GPS de cocó. Dá-me a tua mão e sobreviverás!
Eu sobrevivi. Jantámos no primeiro restaurante que me deixou entrar de chinelos e depois ela trouxe-me de volta a casa, são e salvo.
Andei toda a semana a desejar que chovesse e a desviar o olhar do chão. No fim de semana seguinte, ganhei coragem e fui a casa dela devolver-lhe os chinelos...

Temos andado de mãos dadas, a evitar merda, desde então.

4- Sei que posso parecer-te pessimista. Porém, se fosse o caso, não te aconselharia a desenvolver a magestosa capacidade de evitar os dejectos que a vida põe no teu  passeio. Não te  aconselharia a sorrir, quando sabes que podes (por exemplo) limpar o sapato no tapete que um optimista deixou à porta de sua casa.
Haverá alturas em não há tapetes, ou simplesmente puseste o teu a lavar porque outros se limparam nele. Haverá alturas em que os dejectos são atirados à tua cara, depois de percorreres de forma brilhante (e majestosa) o teu passeio habitual. Mas não sejas pessimista, a vida é mesmo assim, uma merda.
Limpa-te e continua a andar porque apesar de a vida não ser bela, isto de andar de mãos dadas a evitar merda nos passeios, tem o seu encanto. 

Filipe Lascasas

(Um agradecimento a RT pela inspiração e amizade)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Amar não é a palavra certa?

“Amou alguma vez as mulheres? Amar não é a palavra certa, porque nela muito se contradiz a uma velocidade que impede o sentimento.”


Agustina Bessa-Luís

Errata:


Amar é a palavra certa, apenas quando dita e vivida com a maior velocidade possível.
O amor é uma borboleta. É a totalidade de raios de sol num dia de céu nublado, com as mesmas interrupções e a mesma escuridão. È uma garrafa cheia que parte, não um conta-gotas. É pura ressurreição seguida de morte súbita. Um fénix que não precisa de levantar voo para chegar ao sol. Um círculo que em cada início parece uma recta.
O amor dura o tempo exacto da contemplação de uma estrela cadente; é decadente.  
O amor intemporal existe: é aquele que foi interrompido precocemente por alguma razão. Romeu e Julieta amaram-se para sempre pois morreram novos, antes da menopausa, do comodismo, do desencanto, das discussões, do cansaço, do divórcio.
Amar tem tudo a haver com velocidade e intensidade. É directamente proporcional. Se quiseres amar alguém para sempre, despede-te após o primeiro encontro. Casa-te com a memória.

Filipe Lascasas