terça-feira, 3 de junho de 2014

A Cura.





Alfredo deitou-se um dia na cama com muitas dores.
Dois minutos antes de adormecer, tomou a firme decisão de nunca mais adoecer por amor e criar imunidade à ressaca da sua ausência. Decidiu curar-se do Amor.
Escolheu trinta e sete dos mais conceituados livros sobre Bioquímica, abasteceu os armários com comida e vinhos bons, arregaçou as mangas, prendeu as pálpebras com fita adesiva e começou a estudar.
Ao fim de treze semanas, fechou o último livro, bebeu o último copo de vinho e com a única gota de tinta que restava na caneta, colocou um ponto final no plano que concebeu para se curar…

Precisava de um bom hipnotizador e contratou os serviços do chefe de uma grande empresa onde tinha trabalhado.
Pagou caro… Dois anos de trabalho sem descanso, sem paz de espirito e sem tempo para conseguir viver. Foi porém, bem recompensado (financeiramente).
Com o dinheiro que ganhou, comprou um laboratório, recrutou nove bioquímicos, dois filósofos, um romancista e treze cobaias – todos, sem excepção, a sofrer de amor.  
Usou depois o dinheiro que restava para entrar em contacto com os dez amores da sua vida, pagar-lhes férias improvisadas, viagens de regresso (algumas internacionais), ramos de girassóis e ainda a edição de dez filmes muito bem elaborados, com bandas sonoras personalizadas. Em cada filme, desfilavam centenas de fotos, dezenas de cartas e postais mas uma mensagem comum a todos, a final – escrita em courrier branco, sobre um fundo negro:

“Estou doente e preciso de doadoras. Tu és uma. Ajudas-me?”

Das dez, nove cheiraram os girassóis, marcaram as férias, releram algumas cartas e vieram.
Quando chegaram, o Hipnotizador sentou cada uma - em nove sessões - numa cadeira muito confortável. Depois de um abraço (que Alfredo abraçou sempre com mais força) fê-las adormecer, percorrerem o caminho dos medos, dos arrependimentos, dos sonhos e depois - mesmo no fim – o das memórias.
Apenas o das memórias – no microscópico e quase impenetrável espaço da mente onde elas residem, em estado puro. Com precisão e a minúcia necessárias para não serem confundidas com recordações – que são memórias ancoradas ao emaranhado de arrependimentos, aprendizagens e consequências que as refinam, as deturpam ou, simplesmente, as tornam não-tóxicas para o coração e para a vida, em geral.
Em cada sessão - nas nove - um bioquímico entrava; no preciso momento efémero, intangível e microscópico das memórias de cada uma.
Injectava - com precisão, anestesia local e um termo de responsabilidade previamente assinado (entre girassóis) - uma seringa no cérebro que recolhia o cocktail de fluídos químicos, biológicos e metabólicos que corriam no espaço das memórias, no seu estado puro.
Os efeitos colaterais do procedimento, repetiram-se de forma muito análoga aos das cobaias que por ele tinham passado… Quando acordavam, os seus ex-amores mantinham as memórias e as recordações de tudo na sua vida, excepto aquelas em que Alfredo havia estado presente.
Alfredo passava assim, a ser um estranho para todas elas. Alguém que (e essa percepção comum não havia sido prevista no protocolo experimental) simplesmente estava doente e precisava de bondade alheia e doações para se curar.
Elas voltaram a casa e os Bioquímicos fecharam-se num laboratório com os dois Filósofos, durante trinta e sete dias.
No dia 23 de Agosto de um ano em que não há consenso, os Bioquímicos e os Filósofos abriram a porta com um frasco cheio de líquido a fumegar nas mãos.
O Romancista pegou no frasco ainda a fumegar, triturou sete livros de Óscar Wilde e setenta-e-sete pétalas de girassóis. Depositou as migalhas numa garrafa vazia de Sumol Ananás e despejou o líquido (ainda a fumegar) sobre elas. Abanou a garrafa e misturou tudo muito bem.
Alfredo – por essa altura já acamado, inconformado com a doença que padecia e resiliente às alternativas de cura – abriu com dificuldade a alma e a boca. Entornaram-lhe algumas gotas da mistura e aguardaram.
Alfredo dilatou as pupilas, sorriu e adormeceu.

Em Setembro - num dia e ano para os quais não há consenso - nove Bioquímicos, dois Filósofos e treze pessoas perfeitamente normais, discutiam, num laboratório, o sentido da vida. Estavam a minutos de uma opinião comum quando Alfredo, amparado pelo Romancista, entrou pela porta (da frente). 

- E então? – Perguntou a plateia, quase em uníssono.
- Acho que resultou. Acho que estou curado.

Num palco improvisado, Alfredo relatou com o maior detalhe científico, profundidade filosófica e encanto literário, as sensações porque havia passado após ingerir o soro…

“Mal fechei os olhos, o meu cérebro foi inundado por mil fragmentos de
imagens, que me cercaram, formando uma espiral onde eu emergia da base até ao topo e onde depois mergulhava novamente. Em cada queda e ascensão, aespiral abrandava; até que à sétima viagem, subi lentamente, com todas as imagens a rodar à minha volta mas finalmente, em tempo real.
Na primeira volta, reconheci de imediato todas as caras. Vi-me com
todos os meus nove amores, em cada idade que tive, como um espectador de mim próprio.
Vi cada primeiro beijo e senti cada um. Vi promessas e voltei a fazê-las, vi risos, vi olhares, vi carícias, senti abraços.
Depois, subi mais um pouco na espiral e revisitei todas elas, mas em novas cenas. Cenas que não recordava mas onde tinha amado e sido amado também. Na espiral, até perto do topo e a cada amor que se repetiu, revi uma felicidade esquecida, momentos de amor sentidos mas desafortunadamente, filtrados nas minhas recordações.
Quando, por fim, cheguei ao topo, vi algo diferente. Vi amor em
momentos que nunca havia testemunhado, ausentes das minhas memórias. Quase todas, cenas em que fui olhado ou recordado, de longe – à distância de uma almofada, de um palco ou de um telefonema. Olhares que – por estar distraído, a sonhar ou simplesmente ausente – nunca havia notado ou devolvido.
Acordei a rodar no topo da minha vida inteira e a suspirar (ou bocejar) em êxtase,a contemplar a imensidão de momentos em que fui tão ou mais amado, sem nunca ter dado conta.
Houvesse tempo ou eu não estivesse doente e garanto-vos que a minha energia teria sido investida naquele que seria o mais revolucionário dos Soros: aquele que revelasse todas as palavras não ditas e todos os sentimentos não partilhados; pelo menos a tempo. Não tarde de mais.
Em resumo, o Soro funcionou. Não sinto dores nem ansiedade por mais Amor. Os vossos serviços estão dispensados, com excepção aos dos bioquímicos - a quem peço uma conclusão sobre a dosagem recomendada do Soro.”


Os Bioquímicos concluíram que a quantidade de Soro remanescente – a ocupar três quartos da garrafa de Sumol Ananás – seria suficiente para mais quarenta anos. 
Quanto à dosagem recomendada, uma colher de sopa. Uma colher de sopa de Soro, ingerida na iminência ou revelação dos sintomas que escreveram numa tabela:

________________________________________________________________


Atribuir e materializar qualquer música – de qualquer género – a um agente patogénico vivo.

Ler um livro de forma compulsiva, imerso num sentimento de identificação pessoal com a história e/ou as personagens.

Ver um filme com conteúdos românticos e sorrir ou chorar.

Conversar com um agente patogénico e acreditar que ele termina as tuas frases ou diz coisas em que apenas pensaste.

Acreditar que na Vida não há coincidências.

Arrepios na presença das obras de Oscar Wilde, Gustav Klint, Jane Austen, Joan Miró, Florbela Espanca, Gaudí, Nicholas Sparks, Shakespeare e outros disseminadores da Doença por via dos sentidos.

Partilha de qualquer forma arte com um agente patogénico na expectativa de receber interpretações análogas ou radicalmente opostas.

Vontade de escrever na ausência de uma depressão.


Nota importante: na presença de todos os sintomas anteriores – gerados por um só agente patogénico – triplicar a dosagem.

________________________________________________________________
  
Alfredo seguiu vivendo, curado.
Por estar também imune, conheceu o dobro das pessoas interessantes que alguma vez conheceria por não ter de partilhar demasiado tempo com alguma. Visitou o triplo de lugares paradisíacos que alguma vez visitaria caso se afeiçoasse por algum. Contemplou mais quadros e graffitis (dos que imortalizam a espécie humana), do que aqueles que alguma vez conseguiria - caso a sua admiração fosse roubada por apenas alguns. Tirou e partilhou fotografias realmente importantes para a sociedade; sem aparecer nelas e sem colocar comentários. 
Curado e imune, Alfredo seguiu vivendo a vida sem distracções e sem desperdício de tempo, verdadeiramente concentrado nas coisas em que a Vida mais gosta de se pavonear, sozinha. Em retorno, ele pavoneou-se para Ela.

Para os curados ou imunes deste mundo doente que Alfredo percorreu, a sua história terminou aqui.
Já para os que permanecem doentes e incuráveis, há consenso em que seria cruel negar-vos o conforto de alguns rumores sobre como Alfredo terminou os seus dias…

Contam-se histórias sobre o dia em que Alfredo se cansou de ouvir música sem pensar em alguém, de ler livros sem compulsividade, de acreditar em coincidências, de não sentir arrepios ao contemplar as obras de Oscar Wilde, Gustav Klint, Jane Austen, Joan Miró, Florbela Espanca, Gaudí e muitos outros.
Conta-se que Alfredo, um dia, lamentou que nenhum lugar que conhecera ou viesse a conhecer, pudesse, por mais vulgar, algum dia ser-lhe especial - o seu paraíso na Terra, talvez. Porque afinal, o paraíso talvez não seja um lugar mas um momento em que te encontras, algures, a sentir-te único e feliz.
No dia catorze de Fevereiro, de um ano que se negam a revelar, Alfredo tirou do bolso uma antiga tabela de sintomas, esmorecida por anos de água salgada. Recapitulou cada um e quando à última linha não conseguiu conter um sorriso, renunciou-se a tomar uma tripla dosagem. Despejou o conteúdo de uma garrafa verde algures numa ilha rodeada por águas lamacentas.
Alfredo decidiu seguir morrendo, doente… Com alguém.

Espero que encontrem conforto na vossa doença.

Filipe Lascasas

P.S.: Aos meus (menos do que dez) amores.