terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

3 Anjos

Ainda não está acabada...

Mas tinha de a publicar antes das outras. Ainda não vi baleias a dançar mas a lista não acabava aí.



3 Anjos



I - O Caído

Vi-te dois dias antes de ser despedido; caminhavas nas ruas de Lisboa, sozinha, desprotegida. Na impossibilidade de te acompanhar, de te proteger, voei para a metade do planeta onde o sol ainda brilhava e fiz uma visita a todas as flores e borboletas que aí moravam. Quis confirmar que nesse dia, Deus não se esqueceria de proteger algumas das criaturas mais belas e frágeis da sua criação... Soube assim que tinhas chegado sã e salva à tua morada.
Desde então sigo-te para onde quer que vás. Sou aquele que te protege. Fui despedido por um deus que não tinha fé em mim. Sou um anjo caído.
A tua existência levantou-me mas a minha transparência perante o teu olhar, devolveu-me o triste cargo de um anjo da guarda caído. Mas já não sou um anjo, apenas um humano preenchido de tristeza por a sua carne ser invisível à tua alma – que outrora pude ver despida.

Os sonhos são a vida real de um anjo e neles voavas comigo, de mãos dadas. Mas agora acordo antes de ti, aconchego-te e parto para o anonimato. Sou aquele que te protege dos vilões, que te salva dos perigos mundanos, que apanha todas as tuas lágrimas e devolve os teus sorrisos solitários. Sou a brisa que acaricia os teus cabelos, a gota de orvalho que cai nos teus lábios. Sou o sol que te bate na cara numa manhã fria de inverno e a fonte por onde bebes os teus desejos.
Sou (te) invisível. Sou um anjo caído na terra, um humano caído em desgraça.

- Tu és a prova que os anjos existem, és a razão pela qual existo.

Gritarei eternamente estas palavras à tua alma, pois nunca me será permitido sussurrá-las ao teu ouvido.

II - O da Morte

Todos os dias percorria sete quilómetros de mar até chegar a casa. A estrada que o trazia de volta ao lar, namorava com o oceano durante dez minutos – a uma velocidade média de cento e setenta quilómetros por hora. Nunca o vira.
Tinha uma pequena porção do mundo nas suas mãos. Fazia-o rodar, fazia todas as órbitas passarem por ele. No emprego, todos o tratavam como o centro do universo – por uma questão de sobrevivência planetária ou até mesmo lunar.
Hoje acordara determinado – com um telefonema da sua assistente, há já duas horas a trabalhar para o seu sistema solar. Mesmo hoje, não sabia o nome da voz que o acordara.
Levantou-se com o pensamento preenchido pelos planetas que naquele dia iria conquistar. A conquista do universo era sua meta.

As verdadeiras guerras, conquistas e invasões do mundo actual dos Homens, fazem-se por telefone, fax, computador ou qualquer outra coisa com botões. Já não requerem ver a cara do inimigo, nem quando desferem o golpe final. Inimigos, amigos... Todos vos são anónimos.

Ao fim do dia, ganhara mais uma guerra. Havia conseguido mais um planeta e respectivas luas para orbitarem à sua volta. Aceitou as palmas, bebeu o champanhe, fez promessas (aos outros) de mais conquistas.

Uma avaria no carro fê-lo parar a meio do namoro entre a estrada e o oceano. Telefonou para o reboque. Olhou finalmente para o mar e caminhou na sua direcção.
Viu um miúdo no meio da areia branca, a correr de forma desesperada entre a água e a areia...
Parou junto àquilo que parecia ser uma pequena cova feita na areia e esperou que o miúdo regressasse do mar. A presença de um astro gigante – vestido com um fato escuro e uma gravata – não perturbou o sentido de missão do miúdo que o desviou, com cuidado, para poder encher a pequena cova com as mãos cheias de água do mar.

- O que fazes? – Perguntou autoritariamente o conquistador de planetas.
- Estou a guardar toda a água do mar nesta cova. Esta cova é minha! – Disse o miúdo.

O reboque chegou. O miúdo desapareceu no espelho retrovisor de algo há muito tempo avariado.
Rebocado e sem bateria no telefone, viu finalmente o oceano namorar com a estrada e consigo. Chocou-se com o facto de não reconhecer pela janela, como passageiro, o caminho que todos os dias fazia para casa. Deixaram-no em casa.

Na manhã seguinte, acordou e percebeu que estava sozinho. Apenas eu me mantinha ao seu lado, desde o dia anterior – mas ele não me via.
Percebeu que por mais planetas que conquistasse – para orbitarem à sua volta – ele próprio era um planeta desabitado, uma cova vazia.

Chamou um táxi – queria olhar novamente para o mar, tentar encontrar o miúdo e descobrir se ele estava a conseguir guardá-lo na sua cova.
Mandou o táxi parar a meio do caminho quando reconheceu a duna por trás da qual havia encontrado o pequeno ladrão de água do mar. Quando viu a cova vazia, sentiu uma tristeza ainda maior do que a que carregava. O mar ainda ali estava, à sua frente, inconquistável. O miúdo desistira.
O táxi arrancou e deixou-o sozinho, num lugar que não conhecia. Caminhou durante horas, com o sol a bater-lhe na cara e as mãos abertas, a arrastar plantas que por trás das dunas, se esticavam para tentar ver o oceano. Não chegou a lugar algum, mas isso não é importante...

Eu re-apareci entretanto.

- Acho que percebi o querias provar... Não és apenas um miúdo pois não?

Coloquei-lhe a mão no ombro e caminhei a seu lado.

Vencemos as dunas.
Ele abriu os braços e eu as asas (porque já podia).
Olhamos para o céu e enfrentamos o mar.

- Achas que haverá espaço para mim?
- Há lugares maiores que o oceano.. E teu coração não será ignorado.
- Estás aqui para garantir que eu não desisto?
- Sabemos desde o início que não irás desistir. Estou aqui para te fazer companhia... Estás há demasiado tempo sozinho.

No dia seguinte, anunciaram a  morte de um astro. Apenas porque ninguém chegou a tempo de ver a subida da maré apagar lentamente a palavra: “Renasci” – escrita numa areia sem covas.

Muitos ainda hoje não sabem que no universo, a morte de uma estrela dá origem a outras.

- Isso foi ontem. Hoje de manhã, de asas fechadas, esbarrei-me contra ti. Não foi por acaso. Temos de falar...


III - O Nascido.


- Usa roupa, será formal.

Vesti a túnica, abri as asas e desci.

Cheguei mais cedo que os outros mas não a tempo de parar a mão que o noivo – irado – lhe projectou na face. Alguns dos vossos  (Shakespeare e outros a quem chamam apóstolos) escreveram um dia sobre este tipo de ocasiões...

- Espera até eu contar ao teu pai que o neto que lhe carregas vai crescer na companhia de um vagabundo!
- O meu pai é a razão pela qual eu me tornei noiva de um verdadeiro vagabundo.
- Onde pensas que vais? Ninguém ousa virar-me as costas!

Ela virou. Correu pelas ruas do Porto a rir e a chorar. Atravessou a Avenida da Liberdade sem respeitar semáforos e pelo meio do trânsito – porque era livre.
Subiu os Clérigos e entrou na Livraria Lello (onde muitas vezes me encontrei – no topo das escadas – com alguns dos meus irmãos).
Lá dentro, um vagabundo contador de histórias, era centro de um círculo com sete crianças. Ainda não tinha aberto a capa do livro e já as sete pequenas almas ouviam, com sofreguidão, uma história sobre a história a ser contada...
Ela juntou-se ao círculo e ele sorriu um sorriso de confirmação.

Aquele que vocês fazem – segundos antes de alguém desembrulhar uma prenda que irá gostar.

Ele sabia já que ela lá estava; sem olhar. Não é o olhar, é a pessoa . Aquelas encadeantes – que envergonham o sol e iluminam lugares, só porque estão lá. 

- Há lugar para mais dois?

Uma menina de 8 anos levantou-se e tentou arrastar dois bancos mas ele disse-lhe:

- Traz só um, o outro menino já está sentado... Na barriga da mãe. Apresento-vos a Maria.

As crianças riram como crianças e ele começou a história...
As crianças foram embora no fim de uma história que afinal foram três...

Nenhum contador de histórias (aqui ou no céu) pára de as contar quando percebe que alguém sonha – e as crianças sonham. Tanto, que se tornam elas próprias num sonho. Aquele  – a que desejaremos toda  a vida voltar (aqui ou no céu).

- E agora? – Perguntou ele.
- Agora... Acho que devemos fugir. Não tarda ele e o meu pai vão lançar todas as tropas à minha procura.
- Porquê fugir quando devemos procurar? Gostava que o menino crescesse junto ao mar... Vamos procurar a casa ideal para ele crescer.

Subiram para uma mota vermelha e ela apertou-o pela cintura – mantendo o menino bem apertado entre eles. Percorreram a costa sul do Porto e desceram para a de Aveiro.
Pelo caminho, viram sete arco-íris nascerem sem a promessa de chuva. Se realmente choveu, foram pétalas de rosa vermelhas, cor de sangue – cor das que a mãe do vagabundo plantava num quintal sem sol (onde as flores eram regadas com lágrimas mas alimentadas com sorrisos).
Encontraram em “S. Jacinto” – um santo suficientemente anónimo – o cenário ideal para uma história de amor com final feliz.
Foram jantar com amigos e brindaram a finais felizes – porque só (vos) faz sentido brindar a coisas em que é difícil acreditar.

Eu cheguei muito mais cedo que os outros, sem o querer. Estava por isso com medo; estava sozinho mas feliz...
Uma vez (de asas a bater) acompanhei uma criança até lá cima que – inesperadamente – meteu  conversa comigo...

- Olha! As andorinhas estão a voar lá em baixo... Já partiram em busca do sol.
- Estás triste?
- Não. Estou feliz mas com medo; vi sempre as andorinhas voarem por cima de mim, já debaixo de céus cinzentos. Desejei ser uma delas. Hoje sei que nunca o serei e, no entanto, aqui estou, a vê-las voar... Lá em baixo.
- Não deves ansiar a felicidade alheia, apenas te roubará energia... Cada um (caso mereça) tem direito à sua. Em breve, ajudarás todos na procura por uma. Irás ver (e ajudar) o que nunca conseguiste – as andorinhas que se perdem.

Enquanto me perdia nestas recordações o filho dos dois decidiu nascer  (ou foi-lhe dada ordem para o fazer – nunca saberei,  Ele recusa-se sempre a explicar-nos estes pormenores).  
Nenhum hotel tinha vagas para o plafond de crédito que o vagabundo conseguia a contar histórias. Por isso, com Maria em sofrimento, ele rumou para uma luz que lhe pareceu uma estrela próxima – o Farol da Barra. Como não tinha dinheiro para telefonemas, enviou uma SMS ao Luís – o seu melhor amigo, dono de uma vacaria...

Os melhores amigos (aqui e no céu) são apenas aqueles que cultivam uma amizade baseada no nada que lhes dás. Jesus – um de vós – teve amigos, mas não os melhores. Caso os tivesse, teria sido salvo - também miraculosamente – por pessoas que nunca haviam beneficiado dos seus milagres.

A mensagem atravessou os céus:

“Olá Luis. Talvez n t queiras lembrar d mim pq tive ausente em tds as alturas em k precisaste d ajuda.... Cm no nascimento (problemático) d último vitelo. N entnto, desta vez, é o meu filho quem precisa d nascer. Ajuda-m.”

O Luís estava por sorte  (e chamo-lhe “sorte” porque Ele recusa sempre explicar-nos estes pormenores) na IP5, com um  reboque ocupado por duas vacas e uma “caixa aberta” cheia de palha – que o vagabundo ajudou (apenas durante um dia) a preparar.
Escapou a saída de Cacia e rumou ao Farol da Barra. Descarregou a palha à volta de Maria e pôs as vacas a comer. Depois, como em muitas noites passadas a amparar partos de vitelos, amparou Maria e ajudou o menino a nascer.
O Farol da Barra manteve os navios longe do perigo mas nessa noite, anunciou também o nascimento de uma criança.
Empurrámos as vacas (e a palha)  para junto do menino – para tentar mantê-lo quente.
Os outros melhores amigos do vagabundo viram, entretanto, outras SMS’s... Fizeram-se ao caminho, seguindo a Estrela.
Não tinham muito para dar mas deram o melhor que tinham: um envelope com o ordenado do mês, o incenso perfumado da sua companhia e palavras que substituiam Mirra no encorajamento à preservação da vida e incorruptibilidade humanas.

Os que partilham aquilo que têm são nobres soldados da vida. Os que oferecem (na totalidade) o que têm de mais precioso, são verdadeiros Reis – líderes dos líderes.
Os verdadeiros reis (na Terra) são quase todos desconhecidos – nunca terão estátuas em sua honra. Nascem e crescem no campo de batalha. Morrem no anonimato marcados por uma estrela – que no meio de todas as outras, sem que se note – os anuncia. Tarde demais, mas para sempre.
Eles só percebem que foram líderes de líderes cá em cima, enquanto vêem andorinhas à procura do sol.

O menino nasceu. Eu assisti porque cheguei antes dos outros. Apeteceu-me celebrar mesmo sem companhia. Apeteceu-me decorar com estrelas todas as árvores que existiam... (A alegria alimenta ideias parvas).

O Farol mantinha navios longe do perigo mas não o perigo longe deles. Serviu também para guiar um ex-noivo, pai de um filho indesejado, até eles. O vagabundo ouviu gritos de raiva e saiu à Praia. Pediu a Maria que ficasse mas ela, ainda frágil, esperou uns segundos, embrulhou o menino e seguiu-o.

- Onde é que está essa meretriz?
- Peço-te que vás embora.

Ía pôr-lhe a mão no ombro – tentar transmitir-lhe compaixão – mas o homem irado deu-lhe um pontapé no estômago. Perante um grito de Maria, o vagabundo olhou para trás e perdeu a compaixão que sempre carregava. Lançou-se a ele como um camião – movido por  um desespero protector (o mais inconsequente) mas nunca com raiva.
O predador, caído no chão e humilhado, rosnou umas palavras feias. Levantou uma arma da areia e apontou-a à familia.
Ele abraçou a sua amada e com ela, o seu filho, desejando ser um escudo – não impenetrável mas suficientemente forte.

Um clarão iluminou a praia e no segundo seguinte - que duram dez para vós - as suas asas abriram pela primeira vez. Enrolou-as à volta deles e a pena da asa direita – a mais longa – tocou no peito do bebé.
A asa direita sentiu dois projécteis feitos pelo Homem; mas a pena – a mais longa – sentiu o pulsar de um coração pequenino mas forte, igual ao do pai (o verdadeiro). Com a mesma pena, limpou-lhe uma lágrima do rosto, enquanto nos via chegar – por cima do ombro dela e do menino.
Num segundo – dez para vós – mil lágrimas de Maria caíram sobre um corpo que apenas a ela pertencia.

O vagabundo bateu as asas e juntou-se a nós.

 Assim nascem os anjos. Não todos, mas a maioria... Debaixo de lágrimas e envolvidos em amor, Humano – o único. Talvez seja por isso que a palavra “amar” é a mais importante dos vossos dicionários.


IV – O da Morte e o Caído


- (...) foi ontem. Hoje de manhã, de asas fechadas, esbarrei-me contra ti. Não foi por acaso. Temos de falar...
- Quem és tu? – Perguntou ela com uma estranha e incómoda certeza de não estar a falar com alguém mundano.
- Não interessa quem eu sou. Não é comum isto acontecer mas estou aqui para te levar. Estás destinada a partir há já algum tempo mas um de nós tem andado a evitá-lo... É um desertor. Tem andado a proteger-te neste (vosso) mundo.
- É também um anjo? É o meu anjo da guarda?
- Já não é um anjo mas sim, tem andado a guardar-te.

Ele disse-lhe para ligar o carro e ela assim o fez – como se hipnotizada.

- Carrega no acelerador e ignora o próximo semáforo vermelho.

Apesar do medo, sentia-se invadida por uma estranha tranquilidade...

- Não pões o cinto?

Ele riu-se com um ar altivo, pousou a mão no joelho direito dela e fê-la acelerar.
Íam já a 120 quilómetros por hora quando viram um estranho vestido de negro parado no meio da estrada...

- Não pares.

Apesar de hipnotizada, alguns segundos antes (dos vossos), viu o estranho, imóvel como uma estátua, olhar directamente para ela. Levantou apenas a mão direita - ordenando-lhe que parásse.
Ela travou a fundo e o anjo - que de asas fechadas não vence as (vossas) leis da física – foi projectado pelo vidro.
Ao passar pelo desertor, trocaram olhares mas depois o estranho caminhou para ela, ignorando o lugar onde o outro caiu.

- Vem comigo.

Ela deu-lhe a mão. Estava intranquila mas sem medo.

Subiram para uma mota vermelha (italiana) e arrancaram a uma velocidade que desafiava as leis da física.

- Para onde vamos?
- Vamos à procura de um farol. Temos de encontrar uma criança que lá nasceu e te pode proteger.

Pararam numa estação de serviço em Nazaré.

- É aqui que está o menino?

Ele sorriu e disse-lhe já ter havido um “menino de Nazaré” que os poderia ajudar...

- Não é esse menino. Tenho de pôr combustível. Tens fome?

Enquanto comiam duas sandes, a olhar o céu, ela ganhou coragem e perguntou-lhe:

- Porque estás a fazer isto?

Ele quase se engasgou, sem conseguir disfarçar um ar embaraçado. Gaguejou um pouco mas depois ganhou coragem...

- Pela mesma razão que ficas triste quando vês uma borboleta e lamentas o facto de te terem revelado aos 10 anos que elas vivem apenas umas horas... Um dia, por acaso, foste-me revelada nas ruas do Porto, a serpentar pessoas como se fossem flores. A partir daí não mais consegui aceitar que o mundo (o vosso) ficasse privado de um ser tão frágil e tão belo. 

Ela quase chorou e ele, temendo que ela realmente o fizesse, desviou novamente o olhar para o céu.

- És mesmo o meu anjo da guarda.
- Nunca fui mas prometo tentar.

Quando voltaram à estrada, ela apertou-o e encostou a cabeça no seu ombro. Sentia-se frágil como uma borboleta mas totalmente segura.
Ele sentiu-a tremer de frio e tirou uma mão do guiador para apertar as dela.

- Chegamos.

Ela deu-lhe a mão enquanto caminhavam por um longo areal, em direcção ao Farol. De repente, o outro anjo caiu à frente deles, com a força de um anjo que deixa de bater asas lá bem no alto - e que levantou no ar um círculo de sete metros de areia.

- Como ousas interferir na minha missão traidor?
- Irmão, peço-te compaixão. Por favor poupa-a. Castiga a mim.
- Sai da frente traidor.
- Não.

O anjo sentiu ira e atirou sete raios contra o peito do seu ex-colega. Ele levantou-se. Depois atirou o pior dos tornados contra ele. Chicoteado pela areia e cheio de sangue (humano)  levantou-se novamente e pô-la atras de si.

- Não! 
- Desiste traidor!

O anjo, desesperado por ver “um pedaço de carne osso” resistir como uma criatura divina, desobedeceu às regras do céu e abriu as suas asas (que, sem ele notar, se haviam tornado negras). Rodou em torno de si próprio a uma velocidade superior às (vossas) leis da física e transformou cada pena da sua asa numa lámina - que atravessou o corpo do antigo anjo.
O antigo anjo ficou a olhar o céu, sentindo o calor (único) do sangue humano envolver o seu corpo.

- Agora vens comigo.

Ela chorou mas o seu corpo, hipnotizado, obedeceu.

Caminhavam para o mar quando ele tocou no ombro do anjo de asas negras...

- Por favor irmão, deixa-a viver, aqui.

A raiva é uma coisa humana.  Uma das principais razões pelas quais  Ele se zanga convosco. Tantas vezes.
O anjo de asas negras estava, talvez, há demasiado tempo entre vós...

Sentiu uma coisa que normalmente é só vossa, tirou da cintura a faca de Caím e cravou-a no peito do seu ex-colega.

As lágrimas são uma coisa só vossa e disso tentamos não sentir inveja, para não pecarmos.

O anjo, sem conseguir largar a faca, chorou lágrimas das vossas...

- Porque me obrigaste a fazer isto?

O antigo anjo deu então um passo em direcção seu colega – trespassando o seu próprio coração. Abraçou-se a ele para não cair e quase sem fôlego, beijou-o, murmurando ao seu ouvido:

- Pela mesma razão que te perdoo, irmão.

As luzes do farol deram duas voltas, varrendo o areal. No meio delas, os dois anjos subiram ao céu. Apenas o que já não o era caiu, novamente, na areia.
Ela correu a abraça-lo...

- Fica! Fica comigo.

Levantou-o e deu-lhe um beijo humedecido em lágrimas.

Outra coisa (só vossa) que tentamos não invejar.

Caminharam em direcção à Costa Nova e as suas feridas (após o beijo) foram cicatrizando. O seu coração - aquele que realmente poderia ser trespassado – esteve sempre seguro, com ela.

- Tu és a prova  que os anjos existem, és a razão pela qual existo. – Sussurou ele, finalmente, ao seu ouvido.


Ao mesmo tempo, um estranho vento - vindo não de um ponto cardeal mas directamente do céu – abateu-se sobre o cemitério Père Lachaise, em Paris. Lentamente, foi soprando a terra que tapava uma frase gravada na campa do seu autor:

              "O mistério do amor é maior que o mistério da morte" 

Oscar Wilde


Filipe Lascasas

Para a pequena P que me falou (em revolta) sobre a palavra mais importante do dicionário.


“Come Talk to Me” – Peter Gabriel, by Bon Iver (Anjo Caído) / “Make Tomorrow”  - Peter Gabriel (Anjo da Morte) / “Green Grass Of Tunnel” – Múm + “Maps” (Accoustic version) – Yeah Yeah Yeahs ( Anjo Nascido) / “Kolnidur”- Sigur Ros (Anjo da Morte e o Caído)