segunda-feira, 28 de junho de 2010

Será possível ser-se mais miserável que os outros? (A. Cossery)



Conheci uma rapariga em Bratislava chamada Rose. Sentou-se ao meu lado numa tasca cheia de soldados reformados do exército vermelho e pediu-me um dos meus cigarros ocidentais. Depois perguntou-me se queria ir com ela para o seu quarto, num bairro ali perto. Estava demasiado embriagado na minha depressão e demasiado inconsciente com vodka para conseguir dizer não. Ao entrar, confiei nas suas taxas de conversão e coloquei os Euros que ela me pediu numa pequena caixa de porcelana com rosas azuis, pousada numa mesa de carvalho cheia de retratos estranhos - onde todos pareciam estar felizes.
Acho que devo ter adormecido por instantes porque quando abri os olhos, ela chamava-me, deitada numa colcha de cornucópias vermelhas, com um lençol que apenas revelava os seus ombros - mais brancos e puros que o próprio lençol.
Sentei-me ao seu lado com cuidado, para não quebrar a porcelana de que era feita. Pedi-lhe que apenas me abraçasse.
Acariciou-me os cabelos, apertou-me nos seus braços frágeis e deixou-me chorar. Chorei durante horas, temendo, a cada soluço, que ela me mandasse embora, que dissesse que o meu tempo tinha acabado... No entanto, os seus braços nunca me largaram, apesar dos Euros que lhe tinha dado não pagarem isso.

- Perdoa-me se te fiz lembrar alguém que amas – disse ela.
- Como posso lembrar-me de alguém que nunca conheci?
- Porque choras então? Não há ninguém para quem possas voltar? Uma casa, amigos, um emprego? Fala-me dos teus sonhos, conta-me memórias felizes da tua infância, da tua vida. Revela-me o que procuras e o que já encontraste.

Abri os meus olhos e eles mostraram-lhe que nada existia atrás deles. Deixaram-na contemplar o vazio que eu transportava.

- O meu corpo é um contentor de vácuo – segredaram-lhe os meus lábios por entre o seu delicado cabelo negro.

Adormeci no seu regaço e sonhei com amigos que nunca tive, com um amor que nunca vivi. Sonhei que o meu corpo transportava algo valioso, algo que todos invejavam. Sonhei ter encontrado um lar, uma cidade, um país onde quisesse ficar mais do que umas semanas.
Acordei com o sol a acariciar-me a cara e o perfume de uma rosa Eslovaca espalhado pela brisa que vinha da cozinha. Deu-me uma chávena de chá, tirou-me uma foto instantânea e colocou-a na mesa da caixa com  rosas azuis. 
Sorri para a fotografia e fingi estar feliz.

                                              

Filipe Lascasas



Virginia Astley - Summer Long Since Passed

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Obrigado Jogador nº47




O Tom Cruise, o Beckam, o Ronaldo, o Eusébio, a Catarina Furtado, os ministros, os deputados, o primeiro ministro, o Presidente da Republica, os Reis de Espanha e uma quantidade de gente realmente importante, fizeram questão de comparecer naquele dia glorioso.
O estádio estava lotado e tudo estava preparado para a despedida do grande Capitão. Era tal o brilhantismo com que conduzia a sua equipa que alguns chamavam-lhe “O Timoneiro”. Ele, com a modéstia que lhe iam permitindo, recusava tal alcunha e fazia questão de vestir uma camisola igual à dos outros, com um número maior que o seu nome.
Foi o primeiro a entrar no relvado, como sempre; não para ser o primeiro a receber aplausos mas porque simplesmente nunca havia conseguido em toda a sua vida, ser pontual - chegava sempre antes da hora. Era comum nunca ouvir aplausos antes de os merecer, por se antecipar ao público.
Naquele dia, porém, já toda a gente lá estava quando ele entrou. O estádio tremeu literalmente com as palmas dos milhares de espectadores presentes. O barulho ensurdecedor da homenagem e da glória durou 26 minutos e 59 segundos, a maior ovação contínua de toda história, com honras de recorde do Guiness.
O capitão chorou - os capitães choram sem medo.
O primeiro-ministro desceu ao relvado e entregou-lhe uma medalha juntamente com um pedido de desculpas pelo governo tardar em reconhecer o seu mérito e contributo para a pátria. Ele disse que não levava a mal, mas é opinião deste comentador que não se sabe até que ponto o medo de ser prejudicado na Segurança Social foi mais importante do que a sinceridade da sua opinião. O capitão era um homem sincero, mas como todos os homens (contribuintes) tinha medo.
Depois, todos os seus colegas de equipa o abraçaram comovidos – os soldados choram por capitães que choram por eles.
Mal o apito soou, ele entregou-se à suas tarefas, com o profissionalismo e a concentração de sempre. Fez o que fazia melhor - jogou, fez jogar, criou oportunidades, moralizou a equipa. É sabido que o seu treinador estrangeiro possuía também um longo e brilhante currículo de troféus, um carisma e uma fama invejáveis. No entanto, o capitão era de tal forma um timoneiro que o treinador pedia-lhe sempre opiniões e conselhos... As “más-linguas” dizem que o treinador deve parte do seu sucesso ao Capitão, mas em nome da verdade jornalística e desportiva, acho que tal não é de todo verdade; por muito que admire o Capitão e por mais dividas que lhe deixem.
Todos no estádio se emocionavam a cada golo... 
“Epá, eu sei que não é suposto gostar de sofrer golos, mas o privilégio de sofrer dois golos do capitão foi uma honra inesquecível.” – Comentou o guarda-redes da equipa adversária à entrada para os balneários.
Ao fim dos 90* minutos todos foram unânimes em reconhecer que o jogo tinha sido memorável e de grande qualidade. O capitão saiu em braços, levado pelos seus colegas e adversários. O Tom Cruise, o Beckam, o Ronaldo, o Eusébio, a Catarina Furtado, os ministros, os deputados, o primeiro ministro, o Presidente da Republica, os Reis de Espanha e algumas pessoas verdadeiramente importantes, fizeram questão de o esperar à entrada do balneário para lhe fazerem uma vénia.
O capitão chorou novamente.
À medida que abandonava o estádio (em transportes públicos) recebeu um aplauso ainda maior que o primeiro. No entanto, os senhores que registam os recordes (e que deviam ter aparecido noutras alturas) haviam já ido embora.

Era assim que devia ter sido, mas não foi.

O meu pai reformou-se após cinquenta e dois anos de trabalho, o triplo da carreira de um jogador de futebol. Como sempre, foi o último a sair do trabalho, por isso não havia ninguém a bater palmas quando finalmente abandonou o relvado.

Filipe Lascasas

*(90 x 0,57777)



Boondock Saints – The Blood of Cuchulainn

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Biografia segundo a minha mãe.

A minha mãe escreve-me cartas e gosta de Yann Tiersen.
Que mais posso dizer?
Talvez deixar aqui a última carta...


a tua biografia

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Notas de dívida




Procurei pagar sempre as minhas dívidas. As dívidas tornam-nos vulneráveis, cobardes, fracos.

Nota nº 1
Existem na minha vida, duas pessoas a quem fiquei a dever…
Uma delas aguarda-me no cemitério para onde me dirijo. Deixei cair o telemóvel quando atravessava a rua, baixei-me para o apanhar e quando acabei de ouvir o barulho dos pneus, já o pobre desgraçado que me empurrara, ocupava o meu lugar na capota de um carro…
“Como se paga uma dívida de vida a alguém que morreu?” – Até hoje, a única pergunta a que os meus contabilistas não conseguem responder.

Nota nº 2
Falava de dois credores… O segundo desapareceu, fazendo valer a alcunha que recebeu na escola: “Gasparzinho” – o nome de um fantasma simpático de banda desenhada que líamos em pequenos. Quando fui para aquela escola ele já lá andava, pairando errantemente de um lado para o outro - com uma caixa de sapatos a sair da mochila, as mãos enfiadas nos bolsos quase até aos joelhos, ombros caídos, cor pálida e uns olhos pequeninos enterrados no crânio. Era um “triste” – na escola isso significa que não se pertence a qualquer grupo. Confesso que me inspirava pena, mais até do que a que tinha pelos miúdos do grupo dos “Gordos”, dos “Betos” e dos “Crânios”. Esses eram alvo de chacota e alguma violência gratuita mas pelo menos possuíam um grupo de semelhantes com quem partilhar lamentações e infortúnios… No entanto, se queremos parecer fortes na comunidade escolar (ou em qualquer outra), não devemos nunca mostrar compaixão. Tal como os outros, bati nos “Gordos”, insultei os “Betos”, ameacei os “Crânios” e fingi que ele não existia.

Sem dívidas, sem compaixão ou qualquer outra vulnerabilidade, tornei-me líder do maior grupo da escola. Fui também eleito “Chefe de Turma”, o meu primeiro cargo importante. O “Chefe de Turma” era detentor do poder exclusivo da distribuição dos pacotes de leite a cada elemento, da organização de sorteios de cadernetas e alguns cromos que uns sujeitos com fatos e gravatas baratas, deixavam gratuitamente à professora (com o intuito de que a cobiça dos não premiados atingisse os “bolsos” dos pais). Por fim, era responsável por regar diariamente as plantas e os feijões em algodão que púnhamos a crescer nas janelas para as aulas de ciência. Foi esta última tarefa que me fez contrair a primeira dívida… Atrasei-me depois do toque de saída a regar os feijões e o meu grupo abandonou a escola sem mim. Quando finalmente saí, deparei-me com o maior grupo de uma escola rival à minha espera. Tinham paus e pedras. Queriam “negociar” uma dívida de futebol mal acertada… Chorei, mais do que um “Gordo”, um “Beto” ou um “Crânio”, limpando as lágrimas a cada passo que dava. Senti pena de mim – estava vulnerável, era fraco. Quando me preparava para enfrentar a humilhação, o “Gasparzinho” surgiu como um fantasma à minha frente e gritou:
- A prova de que vocês não valem nada a jogar futebol é que não conseguem sequer apanhar um “lingrinhas” como eu.
Empurrou-me e desatou a correr. Passaram todos por mim, atropelando-se para o apanhar. Eu regressei a casa por outro caminho.
No dia seguinte, o “Gasparzinho” apareceu cheio de feridas na cara e nos braços. Passei todos os “recreios” a tentar falar com ele sem ser visto, mas ao contrário dele, estava sempre rodeado de pessoas. A forma de agradecimento mais conveniente que encontrei, foi guardar-lhe os pacotes de leite que traziam gravuras de aviões de guerra – os mais desejados. Passei também a dar-lhe mais dois pacotes por dia.
(O meu psicólogo comentou um dia, a respeito desta história, que eu estava a tentar comprar o silêncio do “Gasparzinho”. Não podia estar mais enganado… Ninguém acreditaria na história dele, uma história que confrontava a sua força imperceptível com a minha cobardia bem camuflada; um “fantasma” contra um “Chefe de Turma”.)
A mais pura das verdades é que a única altura do dia em que sentia algum conforto e paz interior, era quando, disfarçadamente, o via a colocar mais uma gravura de avião recortada na sua caixa de sapatos.

Nota nº3
Cheguei ao cemitério e fiquei surpreendido com o reduzido número de pessoas presentes no funeral. Imaginava que um sujeito com a coragem e o altruísmo para me salvar de um atropelamento, mesmo sendo ainda jovem, era alguém que já se notabilizava na sua comunidade… No mínimo, um herói para alguns e um exemplo para os restantes. No entanto, mesmo com a presença dos familiares mais próximos, não estavam cá mais do que dez pessoas.
Quando o Padre terminou a cerimónia, a mãe limpou as lágrimas, deu dois passos em frente, olhou-nos a todos e retirou de um saco de plástico uma caixa de cartão…
- Era nesta caixa que o Manuel guardava as coisas que lhe eram mais queridas. Vou entregar uma a cada um de vós porque sei que ele gostaria que ficassem com elas.
Apenas ergueu a cabeça quando chegou a minha vez. Fixou o meu olhar durante uns segundos e colocou-me na mão dezenas de gravuras de aviões,  estampadas em papeis de pacotes de leite.

Filipe Lascasas




Em 2001 ganhei a cicatriz no canto do meu olho direito a lutar pelo "Gasparzinho". 
A todos aqueles para quem tenho dívidas.




Noiserv - Tokyo Girl


quarta-feira, 9 de junho de 2010

Essência. (Entrevista entre um biólogo e um jornalista)



Recebi uma carta com o bilhete de avião e as indicações sobre local onde deveria encontrá-lo...

- Anda à procura de mim também, não anda?
- Não... – Respondi, com o sorriso que utilizo para premiar bom sarcasmo – Andava à procura apenas de si.
- Não diga isso... Nunca andamos à procura de uma só coisa...

Entrámos no táxi, deixei as malas no hotel e fomos a uma pequena cafetaria... Abri a mala, pousei o gravador em cima da mesa e comecei a entrevista...

Melitaea aetherie... Assim se chamava. Acreditava que ela era de origem Russa, mas não o sabia ao certo. A verdade é que a procurou por todo o mundo. Gastou todo o seu dinheiro, hipotecou a sua casa, perdeu o emprego mas nunca desistiu de a procurar.
Viu-a pela primeira vez da janela de um comboio que atravessava a Vagueira e apaixonou-se nesse instante. Contou-me que tinha previsto todos os detalhes do encontro: o lugar, a hora do dia, a roupa que tinha no corpo, até o número de nuvens no céu. Viajava quilómetros e caminhava durante horas até encontrar tal lugar... Um vale imenso, cercado por montanhas generosas com a sombra. Sentava-se numa rocha rodeada pelas tulipas vermelhas que ela mais gostava e esperava-a, até cair a noite.
Após milhares de lugares, somados a 48 meses, avistou algo no horizonte. Soube imediatamente que era ela. Os olhos do corpo desfocavam a sua imagem, mas os da alma avistavam-na com nitidez.
Ela aproximou-se com cautela, serpenteando as flores, parando ocasionalmente para falar com elas. Apesar da ansiedade, ele permaneceu inerte, contemplando-a durante horas. Depois levantou-se, pousou tudo o que tinha na mão e dançou com ela, perante uma plateia de tulipas vermelhas.

- Não teve medo de a perder com tanto tempo à espera, tanta hesitação?
- Não. Quando um sonho se concretiza devemos vivê-lo. Em toda a sua essência, respeitando meticulosamente todos os pormenores que o compõem. Sabia que ela não iria embora antes de dançar comigo. Era assim que o tinha sonhado.
- E depois?
- Bem, depois tirei esta foto, peguei na rede e apanhei-a. Ela esperou por mim.

Peguei na foto, perplexo e confuso...

- Então sempre a apanhou! Trouxe-a consigo?
- Claro que não – disse ele, num tom que não me deixaria presumir sarcasmo – retirei-a da rede com cuidado, segurei-a com um dedo e deixei-a partir.

A foto era real – comprovaram-mo na redacção. Qualquer museu de História Natural lhe teria oferecido milhões pela Borboleta e no entanto, após uma vida inteira de procura, ele tinha-a deixado partir...

- Eu sei, parece ilógico – respondeu-me com um sorriso – mas tente compreender... Eu tinha encontrado o que procurava. Não poderia impedi-la da sua própria procura. Além disso, poderá haver mais alguém que também um dia viva para a encontrar. Talvez depois de ler o seu artigo, quem sabe?! Todas as criaturas têm o direito de viver para encontrar ou, pelo menos, morrer procurando.

Da redacção ao comboio, do comboio até ao mar, do mar até casa... Todos os dias procuro novas razões para procurar.
Ás vezes encontro. Depois danço, sorrio e vivo meticulosamente todos os pormenores daquilo que sonhei. Abro as redes antes que os pormenores se esgotem e antes que se estrague o que é belo por ser efémero.

Um dia encontrei-o novamente, desta vez num bar, no Bairro Alto. Carregava um olhar vazio, perfeitamente comum e igual ao de qualquer um de nós - quando sentimos fugir das mãos algo que há muito procurávamos...
“Off the record” e com muitas cervejas na mesa, fiz-lhe mais uma entrevista...

- Explica-me este sentimento, a razão de estarmos bêbados e sem nada para procurar.
- Em momentos como este, dançamos sozinhos, em praias onde não tiras os sapatos e crescem tulipas vermelhas. Questionamos tudo o que deixámos fugir e a razão de uma nova procura demorar tanto tempo a chegar. Em momentos como este, os minutos de espera parecem anos e é em momentos como este que a maioria sucumbe.

Não sucumbimos. Não fechámos as redes – pelo menos esta noite. Rimos e bebemos mais - desafiando os anos a transformarem-se em minutos - enquanto ressacamos em cima de tulipas murchas.
Uma empregada com calças descaídas vai novamente oferecer-nos os tremoços e a cambalear, vamos embora com uma certeza (“off the record”):

Desde as viagens à lua até à contemplação do átomo... Ainda não percebemos que na essência da nossa essência, jaz a esperança de nunca encontrarmos nada definitivo, de nunca obtermos respostas finais.
Nascemos cheios de perguntas e vivemos para a procura. Quando nos é permitida uma boa morte, morremos velhinhos, cheios de perguntas.
Quando já nada mais houver para procurar e todas as perguntas tiverem resposta, a humanidade saberá, na essência da sua essência, que terá chegado o seu fim.

Segundos antes da nossa extinção como humanos, compreenderemos como Deus está e sempre esteve, triste, velho e sozinho. Sentado, talvez - numa rocha rodeada por tulipas vermelhas - à espera que cheguemos.

Filipe Lascasas

Para a Mi, que há anos me convence a escrever, mesmo quando não devo quero.




Norsev – Tokyo Girl + Fanfarlo - Comets