terça-feira, 7 de junho de 2011

Recados em guardanapos deixados por ratos (como tu e eu)





I – O Mr Unlucky.


Em 1997, no início de uma aula de Citologia Animal, foi-nos anunciado que iríamos estudar a anatomia de ratos. 
A funcionária entrou na sala com uma jaula cheia de ratinhos brancos e cinzentos, completamente alheios ao que lhes iria acontecer, focados numa vida que sempre haviam tomado como encarcerada. 
O professor foi minucioso na explicação da operação, métodos e gestos que deveríamos aplicar. Ocupou com isso a primeira meia hora de aula. No entanto, quando chegou à parte da anestesia, desleixou-se - foi vago e precipitado.
Questionei pela primeira vez se teria escolhido o curso certo quando apontei o bisturi à barriga do MrUnlucky – um nome que achei apropriado para o pobre rato que a funcionária deixou na minha bancada. 


Recado para o mundo:

Decidi ir para o curso de Biologia numa altura em que não tinha ainda convicções sobre o que queria fazer na vida (uma sensação que só se prolongou até à minha idade actual). Lembro-me de ter a folha de candidatura às Universidades em cima da mesa durante dois dias e de no terceiro ter visto um documentário das viagens do Jacques Costeau à volta do mundo, com Biólogos a encarnarem marinheiros, a navegarem os mares de todo o mundo, a admirarem todas as formas de vida do planeta. 
Quando o documentário acabou, peguei na folha e assinalei “Biologia” em todas as opções. Amava a vida em todas as suas formas, era bom a ciências, sentia um desejo urgente de viajar e a projecção de mim num navio a navegar pelo mundo, era a inspiração que me faltava.

Ass Eu.

Demorei o dobro do tempo a garantir que a anestesia tinha sido eficaz e apontei o bisturi à barriga do Mr Unlucky. Questionei pela primeira vez porque tinha escolhido um curso onde ameaçava uma vida em vez de a admirar.
A meio da aula, o rato do meu parceiro de bancada (que não tinha nome mas a ter seria “Mr Very Unlucky”) acordou de uma anestesia mal dada. O meu colega entrou em pânico e o MrVery Unlucky, de barriga aberta e entranhas de fora, olhou para nós e para o mundo – uma sala bem diferente da jaula onde nascera e avassaladoramente maior. O mundo. 
Eu apressei-me a pegar no frasco de Clorofórmio mas quando acabei de molhar o pano, o meu colega tinha já esmagado a cabeça do “Mr Very and Horribly Unlucky” com a base de um Erlenmayer.

- És um cabrão, apetecia-me fazer-te o mesmo.

Recado para o mundo:

Não foi necessariamente por causa desta frase, mas a verdade é que na Universidade não fiz muitos amigos no meu curso. 
Não controlas quem te rodeia no trabalho mas controlas quem te rodeia o resto do tempo. Se não fores cuidadoso, desperdiçarás tempo com alguém que eventualmente, por pânico, egoísmo ou puro instinto de sobrevivência, não hesitará em esmagar-te, com  um Erlenmayer ou qualquer outra coisa que esteja à mão.

Ass. Eu



Eu não quis saber dos métodos, do gestos nem do relatório. Empurrei com cuidado e minúcia as entranhas do MrUnlucky para dentro do seu corpo e cosi pela primeira vez na minha vida, a ferida aberta de uma criatura viva.

Recado para os meus amigos de infância:

Não teríamos tantas cicatrizes feias se houvesse Citologia Animal no liceu.

Ass. Eu

Nos dias que se seguiram, estava mais preocupado com o estado de saúde do Mr Unlucky do que com o facto de o professor ter ameaçado chumbar-me - enquanto não realizasse uma operação que o obriguei pelo menos a designar como “autópsia”.
Mr Unlucky nunca mais ficou bem. Ao segundo dia, espevitou mal o tirei da jaula, até comeu. No entanto, a partir do terceiro, começou a arrastar-se. A funcionária dizia que ele ficava à minha espera. Arrastava-se até à porta da jaula e depois ali ficava, com o olhar perdido no horizonte que lhe era possível. Quando chegava, pegava nele com cuidado e ele ficava quieto na palma da minha mão, com um olhar vencido mas menos triste. Concentrava todas as forças que tinha no acto de olhar e cheirar tudo à volta, de sentir a mais pequena brisa que percorresse a sala. 
Um dia acordei a pensar no MrUnlucky. Na verdade, tinha acordado de um sonho estranho, onde ele se sentava à minha frente num bar, transformado numa versão gigante de rato. Falava comigo 10 anos mais tarde e contava a sua história de vida após um dia em que não o devolvi à jaula e ele havia descoberto o mundo – muito além da sala. De vez em quando, interrompia o seu discurso e puxava um guardanapo, onde escrevia recados para mim ou para o mundo.
Nessa mesma manhã, coloquei-o no bolso da bata e fui lá fora. Pousei-o na relva.
Ele ficou quieto, com medo. Tremeu durante três minutos, levantou a cabeça e caminhou pela relva devagar, a sentir cada passo que dava, livre. Depois, uns metros à frente, olhou para mim, respirou profundamente e morreu. 
Fiz-lhe a autópsia de lágrimas nos olhos e o relatório da mesma. O professor riscou a vermelho todas as partes do relatório onde mencionei “autópsia” mas passou-me, com 17 valores.


II- O Júnior


Fui ao laboratório comunicar o roubo mas ele já havia sido notado...

- Não te preocupes, ele já não constava no inventário... Sabes que ele tem um filho? Provavelmente não é o único mas aquele é sem dúvida dele, com a risca cinzenta a atravessar-lhe as costas.

A funcionária virou costas para tomar um “segundo chá” e deixou-me sozinho no laboratório. Peguei no filho, enrolado em si e transformado numa pequena bola. Coloquei-o num dos tupperwares mal lavados da minha mãe, destinados a voltarem com comida. Pousei-o ao meu lado no banco do carro e regressei a casa. 
Dois anos mais tarde, quando regressava a casa, após uns meses de viagem sem destino, dei comigo a pôr a cabeça fora da janela de um comboio, a olhar e a cheirar tudo à minha volta. Senti o vento bater-me na cara. 
Regressava a casa – da qual sentia saudades – mas também a uma vida que reconheci (já em viagem) estar a fugir. 
Quando me sentei, olhei o meu reflexo e vi um olhar vencido e triste. Procurei ocupar o pensamento com recordações de viagem e histórias para contar mas acabei por recordar o Mr Unlucky. Tentei distrair-me e escrever recados para o mundo mas não havia guardanapos; muito menos algo que realmente valesse a pena o mundo ouvir.
Na janela que não podia evitar, reconheci o meu olhar no dele – quando o devolvia à sua jaula. Foi aí, duas estações antes da chegada, que compreendi que o Mr Unlucky se arrastava até à porta da jaula não à minha espera mas sim de algo que havia conhecido no dia da sua autópsia: liberdade. Eu era apenas o guarda prisional com as chaves da cela, a mão que o levava ao “pátio”, à brisa e ao mundo.

Recado para o mundo:

A liberdade é um conceito definido pela alma. O que a alma não conhece não lhe pode fazer mal.
As doenças da alma não são como as do corpo - que sucumbe a seres que nunca viu ou conheceu senão em livros ou num microscópio. As doenças da alma nascem de algo que é sempre conhecido ou reconhecido por ela.
À minha alma deram a conhecer o mundo, à escala de uma sala. 
Quando me devolveram à vida, devolveram-me àquela que tinha, devolveram-me à jaula. 

AssMr Unlucky



A cidade do Porto revelou-se prepotente e bela na janela do comboio. Ignorou o meu reflexo e fez questão de se mostrar indiferente ao meu regresso – como uma esposa abandonada pelo marido em viagem, consciente que ele encontraria muitas amantes mas acabaria por regressar a ela, rendido.
Os meus pais demoraram treze dias a perdoarem-me os sessenta e quatro em que me atrasei - relativamente à data que anunciada para o meu regresso.
 
Entretanto, o Júnior havia crescido. 

Para dificultar a reconciliação com a minha mãe, ele nunca tinha deixado de estar presente, fazia sempre (e às vezes de uma forma inexplicável para um ser desprovido de dotes racionais) aquilo que ela lhe pedia. Agia sempre de uma forma expectável.
Não por vingança ou ciúmes – e disso o meu psicólogo tem a certeza – um dia
deixei a porta da jaula do júnior aberta. Fiz um caminho de comida até à porta do quintal e depois dela, um caminho de comida até ao quintal e depois do quintal, um caminho até à floresta. Na manhã seguinte, a comida estava toda comida até ao quintal, mas ele repousava exausto na sua jaula, no seu emaranhado de lã. 
A minha mãe acordou, deu-lhe comida e ele fingiu que a comeu. Mal ela virou costas saltou para a roda e começou a correr com a cabeça virada para ela – a certificar-se que ela o via. Ela baixou-se junto à jaula, chamou-o e ele veio. Encostou a cabeça ao chão e ela fez-lhe umas festas na nuca. Quando parava, ele voltava à roda e corria ainda mais rápido, até ela voltar.


Recado para o Júnior:

Não compreeendo como és indiferente àquilo que o teu pai mais desejou.

Ass. Eu.


Este ciclo durou quatro anos. Ao terceiro, ele perdeu a visão e a jovialidade. Tudo permanecia igual excepto no ritmo. Reconhecia os passos da minha mãe e vinha à porta ter com ela. Comia, recebia as festas e ia para a roda, desta vez não com a cabeça virada para ela mas para todos o lados, a ver a sua amada – à esquerda, à direita, no chão e principalmente no céu.  
Nesses quatro anos, houve outras alturas em que a jaula havia ficado aberta. Havia alturas em que ele tinha saído, mas sempre voltado.


Recado para o Júnior:

Eu amo a vida. Tu amas a minha mãe mais do que a vida.

Ass. Eu.


Recado para ti:

A vida não parece encarcerada quando se tem o amor das nossas vidas por companhia. Nem a cegueira importa, porque a cara de quem amamos permanece para sempre encarcerada na nossa alma. 
O amor é a única coisa na vida que nos faz ver mundo como queremos e não como ele realmente é. É a única coisa capaz de relativizar por completo muros, grades e portões – porque a liberdade é um conceito definido pela alma e no amor, ela corre, ri e voa. No infinito. Para sempre. 
A cegueira e tantas outras privações, quando ensopadas em amor, são apenas pormenores.


AssJúnior


Um dia, ao almoço – meses após a minha mãe me ter perdoado - falámos do Júnior... A conversa relatou pequenos gestos seus, pequenos factos, no entanto resumiu-me a um único tema: amor e fidelidade.
À tarde ouvi a minha mãe dar um grito. O Júnior permanecia inerte, deitado de lado, apenas com uma pata em cima da roda.
A minha mãe ficou a chorar, sentada numa das cadeiras da cozinha e o meu pai pegou nele. Descemos até ao quintal e eu escolhi o melhor sitio possível para cavar uma pequena cova. A minha mãe desceu a chorar, levantou a mão do meu pai e deu um beijo no Júnior. 
Eu abracei a minha mãe e o meu pai colocou cuidadosamente o Júnior um palmo abaixo da terra do nosso quintal – no sitio onde melhor poderia ver as flores da minha mãe crescerem.
De repente, o Júnior mexeu-se.
Estava vivo. Já nós... Aterrados. Começou a arrastar-se com uma só pata – a direita, a da frente. Nós ficamos congelados, quase sem respirar e com as mãos pousadas na terra. De tão aterrados, não conseguimos perceber que no círculo de seis mãos que o rodeavam, ele se dirigia a uma em particular – a da minha mãe. Quando lhe tocou, cravou as unhas nas costas da mão e puxou-se para cima dela. Parou. Aconchegou-se, fez um grande suspiro e adormeceu. A minha mãe permaneceu imóvel durante muito tempo, com o Júnior nas costas da sua mão.
Ao fim de uns minutos ela levantou-se e ele, ajudado por uma brisa primaveril, pôs-se de pé. Eu, a minha mãe e o meu pai rejubilamos em alegria. O Júnior, de pé, dançou uma valsa com a minha mãe. (Uma valsa, um tango ou algo entre os dois – algo que a minha mãe faz sempre que está feliz.) 
Eu e o meu pai sorrimos e eles dançaram quintal fora, a rodopiar, a encostar narizes, a celebrar. 
Quando a dança terminou, a minha mãe subiu as escadas e colocou-o na jaula. Ele deu dois passos em direcção à roda, parou, olhou para trás e voltou a cair. Mal via mas olhou directamente nos olhos da minha mãe. Depois ficou a olhar para os meus...

- Eu sei o que se está a passar, o que ele está a sentir.

Peguei nele e levei-o lá para fora. Segui o mesmo caminho para a floresta que havia feito um dia, enquanto deixava comida de rato para trás...
Pousei-o no chão e ele deu três passos em frente, compassados, com ansiedade mas muita firmeza – como se sentisse o chão e todo planeta, em cada passo que dava.
Após três passos a olhar em frente, parou e olhou para a minha mãe. Depois deu mais dois passos. Olhou para ela novamente e percebeu que ela apenas olhava para ele, não para onde ele se dirigia. 
Todos os passos seguintes foram iguais. Desapareceu no ponto fixo onde todos os caminhos não percorridos terminam. Nunca mais o vimos.


III – Sair da jaula


Passadas umas semanas ela pousou o último prato de sopa na mesa e disse:

- Tu ao menos voltaste.


Recado para a minha mãe:

Ele voltou mais vezes do que eu.Tantas quantas as necessárias para provar que se pode amar algo mais que a vida e a liberdade. Chegará o dia em que partirei novamente, espero não ser tarde mais... Quando é tarde não se volta.

Ass. Eu.


O dia de voltar a partir chegou. Fui convidado a ir para Lisboa – a capital.
Como qualquer capital, era o sítio onde tudo acontecia, ou pelo menos onde acontecia tudo o que humanidade consegue e faz acontecer, de bom e de mau. A decisão de partir não foi fácil - demorou uma semana. Estava cansado de viajar, feliz no meu canto de lã e a viver numa cidade demasiado calma e pequena, onde muitas vezes se reconhecem caras numa versão sempre exagerada de trânsito. Achei que a culpa da minha apatia era do lugar onde estava, das pessoas que me rodeavam – demasiado importantes, a ocupar todo o meu tempo sem deixar nenhum para mim. 
Todas elas fizeram brindes, duas ou três festas de despedida e eu parti.


Recado para Ratos como eu:


Pedi uma caneta ao empregado deste café em Belém e neste guardanapo quero revelar-vos que a vida fica reduzida de forma espontânea e natural aos dias que vêm. Passa ao ritmo de uma roda onde acabamos por correr, a entreter outros, a sobreviver – sem ir a lado algum.
Chegam as sextas à noite e apanhamos uma bebedeira ou algo análogo, sozinhos, acompanhados, tanto faz. No sábado, ressacamos e pensamos fazer alguma coisa nova - que na verdade é uma coisa velha mas que mesmo assim, raramente fazemos... 
Talvez consigamos vencer o sofá e andar de bicicleta, talvez vejamos o pôr-do-sol, talvez molhemos os pés no mar. Ás vezes fazemos alguns quilómetros de alcatrão, visitamos algum lugar onde nunca estivemos, apesar de perto. Fazemos coisas que quase parecem novas mas a “sensação” permanece, o sentimento de ir apenas um pouco longe da roda – com  um aperto que não identificamos mas não é mais do que a trela curta com que nos passeamos, com medo de nos perdermos. 
Vem o domingo e com ele a certeza inevitável que vamos ter de voltar e nada mais podemos fazer do que gastar o tempo que resta até ao despertador. Gastamos o tempo que nos dão fazendo nada, vendo filmes, navegando na Internet, ouvindo música sem a necessidade que ela nos inspire, vendo televisão. Visitamos focinhos familiares e a utopia que todas eles te acompanharão; a ilusão que enquanto os virmos a vida que outrora tivemos, realmente não mudará. No entanto, não partilhamos tempo – gastámo-lo, uns com os outros.
Gastamos o tempo fazendo nada. Até o despertador tocar. 
Depois vem a segunda de manhã e voltamos ordeiramente para roda onde entretemos quem nos dá o ninho de lã e a comida - que apenas realmente usufruimos ao sábado e ao domingo. Esperamos no trânsito, tentamos rir com humor fácil na rádio, insultamos gratuitamente carros que não respeitam leis de trânsito inexistentes em filas de espera. Repetimos o processo no dia a seguir e no outro depois desse, ansiando por sexta-feira. 
Vêm as férias e com elas sextas, sábados e domingos de dois, três, quatro dias, não importa – a segunda chegará e como sempre, será de apenas um dia.
Sonhamos com o que vimos longe da jaula – por nos termos um dia deixado ir. Às sextas-feiras nada fazemos senão caminhar até à porta que deixam aberta, esperando que a vida chegue no bolso da liberdade. A liberdade ajoelha-se à porta, faz-nos umas festas na nuca e sussura-nos palavras de mudança irreflectida, revoluções, decisões irracionais – propensas a nos colocarem numa situação onde iremos ser esventrados. Afinal, a linha que separa coragem de estupidez é muito ténue e muitos questionam se ela sequer existe.
Optamos não ser esventrados, optamos pelo ninho de lã, pela comida certa a horas certas. Optamos permanecer vivos.
Alguém inventou uma palavra para o desígnio de permanecer vivo: sobrevivência. Para um biólogo, até para o Jacques Costeau, nenhum ser vivo faz mais do que tentar garantir isso. É  seu desígnio.
Na ausência de um único relatório de citologia animal (ou qualquer outra disciplina) a reportar ter ficado com vestígios de alma e sonhos na ponta do bisturi, nada temos em que nos basear para mudar ideias, para não ficar apenas à porta e fazer os dias passarem na roda do nosso desígnio. 
A vida nada mais será então do que os dias que estão para vir, sobrevivendo até uma segunda feira que não dará lugar a uma terça.


Ass. Um de vós


IV – Uma segunda-feira diferente


Algures num laboratório, um rato mordeu com força a mão de uma funcionária e a porta ficou aberta... Uns ratos ficaram enrolados nos ninhos de lã, outros atropelaram-se a correr nas rodas, o melhor que podiam - para que ninguém ficasse zangado. No entanto, dois ou três ousaram fugir. 

Algures numa autoestrada de Lisboa, numa fila interminável de carros um tipo atravessou-se à minha frente sem dar sinal e eu bati-lhe com o carro. Saí do carro e ele também. 

- Vai assinar a declaração?
- Só se for para se dar como culpado.
- Então chame a policia

Depois afastei-me e fui buscar um cigarro. Encostei-me ao carro e à minha volta centenas de olhares enjaulados, a minutos de correrem em rodas, olhavam para mim. 

Algures num laboratório, um rato olhou alguns a dormir e outros a correr com toda a pressa que podiam para fazer a comida chegar – a única forma que tinham de o conseguir. Um rato nunca saberá em que dia da semana está mas percebe que são todos iguais, anseia por outros diferentes... 
O barulho ensurdecedor das rodas, o silencio insuportável da apatia e da rotina pingaram lentamente na alma de um rato e foram-se condensando em pura raiva. Uma mão abriu a porta e toda a raiva converteu-se numa dentada, toda a apatia foi quebrada por um grito. 

Algures numa autoestrada de Lisboa, uma pinga de suor correu-me pela testa até ao olho direito e dele nasceu uma lágrima que cozeu no meu rosto, rendida ao sol. Dois condutores atrás de mim saíram dos carros e começaram aos berros...

- Vão tirar os carros? Estão a estorvar!
- Estão atrasados para quê? Para correr na roda?

(Não sei ainda hoje se cheguei a dizer tudo isto). Senti o isqueiro na mão e apertei-o com força. Depois, com a certeza que os meus dedos não se encolheriam, esmaguei o meu punho contra a cara do rato que falara primeiro. Depois contra a segunda. 
Voltei-me e o culpado do acidente olhava-me em pânico, como um rato fora da sua jaula pela primeira vez. Trancou-se no carro a digitar números de 3 dígitos no telemóvel e eu parti a janela. Tirei-o cá para fora e tentei aliviar a minha testa em brasa contra a dele. As lágrimas e o suor coziam-na e eu sentia a frescura do ar cada vez que a deixava cair em cima dele. A raiva foi desaparecendo na frescura dos meus gestos e o silêncio insuportável da apatia foi substituído por um barulho diferente - o meu.

- Eu assino... eu assin... eu assi... eu... 

Ninguém assinou. Arranquei o resto do pára-choques com um pontapé e continuei na estrada para o escritório.
No entanto não parei, evitei qualquer saída, segui em frente, abri as janelas e senti o vento bater-me na cara. Foi a ele que lancei a minha carta de demissão, na forma de um sorriso e com um grito quase tribal como assinatura.
A gasolina acabou mas eu continuei a caminhar, em frente, numa estrada que parecia interminável e inóspita mas diferente a cada metro. Senti ansiedade e medo em cada passo que dei mas também a terra e todo o planeta debaixo de cada um. Passo a passo, fiz desaparecer qualquer ponto fixo no horizonte.  
Senti fome e cansaço. Não vi comida nem sitio para dormir em lado algum. Apenas um horizonte desconhecido a prometer nada mais do que a novidade. Não havia dúvidas que onde quer que estivesse não estava numa jaula. Quaiquer que fossem as estradas, eram rectas, não rodas. Por isso nunca parei de caminhar.


V – Fora da jaula


Não sei quanto tempo de caminhada me resta nem que caminhos farei, mas curiosamente todos me têm levado ao norte – talvez porque é para onde as bússolas apontam. 
No norte adivinho um lar, não uma casa. Finalmente – depois de uma vida a provar o contrário – adivinho um destino definitivamente melhor do que a viagem.

Recado para ti:

Uma casa é algo para onde vais. Um lar é um lugar para onde regressas. Uma casa arranja-se mas um lar procura-se, descobre-se - muitas vezes sem querer. Não é um lugar feito de grades, portas, janelas ou paredes. É feito de pessoas, afectos e sensação de pertença. 
Quando encontrares o lugar onde pertences, jamais encontrarás restrições à vontade de partir mas para sempre sentirás a de voltar. Nunca lá encontrarás silêncios de rotina ou apatia pois todos à tua volta fazem um barulho diferente – o teu. 

Ass. Junior



Há umas noites, no caminho, voltei a ter um sonho em que falava com ratos... À volta de uma mesa, o Mr. Unlucky e o Júnior partilhavam histórias, escreviam recados em guardanapos, com caligrafia de rato. Deixaram-nos espalhados pela mesa, tal como eu aqui. 

Recado para ti:

Nunca em momento algum fora da jaula caias na tentação de te julgares invencível pois na verdade, nunca estarás tão vulnerável. As paredes que te impedem de ver o sol são também as que te protegem das mais horríveis tempestades. Num minuto o mundo pertence-te e no seguinte estás a ser esventrado. Não te deixes asfixiar mas sê grato por cada minuto em que respiras esse ar que é só teu.

Ass. Mr. Unlucky






Recado para ti:

Se tiveres o amor da tua vida como companhia, aconselho-te cuidado. O amor é mestre em camuflar as leis da natureza... Haverá dias em que chove e não te sentirás molhado, haverá dias em que nada mudou e tudo parece diferente. 
Saibam estar atentos, saibam perceber se caminham numa roda a olhar para o outro ou numa recta, a olhar na mesma direcção. 

Ass. Junior




Recado para o mundo:

Não choveu, não tenho fome, sei onde hoje vou dormir e estou grato... 
Não vejo quem caminha ao meu lado mas sinto a sua mão. Continuo sem saber em que dia da semana estamos mas tenho a certeza que o de amanhã será melhor...Porque será diferente.

Ass. Eu,


Filipe Lascasas



Para ouvir com:

Bat For Lashes – Daniel (Qual curso?) / Dan Black – Wonder (Regresso ao Porto) / Yann Tiersen – First Rendez-vous (o Junior cresceu)/ Yann Tiersen – From Prison to Hospital (O Júnior morre)/ REM- I’ve Been High (O Júnior parte e eu também) / Prodigy - Omen (Acidente na Autoestrada) / Tune-Yards – Bizness (Demissão) / Mumford and Sons – The Cave (Fora da Jaula) / The Airborne Toxic Event – All At Once (Liberdade).

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

3 Anjos

Ainda não está acabada...

Mas tinha de a publicar antes das outras. Ainda não vi baleias a dançar mas a lista não acabava aí.



3 Anjos



I - O Caído

Vi-te dois dias antes de ser despedido; caminhavas nas ruas de Lisboa, sozinha, desprotegida. Na impossibilidade de te acompanhar, de te proteger, voei para a metade do planeta onde o sol ainda brilhava e fiz uma visita a todas as flores e borboletas que aí moravam. Quis confirmar que nesse dia, Deus não se esqueceria de proteger algumas das criaturas mais belas e frágeis da sua criação... Soube assim que tinhas chegado sã e salva à tua morada.
Desde então sigo-te para onde quer que vás. Sou aquele que te protege. Fui despedido por um deus que não tinha fé em mim. Sou um anjo caído.
A tua existência levantou-me mas a minha transparência perante o teu olhar, devolveu-me o triste cargo de um anjo da guarda caído. Mas já não sou um anjo, apenas um humano preenchido de tristeza por a sua carne ser invisível à tua alma – que outrora pude ver despida.

Os sonhos são a vida real de um anjo e neles voavas comigo, de mãos dadas. Mas agora acordo antes de ti, aconchego-te e parto para o anonimato. Sou aquele que te protege dos vilões, que te salva dos perigos mundanos, que apanha todas as tuas lágrimas e devolve os teus sorrisos solitários. Sou a brisa que acaricia os teus cabelos, a gota de orvalho que cai nos teus lábios. Sou o sol que te bate na cara numa manhã fria de inverno e a fonte por onde bebes os teus desejos.
Sou (te) invisível. Sou um anjo caído na terra, um humano caído em desgraça.

- Tu és a prova que os anjos existem, és a razão pela qual existo.

Gritarei eternamente estas palavras à tua alma, pois nunca me será permitido sussurrá-las ao teu ouvido.

II - O da Morte

Todos os dias percorria sete quilómetros de mar até chegar a casa. A estrada que o trazia de volta ao lar, namorava com o oceano durante dez minutos – a uma velocidade média de cento e setenta quilómetros por hora. Nunca o vira.
Tinha uma pequena porção do mundo nas suas mãos. Fazia-o rodar, fazia todas as órbitas passarem por ele. No emprego, todos o tratavam como o centro do universo – por uma questão de sobrevivência planetária ou até mesmo lunar.
Hoje acordara determinado – com um telefonema da sua assistente, há já duas horas a trabalhar para o seu sistema solar. Mesmo hoje, não sabia o nome da voz que o acordara.
Levantou-se com o pensamento preenchido pelos planetas que naquele dia iria conquistar. A conquista do universo era sua meta.

As verdadeiras guerras, conquistas e invasões do mundo actual dos Homens, fazem-se por telefone, fax, computador ou qualquer outra coisa com botões. Já não requerem ver a cara do inimigo, nem quando desferem o golpe final. Inimigos, amigos... Todos vos são anónimos.

Ao fim do dia, ganhara mais uma guerra. Havia conseguido mais um planeta e respectivas luas para orbitarem à sua volta. Aceitou as palmas, bebeu o champanhe, fez promessas (aos outros) de mais conquistas.

Uma avaria no carro fê-lo parar a meio do namoro entre a estrada e o oceano. Telefonou para o reboque. Olhou finalmente para o mar e caminhou na sua direcção.
Viu um miúdo no meio da areia branca, a correr de forma desesperada entre a água e a areia...
Parou junto àquilo que parecia ser uma pequena cova feita na areia e esperou que o miúdo regressasse do mar. A presença de um astro gigante – vestido com um fato escuro e uma gravata – não perturbou o sentido de missão do miúdo que o desviou, com cuidado, para poder encher a pequena cova com as mãos cheias de água do mar.

- O que fazes? – Perguntou autoritariamente o conquistador de planetas.
- Estou a guardar toda a água do mar nesta cova. Esta cova é minha! – Disse o miúdo.

O reboque chegou. O miúdo desapareceu no espelho retrovisor de algo há muito tempo avariado.
Rebocado e sem bateria no telefone, viu finalmente o oceano namorar com a estrada e consigo. Chocou-se com o facto de não reconhecer pela janela, como passageiro, o caminho que todos os dias fazia para casa. Deixaram-no em casa.

Na manhã seguinte, acordou e percebeu que estava sozinho. Apenas eu me mantinha ao seu lado, desde o dia anterior – mas ele não me via.
Percebeu que por mais planetas que conquistasse – para orbitarem à sua volta – ele próprio era um planeta desabitado, uma cova vazia.

Chamou um táxi – queria olhar novamente para o mar, tentar encontrar o miúdo e descobrir se ele estava a conseguir guardá-lo na sua cova.
Mandou o táxi parar a meio do caminho quando reconheceu a duna por trás da qual havia encontrado o pequeno ladrão de água do mar. Quando viu a cova vazia, sentiu uma tristeza ainda maior do que a que carregava. O mar ainda ali estava, à sua frente, inconquistável. O miúdo desistira.
O táxi arrancou e deixou-o sozinho, num lugar que não conhecia. Caminhou durante horas, com o sol a bater-lhe na cara e as mãos abertas, a arrastar plantas que por trás das dunas, se esticavam para tentar ver o oceano. Não chegou a lugar algum, mas isso não é importante...

Eu re-apareci entretanto.

- Acho que percebi o querias provar... Não és apenas um miúdo pois não?

Coloquei-lhe a mão no ombro e caminhei a seu lado.

Vencemos as dunas.
Ele abriu os braços e eu as asas (porque já podia).
Olhamos para o céu e enfrentamos o mar.

- Achas que haverá espaço para mim?
- Há lugares maiores que o oceano.. E teu coração não será ignorado.
- Estás aqui para garantir que eu não desisto?
- Sabemos desde o início que não irás desistir. Estou aqui para te fazer companhia... Estás há demasiado tempo sozinho.

No dia seguinte, anunciaram a  morte de um astro. Apenas porque ninguém chegou a tempo de ver a subida da maré apagar lentamente a palavra: “Renasci” – escrita numa areia sem covas.

Muitos ainda hoje não sabem que no universo, a morte de uma estrela dá origem a outras.

- Isso foi ontem. Hoje de manhã, de asas fechadas, esbarrei-me contra ti. Não foi por acaso. Temos de falar...


III - O Nascido.


- Usa roupa, será formal.

Vesti a túnica, abri as asas e desci.

Cheguei mais cedo que os outros mas não a tempo de parar a mão que o noivo – irado – lhe projectou na face. Alguns dos vossos  (Shakespeare e outros a quem chamam apóstolos) escreveram um dia sobre este tipo de ocasiões...

- Espera até eu contar ao teu pai que o neto que lhe carregas vai crescer na companhia de um vagabundo!
- O meu pai é a razão pela qual eu me tornei noiva de um verdadeiro vagabundo.
- Onde pensas que vais? Ninguém ousa virar-me as costas!

Ela virou. Correu pelas ruas do Porto a rir e a chorar. Atravessou a Avenida da Liberdade sem respeitar semáforos e pelo meio do trânsito – porque era livre.
Subiu os Clérigos e entrou na Livraria Lello (onde muitas vezes me encontrei – no topo das escadas – com alguns dos meus irmãos).
Lá dentro, um vagabundo contador de histórias, era centro de um círculo com sete crianças. Ainda não tinha aberto a capa do livro e já as sete pequenas almas ouviam, com sofreguidão, uma história sobre a história a ser contada...
Ela juntou-se ao círculo e ele sorriu um sorriso de confirmação.

Aquele que vocês fazem – segundos antes de alguém desembrulhar uma prenda que irá gostar.

Ele sabia já que ela lá estava; sem olhar. Não é o olhar, é a pessoa . Aquelas encadeantes – que envergonham o sol e iluminam lugares, só porque estão lá. 

- Há lugar para mais dois?

Uma menina de 8 anos levantou-se e tentou arrastar dois bancos mas ele disse-lhe:

- Traz só um, o outro menino já está sentado... Na barriga da mãe. Apresento-vos a Maria.

As crianças riram como crianças e ele começou a história...
As crianças foram embora no fim de uma história que afinal foram três...

Nenhum contador de histórias (aqui ou no céu) pára de as contar quando percebe que alguém sonha – e as crianças sonham. Tanto, que se tornam elas próprias num sonho. Aquele  – a que desejaremos toda  a vida voltar (aqui ou no céu).

- E agora? – Perguntou ele.
- Agora... Acho que devemos fugir. Não tarda ele e o meu pai vão lançar todas as tropas à minha procura.
- Porquê fugir quando devemos procurar? Gostava que o menino crescesse junto ao mar... Vamos procurar a casa ideal para ele crescer.

Subiram para uma mota vermelha e ela apertou-o pela cintura – mantendo o menino bem apertado entre eles. Percorreram a costa sul do Porto e desceram para a de Aveiro.
Pelo caminho, viram sete arco-íris nascerem sem a promessa de chuva. Se realmente choveu, foram pétalas de rosa vermelhas, cor de sangue – cor das que a mãe do vagabundo plantava num quintal sem sol (onde as flores eram regadas com lágrimas mas alimentadas com sorrisos).
Encontraram em “S. Jacinto” – um santo suficientemente anónimo – o cenário ideal para uma história de amor com final feliz.
Foram jantar com amigos e brindaram a finais felizes – porque só (vos) faz sentido brindar a coisas em que é difícil acreditar.

Eu cheguei muito mais cedo que os outros, sem o querer. Estava por isso com medo; estava sozinho mas feliz...
Uma vez (de asas a bater) acompanhei uma criança até lá cima que – inesperadamente – meteu  conversa comigo...

- Olha! As andorinhas estão a voar lá em baixo... Já partiram em busca do sol.
- Estás triste?
- Não. Estou feliz mas com medo; vi sempre as andorinhas voarem por cima de mim, já debaixo de céus cinzentos. Desejei ser uma delas. Hoje sei que nunca o serei e, no entanto, aqui estou, a vê-las voar... Lá em baixo.
- Não deves ansiar a felicidade alheia, apenas te roubará energia... Cada um (caso mereça) tem direito à sua. Em breve, ajudarás todos na procura por uma. Irás ver (e ajudar) o que nunca conseguiste – as andorinhas que se perdem.

Enquanto me perdia nestas recordações o filho dos dois decidiu nascer  (ou foi-lhe dada ordem para o fazer – nunca saberei,  Ele recusa-se sempre a explicar-nos estes pormenores).  
Nenhum hotel tinha vagas para o plafond de crédito que o vagabundo conseguia a contar histórias. Por isso, com Maria em sofrimento, ele rumou para uma luz que lhe pareceu uma estrela próxima – o Farol da Barra. Como não tinha dinheiro para telefonemas, enviou uma SMS ao Luís – o seu melhor amigo, dono de uma vacaria...

Os melhores amigos (aqui e no céu) são apenas aqueles que cultivam uma amizade baseada no nada que lhes dás. Jesus – um de vós – teve amigos, mas não os melhores. Caso os tivesse, teria sido salvo - também miraculosamente – por pessoas que nunca haviam beneficiado dos seus milagres.

A mensagem atravessou os céus:

“Olá Luis. Talvez n t queiras lembrar d mim pq tive ausente em tds as alturas em k precisaste d ajuda.... Cm no nascimento (problemático) d último vitelo. N entnto, desta vez, é o meu filho quem precisa d nascer. Ajuda-m.”

O Luís estava por sorte  (e chamo-lhe “sorte” porque Ele recusa sempre explicar-nos estes pormenores) na IP5, com um  reboque ocupado por duas vacas e uma “caixa aberta” cheia de palha – que o vagabundo ajudou (apenas durante um dia) a preparar.
Escapou a saída de Cacia e rumou ao Farol da Barra. Descarregou a palha à volta de Maria e pôs as vacas a comer. Depois, como em muitas noites passadas a amparar partos de vitelos, amparou Maria e ajudou o menino a nascer.
O Farol da Barra manteve os navios longe do perigo mas nessa noite, anunciou também o nascimento de uma criança.
Empurrámos as vacas (e a palha)  para junto do menino – para tentar mantê-lo quente.
Os outros melhores amigos do vagabundo viram, entretanto, outras SMS’s... Fizeram-se ao caminho, seguindo a Estrela.
Não tinham muito para dar mas deram o melhor que tinham: um envelope com o ordenado do mês, o incenso perfumado da sua companhia e palavras que substituiam Mirra no encorajamento à preservação da vida e incorruptibilidade humanas.

Os que partilham aquilo que têm são nobres soldados da vida. Os que oferecem (na totalidade) o que têm de mais precioso, são verdadeiros Reis – líderes dos líderes.
Os verdadeiros reis (na Terra) são quase todos desconhecidos – nunca terão estátuas em sua honra. Nascem e crescem no campo de batalha. Morrem no anonimato marcados por uma estrela – que no meio de todas as outras, sem que se note – os anuncia. Tarde demais, mas para sempre.
Eles só percebem que foram líderes de líderes cá em cima, enquanto vêem andorinhas à procura do sol.

O menino nasceu. Eu assisti porque cheguei antes dos outros. Apeteceu-me celebrar mesmo sem companhia. Apeteceu-me decorar com estrelas todas as árvores que existiam... (A alegria alimenta ideias parvas).

O Farol mantinha navios longe do perigo mas não o perigo longe deles. Serviu também para guiar um ex-noivo, pai de um filho indesejado, até eles. O vagabundo ouviu gritos de raiva e saiu à Praia. Pediu a Maria que ficasse mas ela, ainda frágil, esperou uns segundos, embrulhou o menino e seguiu-o.

- Onde é que está essa meretriz?
- Peço-te que vás embora.

Ía pôr-lhe a mão no ombro – tentar transmitir-lhe compaixão – mas o homem irado deu-lhe um pontapé no estômago. Perante um grito de Maria, o vagabundo olhou para trás e perdeu a compaixão que sempre carregava. Lançou-se a ele como um camião – movido por  um desespero protector (o mais inconsequente) mas nunca com raiva.
O predador, caído no chão e humilhado, rosnou umas palavras feias. Levantou uma arma da areia e apontou-a à familia.
Ele abraçou a sua amada e com ela, o seu filho, desejando ser um escudo – não impenetrável mas suficientemente forte.

Um clarão iluminou a praia e no segundo seguinte - que duram dez para vós - as suas asas abriram pela primeira vez. Enrolou-as à volta deles e a pena da asa direita – a mais longa – tocou no peito do bebé.
A asa direita sentiu dois projécteis feitos pelo Homem; mas a pena – a mais longa – sentiu o pulsar de um coração pequenino mas forte, igual ao do pai (o verdadeiro). Com a mesma pena, limpou-lhe uma lágrima do rosto, enquanto nos via chegar – por cima do ombro dela e do menino.
Num segundo – dez para vós – mil lágrimas de Maria caíram sobre um corpo que apenas a ela pertencia.

O vagabundo bateu as asas e juntou-se a nós.

 Assim nascem os anjos. Não todos, mas a maioria... Debaixo de lágrimas e envolvidos em amor, Humano – o único. Talvez seja por isso que a palavra “amar” é a mais importante dos vossos dicionários.


IV – O da Morte e o Caído


- (...) foi ontem. Hoje de manhã, de asas fechadas, esbarrei-me contra ti. Não foi por acaso. Temos de falar...
- Quem és tu? – Perguntou ela com uma estranha e incómoda certeza de não estar a falar com alguém mundano.
- Não interessa quem eu sou. Não é comum isto acontecer mas estou aqui para te levar. Estás destinada a partir há já algum tempo mas um de nós tem andado a evitá-lo... É um desertor. Tem andado a proteger-te neste (vosso) mundo.
- É também um anjo? É o meu anjo da guarda?
- Já não é um anjo mas sim, tem andado a guardar-te.

Ele disse-lhe para ligar o carro e ela assim o fez – como se hipnotizada.

- Carrega no acelerador e ignora o próximo semáforo vermelho.

Apesar do medo, sentia-se invadida por uma estranha tranquilidade...

- Não pões o cinto?

Ele riu-se com um ar altivo, pousou a mão no joelho direito dela e fê-la acelerar.
Íam já a 120 quilómetros por hora quando viram um estranho vestido de negro parado no meio da estrada...

- Não pares.

Apesar de hipnotizada, alguns segundos antes (dos vossos), viu o estranho, imóvel como uma estátua, olhar directamente para ela. Levantou apenas a mão direita - ordenando-lhe que parásse.
Ela travou a fundo e o anjo - que de asas fechadas não vence as (vossas) leis da física – foi projectado pelo vidro.
Ao passar pelo desertor, trocaram olhares mas depois o estranho caminhou para ela, ignorando o lugar onde o outro caiu.

- Vem comigo.

Ela deu-lhe a mão. Estava intranquila mas sem medo.

Subiram para uma mota vermelha (italiana) e arrancaram a uma velocidade que desafiava as leis da física.

- Para onde vamos?
- Vamos à procura de um farol. Temos de encontrar uma criança que lá nasceu e te pode proteger.

Pararam numa estação de serviço em Nazaré.

- É aqui que está o menino?

Ele sorriu e disse-lhe já ter havido um “menino de Nazaré” que os poderia ajudar...

- Não é esse menino. Tenho de pôr combustível. Tens fome?

Enquanto comiam duas sandes, a olhar o céu, ela ganhou coragem e perguntou-lhe:

- Porque estás a fazer isto?

Ele quase se engasgou, sem conseguir disfarçar um ar embaraçado. Gaguejou um pouco mas depois ganhou coragem...

- Pela mesma razão que ficas triste quando vês uma borboleta e lamentas o facto de te terem revelado aos 10 anos que elas vivem apenas umas horas... Um dia, por acaso, foste-me revelada nas ruas do Porto, a serpentar pessoas como se fossem flores. A partir daí não mais consegui aceitar que o mundo (o vosso) ficasse privado de um ser tão frágil e tão belo. 

Ela quase chorou e ele, temendo que ela realmente o fizesse, desviou novamente o olhar para o céu.

- És mesmo o meu anjo da guarda.
- Nunca fui mas prometo tentar.

Quando voltaram à estrada, ela apertou-o e encostou a cabeça no seu ombro. Sentia-se frágil como uma borboleta mas totalmente segura.
Ele sentiu-a tremer de frio e tirou uma mão do guiador para apertar as dela.

- Chegamos.

Ela deu-lhe a mão enquanto caminhavam por um longo areal, em direcção ao Farol. De repente, o outro anjo caiu à frente deles, com a força de um anjo que deixa de bater asas lá bem no alto - e que levantou no ar um círculo de sete metros de areia.

- Como ousas interferir na minha missão traidor?
- Irmão, peço-te compaixão. Por favor poupa-a. Castiga a mim.
- Sai da frente traidor.
- Não.

O anjo sentiu ira e atirou sete raios contra o peito do seu ex-colega. Ele levantou-se. Depois atirou o pior dos tornados contra ele. Chicoteado pela areia e cheio de sangue (humano)  levantou-se novamente e pô-la atras de si.

- Não! 
- Desiste traidor!

O anjo, desesperado por ver “um pedaço de carne osso” resistir como uma criatura divina, desobedeceu às regras do céu e abriu as suas asas (que, sem ele notar, se haviam tornado negras). Rodou em torno de si próprio a uma velocidade superior às (vossas) leis da física e transformou cada pena da sua asa numa lámina - que atravessou o corpo do antigo anjo.
O antigo anjo ficou a olhar o céu, sentindo o calor (único) do sangue humano envolver o seu corpo.

- Agora vens comigo.

Ela chorou mas o seu corpo, hipnotizado, obedeceu.

Caminhavam para o mar quando ele tocou no ombro do anjo de asas negras...

- Por favor irmão, deixa-a viver, aqui.

A raiva é uma coisa humana.  Uma das principais razões pelas quais  Ele se zanga convosco. Tantas vezes.
O anjo de asas negras estava, talvez, há demasiado tempo entre vós...

Sentiu uma coisa que normalmente é só vossa, tirou da cintura a faca de Caím e cravou-a no peito do seu ex-colega.

As lágrimas são uma coisa só vossa e disso tentamos não sentir inveja, para não pecarmos.

O anjo, sem conseguir largar a faca, chorou lágrimas das vossas...

- Porque me obrigaste a fazer isto?

O antigo anjo deu então um passo em direcção seu colega – trespassando o seu próprio coração. Abraçou-se a ele para não cair e quase sem fôlego, beijou-o, murmurando ao seu ouvido:

- Pela mesma razão que te perdoo, irmão.

As luzes do farol deram duas voltas, varrendo o areal. No meio delas, os dois anjos subiram ao céu. Apenas o que já não o era caiu, novamente, na areia.
Ela correu a abraça-lo...

- Fica! Fica comigo.

Levantou-o e deu-lhe um beijo humedecido em lágrimas.

Outra coisa (só vossa) que tentamos não invejar.

Caminharam em direcção à Costa Nova e as suas feridas (após o beijo) foram cicatrizando. O seu coração - aquele que realmente poderia ser trespassado – esteve sempre seguro, com ela.

- Tu és a prova  que os anjos existem, és a razão pela qual existo. – Sussurou ele, finalmente, ao seu ouvido.


Ao mesmo tempo, um estranho vento - vindo não de um ponto cardeal mas directamente do céu – abateu-se sobre o cemitério Père Lachaise, em Paris. Lentamente, foi soprando a terra que tapava uma frase gravada na campa do seu autor:

              "O mistério do amor é maior que o mistério da morte" 

Oscar Wilde


Filipe Lascasas

Para a pequena P que me falou (em revolta) sobre a palavra mais importante do dicionário.


“Come Talk to Me” – Peter Gabriel, by Bon Iver (Anjo Caído) / “Make Tomorrow”  - Peter Gabriel (Anjo da Morte) / “Green Grass Of Tunnel” – Múm + “Maps” (Accoustic version) – Yeah Yeah Yeahs ( Anjo Nascido) / “Kolnidur”- Sigur Ros (Anjo da Morte e o Caído) 

sábado, 22 de janeiro de 2011

Lençóis vermelhos



Limpou a última gota de sangue, pousou-lhe a mão na face e sorriu. Prendeu a ponta das ligaduras com o polegar e enrolou-as à volta dos pulsos, tapando as feridas dos olhos e da alma.

Este não é o fim da história mas também não é o inicio.

Encheu a banheira com água a quarenta graus – a temperatura que dizem ideal para (nestas circunstâncias) confundir o corpo e não deixar que ele incomode a alma.
Pousou a lámina no pulso direito e depois no esquerdo; escorregou para dentro de água e sentiu à sua volta um calor vermelho, que o fazia voltar ao ventre da sua mãe.
Sem realmente adormecer, entrou num sono profundo e quase logo, teve daqueles sonhos que se lembram, quando estamos acordados.
Os pais acordavam-no com um beijo e faziam-lhe uma surpresa no dia de aniversário com um bolo de iogurte. Depois pedalava na bicicleta emprestada pelo Rui, ao pôr-do-sol, num campo de tremoços. Deu dez primeiros beijos em dez amores e despediu-se de todos eles com a certeza de ser recordado. Os amigos ofereciam-lhe uma braçadeira, levantavam-se, batiam-lhe continência e nomeavam-no capitão. Ele levava alguns para a guerra, pedia-lhes que entregassem as suas vidas por ele e ganhava – todos viviam. A irmã partia um dente a fazer cambalhotas, ria, chorava e ria outra vez. Cinco bébes apertavam a mão direita no seu dedo anelar, confirmando que o ouviram e o (re)conheciam na vida e amor dos seus pais. Numa madrugada do dia de Natal estava com o seu irmão na ribeira, no mesmo estado de felicidade. A mesma estrela cadente rasgou o céu e ele pediu o mesmo desejo – aquele que ainda hoje pediria...

- O que foi?
- Uma estrela cadente... Já acabaste o café?
- Pediste um desejo?
- Acho que sim. Não sei se me precipitei mas curiosamente não foi aquele que era suposto...
- Então é porque era esse que tinha de ser pedido.

No fim de vários sonhos sobre tudo aquilo que teve, veio um pesadelo sobre aquilo que desejava ter. Visualizou com detalhe o que lhe faltava e aí abriu os olhos – para  se certificar que a água ficava vermelha, cor-de-sangue. Para ter a certeza que em breve, com pesadelos ou sonhos, a mágoa teria um fim.
A água estava já a vinte graus quando eles entraram – sem pedir licença.
Ela limpou a última gota de sangue, pousou-lhe a mão na face e sorriu um sorriso de aceitação.

- Perdoa-me mas não é assim.

Prendeu a ponta das ligaduras com o polegar e enrolou-as à volta dos pulsos, tapando as feridas dos olhos e da alma. Pegaram-no ao colo e deitaram-no numa cama que fizeram com lençóis vermelhos – cor  de sangue. Ele dormiu sozinho, em lençóis que mereciam (a sua) companhia. Dormiu e sonhou sonhos cor-de-sangue, a salvar anjos de demónios, a viver o amor verdadeiro que dormiria a seu lado em paz, sabendo estar protegida por um capitão. 

Ele apareceu na sala com os golpes cicatrizados e a cama já mudada (por ele). Estava pronto.
Fizeram a viagem em silêncio, propositadamente pelo caminho mais longo, junto ao mar. Ele olhou para as ondas e pediu-lhes força. Depois olhou para o céu e pediu-lhe um pouco de sorte.
Ela pousou-lhe a mão na face e sorriu. Prendeu a ponta das ligaduras com o polegar e enrolou-as à volta dos pulsos, tapando as cicatrizes dos olhos e da alma. Calçou-lhe as luvas, bateu-lhe nos ombros e disse:

- Estás pronto.

Ele percorreu um corredor formado por todos os que o pousaram numa cama de lençóis vermelhos, uns meses antes. Entre rir e chorar, escolheram rir. Lançaram-lhe aplausos e abraços que faziam dele já um herói. O Bruno teve dificuldade em conseguir que a braçadeira passasse pelas luvas mas conseguiu pô-la, um palmo abaixo do ombro.
Olhou para o ringue e depois para eles – de braços abertos a acenarem vitória. Entregou-lhes um sorriso de resignação, perante a eminência de uma morte certa, uma luta de David (sem fisga) contra Golias.

A luta era por amor – em nada diferente das batalhas mais importantes que se travaram no mundo... Mas isso é outra história.

Ele subiu ao ringue, bateu as luvas uma contra a outra e lançou-se à batalha.

Não há nenhum mal em morrer... Isso acontece;  a todos.
 É a forma como se morre que conta. Por isso não deixes alguém morrer por desistir. Liga-lhe os pulsos e faz-lhe a cama com lençóis de coragem e dignidade. Depois deixa-o morrer... Mas a lutar.

Ao primeiro soco caiu. Mas levantou-se. Ao sétimo soco caiu outra vez mas estava a ganhar, já desde o primeiro.

Este não foi o fim da história, foi o ínicio.


Filipe Lascasas



Aos que me fizeram a cama.



Para ouvir com: "Waiting For The End" - Linkin Park