quarta-feira, 26 de maio de 2010

A outra palma da mão.



Foram juntos não porque ela precisasse de uma companhia mas porque queria uma. Nada de novo também na sala... Desde a introdução paternalista, ao tom autoritário - intercalado convenientemente por momentos de falsa ternura e suavidade na voz.  Um desperdício de dinheiro, sem revelações que ele não tivesse já lido em livros de auto-ajuda, ou assistido em “filmes fáceis”.
Quase ao fim de uma hora bem cara  - e  batido que estava,  seguramente, o recorde mundial de “clichés por minuto” -  o psicólogo caprichou e pediu-lhe um último:
O teste de confiança.
Ela (que estava a pagar), hesitou durante vinte e dois segundos, depois fechou os olhos, depois abriu os braços, depois susteve a respiração... Deixou-se cair. Ele, susteve a respiração, depois dilatou as pupilas, depois abriu os braços. Apanhou-a.

- Agora ao contrário.
- Porque não? – Disse o meu colega, com os olhos no relógio.
Ele fechou os olhos e não hesitou. Caiu e bateu com a cabeça no chão.

- Então? Não estavas preparada?
- Estava, mas queria ver se confiavas em mim.

Ele levantou-se ainda a coçar a nuca e fechou os olhos. Não hesitou mas deu-lhe 9 segundos para ela se preparar...
Caiu novamente no chão. Desta vez com mais força.

- Então?!
- Desta vez estava a pensar se fazias o mesmo caso eu não estivesse aqui.

Encontraram-se passados nove anos no Facebook...

Trocaram uns “olás”, partilharam umas músicas e depois começaram a conversar no chat... As linhas de letras e “smiles” aumentaram de dia para dia.  No entanto, o sumário de cada janela era quase sempre uma troca de argumentos forçados (retirados de “filmes fáceis”) tentando provar o quanto estavam bem. Ele, mais do que ela, compilava fotos - enviadas em “ficheiros zip” - de uma vida especial, diferente das outras.
Durante três meses, os teclados de ambos expulsaram pensamentos e expressões que davam vida ao acto consciente e ardiloso de memórias que o início do envelhecimento sempre constroi - para corrobar a historia de quem achamos que somos ou de quem desejaríamos ser.
Depois passaram para a fase seguinte – a oposta – em que se deixa o bolbo raquidiano à solta, sem a trela da censura ou do controlo racional...
Deixaram o bolbo raquidiano uivar e escreveram coisas que não deviam pensar.
Num dia de chuva e vento ele esperava-a on-line, já de olhos fechados, braços abertos e pronto a deixar-se cair. Ela fez login já com o bolbo raquidiano preso pela trela de uma consciência pesada...

- Vou-me casar. Acho que não devemos voltar a teclar por uns tempos.

Coçou a nuca e recapitulou as vezes em que sentira a mesma dor, a mesma “picada”.
Enquanto a racionalidade se sobrepôs à alma, sentiu pena de si próprio e de toda uma vida preenchida de desilusões, por sempre confiar nos outros; por deixar-se cair, por nunca o apanharem.
No fim de uma bebedeira, com todas as trelas guardadas no armário, pintou uma frase na parede do seu quarto (com tinta que afinal não era  lavável):

Nunca caias por ninguém.

No inicio de uma ressaca, olhou para a frase e percebeu que nunca havia caído sem a expectativa de ser amparado. Num último fôlego de racionalidade, ainda expulsou uma frase:

Não tens medo de arriscar... Corres riscos calculados.

Nunca chegou a pintar a frase na parede.
Naquela gaveta da minha secretária ainda guardo o papel que ele aqui deixou. Se quiseres posso ir buscá-lo mas conheço o texto de “cor e salteado” – de tantas vezes que o citei:

Conjugar as palavras “risco” e “calculado” tem tanta lógica como a conjugação das palavras “violador” e “romântico”. Para a vida – que premeia os que correm riscos sem adjectivações e aceitam a sua imprevisibilidade – a conjugação é uma anedota. Enquanto coças a nuca, após mais uma “queda calculada”, a vida ri-se, muito.

Não sei dizer em que momento ele escreveu isto, presumo que algures num ciclo de quedas radicais a que se sujeitou após a notícia do casamento...
Sei que no dia a seguir acordou com a vontade de vencer todos os seus medos mas apenas derrotou alguns. Um deles era o trauma de morrer afogado – nascido após “o acidente”, numa tarde de surf com os amigos.  Procurou uma professora de natação com boas referências e deu com ela numa piscina em Trás-os-montes... Estava a pegar num rapaz, com paralisia cerebral, ao colo. Ele, com o corpo dobrado e inerte – como se nunca tivesse saído do útero da mãe – ria-se muito.  Ela sentou-o na beira da piscina e com uma mão segurou-o nas costas...

- Vou soltar a mão... Estás pronto?

Ele aguardou pela brisa certa e caiu para dentro da piscina ainda a rir. Nunca iria aprender a nadar mas também não queria... Apenas cumpria o sonho de cair na água, ao sabor do vento, sem ser amparado.
Dentro de água, o calor que sentia apenas na cabeça, foi-se perdendo e o seu corpo inerte, foi pouco a pouco, desdobrando-se...  Com ela sempre por perto a ampará-lo, e ao fim de trinta anos, ele conhecia finalmente a sensação de sair do útero da sua mãe.
Ela pegou-lhe no braço (toda a  vida “cimentado” ao seu peito) e começou a esticá-lo lentamente. Depois, um a um, abriu os dedos da sua mão...

- Olha... É a palma da tua mão!

O rapaz olhou maravilhado para a palma da mão que nunca tinha visto... Riu e chorou ao mesmo tempo.

Ele retirou-se sem que ambos dessem pela sua presença.
Apanhou uma bebedeira a pensar na forma livre e arriscada como o rapaz caíra. De manhã, já de ressaca, pensou no mesmo. Depois...
A porta do metro abriu mesmo à sua frente – não era comum. No entanto, à distancia de um passo, ele não se moveu. O metro arrancou e após fotogramas repetidos de caras ensonadas, ali permaneceu, mais acordado e sóbrio do que seria suposto..
Passou tempo suficiente para um novo metro chegar e antes que as portas se abrissem, deu dois passos atrás. De repente, viram-no a correr para não apanhar o metro. Quase parecia que alguém tinha pela primeira vez conseguido reboninar uma rotina matinal que milhares apenas conseguem começar e acabar ininterruptamente... Sei que muitos na estação sentiram-se tentados a não apanhar o metro com ele. Depois...
Surfou nos oceanos que realmente queria. Mergulhou, correu, voou e fez queda livre (muitas vezes até no chão). Viajou até sítios com que sempre sonhou e depois continuou a viajar, até sítios que o fizeram sonhar.
Quis vencer todos os seus medos e derrotou a maioria.
Num dia de sol, algures na Tailândia, olhou para o oceano e recapitulou as frases novas que iria pintar na parede do seu quarto, usando apenas a palma da mão. À penúltima frase, percebeu que tinha de a ir buscar. Ainda estava a tempo de interromper o casamento...
Saiu do avião e abandonou as malas em circulos no tapete do aeroporto. Meteu-se no carro e descarregou a adrenalina no acelerador...
Contrariando o que seria apropriado para a fluidez da história de um “filme fácil”, foi parado a meio da viagem,  pela patrulha de trânsito. Multaram-no, por viajar... Depressa.
Depois, dentro dos limites de velocidade, continuou a viagem, confiante que ainda chegaria a tempo.
Apanhou-a à saída do emprego e caminhou até ela.
Depois susteve a respiração, depois fechou os olhos, depois abriu os braços.
Ela, negou-lhe o beijo e o abraço com um gesto harmonioso. Ele... Caiu.

- Estás bom? Vamos tomar café.

Sem dores na nuca mas com um aperto na alma, ele olhou para o outro lado da rua e depois para ela...

- Vamos. Sempre será mais divertido do que num “chat”.

Falaram.
De tudo.
Ela recordou tudo também,  com carinho, sem as censuras conscientes e ardilosas que o envelhecimento poderia construir - para proteger um ego de “meia idade”. Por entre garrafas de Coca-cola e Ice Tea, descreveu a serenata que ele lhe fez com a Tuna, as centenas de flores que pousou na sua almofada, a perda da virgindade no momento certo para ambos,  a noite em que ele pôs quarenta caloiros a gritar o seu nome para a encontrar no meio de uma praça com centenas de pessoas...

- Então o que te fez aparecer por cá? Confesso que tive medo de te ver durante uns meses... Passei a cerimónia do meu casamento em agonia, a pensar que entrarias a qualquer momento para fazer algum escandâlo. Depois de quatro anos sem notícias tuas comecei a questionar se estavas vivo... O que fizeste entretanto?

Ele sorriu, deu um último trago na Coca-Cola e respondeu:

- Andei a cair por aí.

Ela bebeu mais um pouco do Ice Tea e sorriu também...

- Mesmo sem mim para te amparar?

Ele já não respondeu – perante a visão de um homem com aspecto “mal humorado” que se sentou ao lado dela sem pedir licença...

- Então não respondes às mensagens? Quem é este?
- É um amigo da Universidade que encontrei por acaso... Apresento-te o meu marido.

Ele ía estender a mão ao marido, mas ele levantou-se, pousou uma nota de 20 euros na mesa e disse:

- Gostava muito de ouvir as histórias da vossa infância mas quero ir jantar que estou cheio de fome! Podemos?

A forma rude e grosseira com que o marido lhe falava, fez cair a aura que ela até ali mantinha, destapando nódoas negras e cicatrizes de quem há muito tempo não era amparado.
Ela acedeu e levantou-se...

- Até uma próxima vez!

Quando os dois desapareceram pela porta do café, ele olhou para uma palma da mão e depois para a outra... Mas não a viu - tudo o que restava, era a sua marca embaciada num copo de Ice Tea.

Depois...
Entrou no restaurante e sem procurar, caminhou em fente – indiferente à forte probabilidade de se ter  enganado no restaurante. Como prémio, a vida levou-o até ela e ao marido, numa mesa escondida no canto da sala...

- Vou cair e espero mesmo que me apanhes... Anda jantar comigo que eu levo-te a um sitío que realmente gostes.

O marido levantou-se em raiva, dirigiu-lhe uns palavrões e agarrou-o pelos colarinhos...
Confesso que gostaria de adulterar os acontecimentos por forma a não assumirem tantos contornos de um “filme fácil”... No entanto, ele afastou os braços do marido com força e empurrou-o por cima das mesas. Depois, para garantir que ele ficava sentado onde pertencia,  deixou-o pregado, com um garfo (ironicamente, espetado na palma da mão).
Ela olhou para ele em pânico. Depois, com serenidade. Depois, sorriu...

- Sabes bem que não te vou dizer qual é o meu restaurante favorito!
- Ainda bem... Apetece-me arriscar. No entanto, antes do jantar, vamos só passar num sítio...

Ouvi-os e tentei tudo - desde o tom autoritário, aos momentos de ternura exprimidos com voz suave. Eles, de forma condescente e óbvia, fingiram que os ajudei. Quando finalmente esgotei os meus clichés e os deixei em paz, disseram-me quase em uníssono:

- Faça-nos só o “teste da confiança”.

Tinham, na altura, trinta e cinco anos. Perguntaram-me se conhecia um bom restaurante e sem que eu tivesse tempo de responder, saíram de mãos dadas a rirem-se, com a vida.
Não preciso ser psicóloga para saber que a história deles teve sempre um fim aparentemente imprevisível mas provável.
Eu sei que a tua hora já terminou, há duas atrás... Permite-me no entanto encerrar a sessão com um receituário para a tua cura:

Deixa a tua carreira “pouco arriscada” cair. Mergulha em todos os oceanos em que queiras surfar, viaja até onde nem os teus sonhos cairam, faz queda livre (mesmo que seja no chão). Correrás o risco de descobrir “a palma da tua mão”  - como prémio de uma vida que respeita a sincronia dos teus planos com sua imprevisíbilidade e por isso, não se ri de ti.
Podes escapar algumas destas opções e até automedicar-te. No entanto, confia no príncipio de que o amor será sempre a derradeira razão pela qual viverás, independentemente dos medos que tens para vencer, sonhos para cumprir, fome, sede, ou a simples vontade de procriar.
E convenhamos... Aqui entre nós, sem cobrar mais pela consulta:
É a melhor das quedas e o pior dos riscos... Antes e depois de cairmos no chão, mesmo se amparados pelo meio. É a única coisa que te prescrevo.

Filipe Lascasas

Inspirado numa história (real) da minha professora de natação favorita e dedicado à Mariana – a psicóloga que eu mais respeito por (entre outros dons ) trabalhar  voluntariamente.




Red House Painters - Have You Forgotten + John Butler Trio – Fool For You + Rita Redshoes – Chose Love

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Azimute*




A minha vida acabou às 22h33m do dia 2 de Setembro de 1995.
A hora exacta da minha morte vinha descrita nos papeis que me entregaram, quando saí do hospital. Por entre novelos de termos médicos, havia uma linha que se destacava: “O paciente deu entrada nas urgências às 22h26m e foi reanimado por massagem cardíaca directa, sete minutos depois, no bloco operatório.”
Dois dias depois, noticiavam a minha morte num jornal diário - “... o despiste provocou ferimentos graves no condutor da viatura e a morte imediata dos seus acompanhantes” – a minha mãe e a minha mulher.
Voltei a casa pelo meu pé mas caí desamparado no chão mal entrei. Transformei-me numa marioneta esquecida, presa por fios de memórias aos objectos que me rodeavam.
Passadas horas, cortei os fios com raiva e despejei pela janela tudo o que fazia a minha mãe e a minha esposa voltarem à vida. No fim, a casa ficou vazia, tal como eu. Elas ocupavam todos os cantos da minha existência.
Na última gaveta, encontrei uma bússola estragada e um bilhete manuscrito que a minha mãe me ofereceu quando tinha dezassete anos. “Toma, o teu pai pediu-me para te entregar isto quando nasceste”. Não fiz perguntas. Não tive pai. O velhaco, dador de genes, partiu quando me pousaram no berço.

Desculpa mas não me é permitido fugir ao meu destino.”

O tempo havia envelhecido o papel do bilhete mas não a tinta. Não me recordo se a bússola alguma vez funcionou. Na altura, coloquei ambos na gaveta mais ignorada do meu armário e, umas semanas depois, quando decidi ignorar o mistério de a minha mãe me oferecer aquilo passados tantos anos, arquivei todo o processo na mesma gaveta.
Agora, a bússola e o bilhete eram símbolos de provocação. Não podia aceitar a ideia de alguém no mundo se julgar parte da minha vida, por isso parti em busca do velhaco, com o único propósito de lhe dizer que todos os seres da minha vida estavam mortos e que o meu pai nunca havia nascido. Ao entregar-lhe a bússola, cortaria o único fio de memória que me ligava a uma vida que já não tinha. 
Procurei-o por todo o mundo com a bússola no bolso. Sempre que falava com alguém que o havia conhecido, lançavam-me um sorriso semelhante ao da minha mãe, quando viajava no meu carro em silêncio, olhando pela janela. Pediam-me para lhe agradecer caso alguma vez o encontrasse e depois, sem grande convicção, apontavam-me uma
possível direcção do seu paradeiro. Passei sete anos em viagem e nunca o encontrei.

Em 1996, atravessava Bangladesh quando descobri que a agulha da bússola apontava sempre na direcção em que seguia. Conheci muitas pessoas na minha viagem e acabei por entrar na vida de muitas delas por diferentes razões... Em 1997 obedeci à bússola, rumei para Este e ajudei a apagar um incêndio numa aldeia em Banguecoque. Durante um mês, os habitantes fizeram questão de me acolher em suas casas. Em 1998, disseram-me que talvez encontrasse o meu pai a trabalhar num hospital em África. Apenas duas enfermeiras, já idosas, se recordavam dele. Uma delas dirigiu-se a uma caixa de madeira escondida por trás de uma porta e entregou-me um estojo médico que dizia pertencer ao meu pai. Na altura em que me preparava para prosseguir o meu caminho, tocou-me nas costas e segredou: “Poderia tornar-se muito útil se usasse esse estojo para tratar alguns dos doentes; pelo menos hoje”. Acabei por trabalhar no hospital meio ano, até o número de voluntários aumentar. Depois, rumei para nordeste e salvei um menino indiano, com um antibiótico caseiro que aprendi a fazer nos meus tempos de estudante. Durante três semanas, o menino colocou flores em frente à porta do meu quarto.
Falaria de mais uma centena de pessoas com quem me cruzei mas o tempo urge e preciso de te revelar que há um ano atrás, quando ajudei a encontrar o teu irmão, segui as indicações da minha bússola. Apaixonei-me novamente e como sabes, não mais viajei sem ti. Guardei as razões da minha procura na mais ignorada das nossas gavetas.
Hoje, quando desembrulhava uma manta para cobrir o nosso bebé, encontrei a bússola e descobri que ela voltou a funcionar. Isso explica a razão pela qual me sinto tão infeliz quando caminho em direcção contrária a ela.
Perdoa-me, mas não consigo fugir ao meu destino. Entrega a bússola ao nosso filho caso um dia ela se avarie.



*Azimute: Do árabe: assimut, caminhos, direcções
s.m., arco do horizonte entre o meridiano do lugar e o círculo vertical que passa por um corpo celeste.


Filipe Lascasas


Jon Brion - Strings that Tie to You + Jamie Lidell - Compass

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Lembrem-se de mim



Foi por entre fumo e muita confusão que encontrei o caderno – uma mistura de diário, agenda e livro de apontamentos...

Quarta-feira, 7h39

Hoje, como todos os dias, entrei no comboio para o emprego e fui caminhando, abrindo porta atrás de porta de cada carruagem, à espera de encontrar um lugar sentado ou, para ser sincero com o meu ego, uma cara familiar. Daquelas que se repetem como se incluídas na tabela de horários dos caminhos de ferro. Troca-se um olhar, um sorriso engolido para dentro e depois o maior dos afectos humanos – o da atenção...
“Ainda não acabou o livro de semana passada”. “Comprou um casaco novo”. “ Cortou o cabelo”. “Hoje dormiu pouco”. “Que musicas é que ele ouve no mp3?”
Hoje porém, depois de todas as portas dei comigo sozinho, na ultima carruagem. De repente, perante a impossibilidade gerada pelo ego de voltar atrás e recuperar atenção já debitada, sentei-me. De repente, percebi que em 5 minutos havia simbolicamente recapitulado a minha vida, até ao seu ponto actual...
Abandonei a atenção desprendida e pura dos meus amigos de infância e entrei noutra carruagem, com destino à universidade.  Depois entrei numa nova e abandonei a estação, já quase deserta. Os amigos que mais valorizavam os meus sonhos haviam partido e estava na altura de apanhar o comboio para o meu emprego.
Ninguém deve abandonar uma carruagem com lugar sentado, onde recebe atenção por aquilo em que se tornou.
 Aquilo em que te tornas é uma mistura incoerente do menino admirável que eras, do jovem que sonhavas ser e do adulto que queres ver lembrado. No entanto, a constatação de seres esquecido, estando presente, condiciona-te, faz-te querer conquistar novas memórias, leva-te a mudar de carruagem.
Abandonei a ultima carruagem e abri as portas de outra, inconformado com os olhares dos meus amigos presentes - que admiravam precisamente quem eu era. Como um míudo que estranhamente prefere abandonar o conforto dos cobertores e ir para a neve, também eu ansiava pela forma como poderia ser lembrado.  

Quinta-feira, 7h57
No altifalante do comboio ouviu-se: “Chegou ao seu destino” . Não há pior frase para quem parte indagado sobre o seu e bastante certo daqueles a que não  quer chegar.
Aos 32 anos percebi que provavelmente havia entrado numa carrugem vazia até ao destino. Onde não seria lembrado; qualquer que fosse o livro que estivesse a ler, o casaco novo que tivesse comprado ou corte de cabelo que ainda poderia fazer. Percorri toda a lista e  percebo agora que as musicas em mp3 são escolhidas em função do que lembram, nao do que fazem sonhar.

Sexta, 7h50
Fazer:
Reunião preparada com o patrão
Almoço de conveniência com patrocínio que não podemos pagar mas queremos seduzir
Trabalhar a base de dados dos produtos só com 3 cafés
E-mail para a Beatriz convencendo-a de que estou mesmo feliz por ter encontrado o amor da sua vida.

Marcar:
Lista de publicidade a garantir em Amsterdão
Almoço com os pais sem dinheiro para gasolina.
Reunião de aprovação de ideias geniais com mentes limitadas.
Café com a Beatriz no fim-de-semana.

Rascunho do e-mail (não esquecer escrever ao almoço!)
“Beatriz:
O melhor da vida é, sem dúvida, a capacidade que ela tem em supreender-nos, bem como a sua ironia deliciosa que muitas vezes (e para quem decide não acreditar no acaso) quase parece orquestrada...
Há também uma série de rumos que ela muitas vezes assume e que me intrigam quase tanto como fascinam. Falo das coisas igualmente surpreendentes que nos acontecem quando tomamos decisões díficeis ou radicais. Hoje, e com a história que a minha vida tem contado, acredito fortemente que muitas vezes somos testados, como que se a nossa coragem para mudar, decidir, revolucionar, fossem uma chave exclusiva para portas que a vida só nos abre se a conquistarmos.
Não me admiro portanto, com o que contas, com as decisões dificeis que tomaste e com as consequências incriveis e boas que acabaram por surgir quando, sem notares, abriste novas portas. Fico feliz por estares feliz e que não haja nunca embaraço em conjugar palavras como "gémea" e "alma",  pois do amor, tal como da vida, só podemos exigir... Tudo.”

Nota: ponderar se mando este e-mail... Escrevi-o para ela ou para mim?

O cinismo deste e-mail faz-me quase enjoar sempre que recapitulo as palavras que usei. Condenei toda a vida falsos profetas e aqui estou eu, com o pretenciosismo parolo de ser tomado como um. O enjoo acentoou-se e percebi que talvez fosse do comboio que parecia andar depressa de mais... Calculo que se seja de estar na carruagem da frente. Vou voltar para trás, talvez lá tudo ande mais devagar... Talvez alguém não repare que voltei.

 A vida surpreende-nos quando tomamos decisões dificeis ou radicais...

À minha espera estava um milagre... Na primeira carruagem que entrei, vi todos os meus amigos ainda presentes, de pé, à espera de me abraçarem. E fizeram-no, enquanto suspiravam saudades de quem eu me estava a tornar.
Continuámos a andar; alguém abriu as portas da outra carruagem e... Foi incrível, os meus amigos de universidade esperavam-me também, de braços abertos, dizendo-me o quão orgulhosos estavam dos meus sonhos presentes. Na ultima carruagem, já o comboio estava quase a parar, encontrei os meus pais e os meus amigos de infância. A minha Mãe distribuia sandes,  iogurtes liquidos e beijos a mim e aos meus amigos -  todos, sem excepção,  irmãos que ela me queria ter dado.  
No alitfalante ouviu-se: “Chegou ao seu destino.”
Desta vez era o certo.

Por entre o fumo e os destroços fechei o caderno que era um diário, uma agenda e um livro de apontamentos. Nas primeiras páginas senti-me indiscreto mas nas últimas, a cada palavra lida, senti cumprir o desejo de alguém que queria ser lembrado.
O relatório que eu também assinei, regista que o comboio perdeu os travões e descarrilou a 180km/h, não deixando sobreviventes. Vários registos proclamam que a hora da colisão foi às 7h40. Ninguém (incluindo eu) teve a coragem de testemunhar e assinar que último registo no caderno havia sido escrito às 7h50.






Yann Tiersen - - Summer 78

domingo, 2 de maio de 2010

Estrela cadente



- Aumenta o volume!
- NÃO DÁ MAIS!
Desfizemos o alcatrão rumo à grande cidade onde ela morava, a 1000 decibéis por hora. Havia chegado o momento. Demorei a decidir-me mas agora tinha tudo pensado. Não diria uma palavra. Iria direito ao assunto, mostraria os meus sentimentos por mímica, deixaria a minha sombra e o meu olhar falarem por mim. É assim que os poetas dizem que se deve fazer. É assim que acontece nos filmes bons.
- Adoro a velocidade! Acalma-me, penso mais devagar...
O acelerador desceu ao mais fundo dos meus pensamentos e eu encontrei-me. Estava feliz, em contacto com a minha alma. Estava consciente do que queria, daquilo que o destino que me havia reservado. Estava apaixonado mas mantinha-me calmo. Já tinha tido muitas paixões para garantir que nada corria mal.
Pedi-lhe que ficasse no carro. (Como todos os grandes amigos ele não quis deixar de estar presente neste grande momento, mas tinha de ir sozinho.)          
Estava tanta gente no edifício que meti as rosas numa caixa e caminhei de olhos fechados. Ninguém poderia saber que eu estava lá, ver o meu olhar denunciador.
Ela estava no fundo da sala, lindíssima, resplandecente, como eu sabia que ía estar. O sol ainda não tinha desaparecido e ela era já uma estrela, obscurecendo o salão com o seu brilho. As estrelas são assim... Relativizam a escuridão tanto como a definem, ao perfurarem o céu sem o romper.
Estive duas horas a admirá-la. Esperando a oportunidade certa, um momento único em que pudesse estar a sós com ela. Por fim, tal como os padres e alguns poetas prometem, o destino compensou-me e levou-a, sozinha, para uma enorme varanda no último andar.
Os raios de sol que desaparecem no mar quando ele se põe, criavam uma aura linda à sua volta. O vento acariciava o seu cabelo comprido, confortando a solidão que sentia, quase anunciando às escondidas que a mágoa estava prestes acabar. Quase me denunciando.
Pus a caixa das rosas por baixo do braço e caminhei para ela. Senti aproximar-me do paraíso, ou daquela luz que as pessoas vêem quando vão morrer mas depois algo corre mal e vivem. Ela virou-se e sorriu.
Abri a caixa e deixei-a cair. Depois, com as rosas na mão, aproximei-me lentamente e fixei-lhe o olhar. O límpido oceano dos seus olhos fez-me boiar na sua direcção. Toquei-lhe levemente na face e pedi-lhe desculpa. Contive as lágrimas e deixei cair as rosas. Ela olhou para baixo e não conteve as dela. Levantei a arma, encostei o silenciador contra o seu coração, senti-o bater duas vezes e disparei uma única bala. Dizem que o Cupido faz o mesmo.  
Desci as escadas e caminhei uns metros, em direcção à cabine telefónica que havia designado. O céu estava lindo, preenchido pelas estrelas que ignoram a escuridão e surgem quando o sol ainda não desapareceu por completo - as mais bonitas.
O envelope com o dinheiro lá estava, na letra "T" da lista telefónica, como combinado... Costumo cobrar mais, mas esta era diferente.

Filipe Lascasas

À Daniela, pela letra T.





Robert Francis - Junebug