terça-feira, 3 de junho de 2014

A Cura.





Alfredo deitou-se um dia na cama com muitas dores.
Dois minutos antes de adormecer, tomou a firme decisão de nunca mais adoecer por amor e criar imunidade à ressaca da sua ausência. Decidiu curar-se do Amor.
Escolheu trinta e sete dos mais conceituados livros sobre Bioquímica, abasteceu os armários com comida e vinhos bons, arregaçou as mangas, prendeu as pálpebras com fita adesiva e começou a estudar.
Ao fim de treze semanas, fechou o último livro, bebeu o último copo de vinho e com a única gota de tinta que restava na caneta, colocou um ponto final no plano que concebeu para se curar…

Precisava de um bom hipnotizador e contratou os serviços do chefe de uma grande empresa onde tinha trabalhado.
Pagou caro… Dois anos de trabalho sem descanso, sem paz de espirito e sem tempo para conseguir viver. Foi porém, bem recompensado (financeiramente).
Com o dinheiro que ganhou, comprou um laboratório, recrutou nove bioquímicos, dois filósofos, um romancista e treze cobaias – todos, sem excepção, a sofrer de amor.  
Usou depois o dinheiro que restava para entrar em contacto com os dez amores da sua vida, pagar-lhes férias improvisadas, viagens de regresso (algumas internacionais), ramos de girassóis e ainda a edição de dez filmes muito bem elaborados, com bandas sonoras personalizadas. Em cada filme, desfilavam centenas de fotos, dezenas de cartas e postais mas uma mensagem comum a todos, a final – escrita em courrier branco, sobre um fundo negro:

“Estou doente e preciso de doadoras. Tu és uma. Ajudas-me?”

Das dez, nove cheiraram os girassóis, marcaram as férias, releram algumas cartas e vieram.
Quando chegaram, o Hipnotizador sentou cada uma - em nove sessões - numa cadeira muito confortável. Depois de um abraço (que Alfredo abraçou sempre com mais força) fê-las adormecer, percorrerem o caminho dos medos, dos arrependimentos, dos sonhos e depois - mesmo no fim – o das memórias.
Apenas o das memórias – no microscópico e quase impenetrável espaço da mente onde elas residem, em estado puro. Com precisão e a minúcia necessárias para não serem confundidas com recordações – que são memórias ancoradas ao emaranhado de arrependimentos, aprendizagens e consequências que as refinam, as deturpam ou, simplesmente, as tornam não-tóxicas para o coração e para a vida, em geral.
Em cada sessão - nas nove - um bioquímico entrava; no preciso momento efémero, intangível e microscópico das memórias de cada uma.
Injectava - com precisão, anestesia local e um termo de responsabilidade previamente assinado (entre girassóis) - uma seringa no cérebro que recolhia o cocktail de fluídos químicos, biológicos e metabólicos que corriam no espaço das memórias, no seu estado puro.
Os efeitos colaterais do procedimento, repetiram-se de forma muito análoga aos das cobaias que por ele tinham passado… Quando acordavam, os seus ex-amores mantinham as memórias e as recordações de tudo na sua vida, excepto aquelas em que Alfredo havia estado presente.
Alfredo passava assim, a ser um estranho para todas elas. Alguém que (e essa percepção comum não havia sido prevista no protocolo experimental) simplesmente estava doente e precisava de bondade alheia e doações para se curar.
Elas voltaram a casa e os Bioquímicos fecharam-se num laboratório com os dois Filósofos, durante trinta e sete dias.
No dia 23 de Agosto de um ano em que não há consenso, os Bioquímicos e os Filósofos abriram a porta com um frasco cheio de líquido a fumegar nas mãos.
O Romancista pegou no frasco ainda a fumegar, triturou sete livros de Óscar Wilde e setenta-e-sete pétalas de girassóis. Depositou as migalhas numa garrafa vazia de Sumol Ananás e despejou o líquido (ainda a fumegar) sobre elas. Abanou a garrafa e misturou tudo muito bem.
Alfredo – por essa altura já acamado, inconformado com a doença que padecia e resiliente às alternativas de cura – abriu com dificuldade a alma e a boca. Entornaram-lhe algumas gotas da mistura e aguardaram.
Alfredo dilatou as pupilas, sorriu e adormeceu.

Em Setembro - num dia e ano para os quais não há consenso - nove Bioquímicos, dois Filósofos e treze pessoas perfeitamente normais, discutiam, num laboratório, o sentido da vida. Estavam a minutos de uma opinião comum quando Alfredo, amparado pelo Romancista, entrou pela porta (da frente). 

- E então? – Perguntou a plateia, quase em uníssono.
- Acho que resultou. Acho que estou curado.

Num palco improvisado, Alfredo relatou com o maior detalhe científico, profundidade filosófica e encanto literário, as sensações porque havia passado após ingerir o soro…

“Mal fechei os olhos, o meu cérebro foi inundado por mil fragmentos de
imagens, que me cercaram, formando uma espiral onde eu emergia da base até ao topo e onde depois mergulhava novamente. Em cada queda e ascensão, aespiral abrandava; até que à sétima viagem, subi lentamente, com todas as imagens a rodar à minha volta mas finalmente, em tempo real.
Na primeira volta, reconheci de imediato todas as caras. Vi-me com
todos os meus nove amores, em cada idade que tive, como um espectador de mim próprio.
Vi cada primeiro beijo e senti cada um. Vi promessas e voltei a fazê-las, vi risos, vi olhares, vi carícias, senti abraços.
Depois, subi mais um pouco na espiral e revisitei todas elas, mas em novas cenas. Cenas que não recordava mas onde tinha amado e sido amado também. Na espiral, até perto do topo e a cada amor que se repetiu, revi uma felicidade esquecida, momentos de amor sentidos mas desafortunadamente, filtrados nas minhas recordações.
Quando, por fim, cheguei ao topo, vi algo diferente. Vi amor em
momentos que nunca havia testemunhado, ausentes das minhas memórias. Quase todas, cenas em que fui olhado ou recordado, de longe – à distância de uma almofada, de um palco ou de um telefonema. Olhares que – por estar distraído, a sonhar ou simplesmente ausente – nunca havia notado ou devolvido.
Acordei a rodar no topo da minha vida inteira e a suspirar (ou bocejar) em êxtase,a contemplar a imensidão de momentos em que fui tão ou mais amado, sem nunca ter dado conta.
Houvesse tempo ou eu não estivesse doente e garanto-vos que a minha energia teria sido investida naquele que seria o mais revolucionário dos Soros: aquele que revelasse todas as palavras não ditas e todos os sentimentos não partilhados; pelo menos a tempo. Não tarde de mais.
Em resumo, o Soro funcionou. Não sinto dores nem ansiedade por mais Amor. Os vossos serviços estão dispensados, com excepção aos dos bioquímicos - a quem peço uma conclusão sobre a dosagem recomendada do Soro.”


Os Bioquímicos concluíram que a quantidade de Soro remanescente – a ocupar três quartos da garrafa de Sumol Ananás – seria suficiente para mais quarenta anos. 
Quanto à dosagem recomendada, uma colher de sopa. Uma colher de sopa de Soro, ingerida na iminência ou revelação dos sintomas que escreveram numa tabela:

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Atribuir e materializar qualquer música – de qualquer género – a um agente patogénico vivo.

Ler um livro de forma compulsiva, imerso num sentimento de identificação pessoal com a história e/ou as personagens.

Ver um filme com conteúdos românticos e sorrir ou chorar.

Conversar com um agente patogénico e acreditar que ele termina as tuas frases ou diz coisas em que apenas pensaste.

Acreditar que na Vida não há coincidências.

Arrepios na presença das obras de Oscar Wilde, Gustav Klint, Jane Austen, Joan Miró, Florbela Espanca, Gaudí, Nicholas Sparks, Shakespeare e outros disseminadores da Doença por via dos sentidos.

Partilha de qualquer forma arte com um agente patogénico na expectativa de receber interpretações análogas ou radicalmente opostas.

Vontade de escrever na ausência de uma depressão.


Nota importante: na presença de todos os sintomas anteriores – gerados por um só agente patogénico – triplicar a dosagem.

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Alfredo seguiu vivendo, curado.
Por estar também imune, conheceu o dobro das pessoas interessantes que alguma vez conheceria por não ter de partilhar demasiado tempo com alguma. Visitou o triplo de lugares paradisíacos que alguma vez visitaria caso se afeiçoasse por algum. Contemplou mais quadros e graffitis (dos que imortalizam a espécie humana), do que aqueles que alguma vez conseguiria - caso a sua admiração fosse roubada por apenas alguns. Tirou e partilhou fotografias realmente importantes para a sociedade; sem aparecer nelas e sem colocar comentários. 
Curado e imune, Alfredo seguiu vivendo a vida sem distracções e sem desperdício de tempo, verdadeiramente concentrado nas coisas em que a Vida mais gosta de se pavonear, sozinha. Em retorno, ele pavoneou-se para Ela.

Para os curados ou imunes deste mundo doente que Alfredo percorreu, a sua história terminou aqui.
Já para os que permanecem doentes e incuráveis, há consenso em que seria cruel negar-vos o conforto de alguns rumores sobre como Alfredo terminou os seus dias…

Contam-se histórias sobre o dia em que Alfredo se cansou de ouvir música sem pensar em alguém, de ler livros sem compulsividade, de acreditar em coincidências, de não sentir arrepios ao contemplar as obras de Oscar Wilde, Gustav Klint, Jane Austen, Joan Miró, Florbela Espanca, Gaudí e muitos outros.
Conta-se que Alfredo, um dia, lamentou que nenhum lugar que conhecera ou viesse a conhecer, pudesse, por mais vulgar, algum dia ser-lhe especial - o seu paraíso na Terra, talvez. Porque afinal, o paraíso talvez não seja um lugar mas um momento em que te encontras, algures, a sentir-te único e feliz.
No dia catorze de Fevereiro, de um ano que se negam a revelar, Alfredo tirou do bolso uma antiga tabela de sintomas, esmorecida por anos de água salgada. Recapitulou cada um e quando à última linha não conseguiu conter um sorriso, renunciou-se a tomar uma tripla dosagem. Despejou o conteúdo de uma garrafa verde algures numa ilha rodeada por águas lamacentas.
Alfredo decidiu seguir morrendo, doente… Com alguém.

Espero que encontrem conforto na vossa doença.

Filipe Lascasas

P.S.: Aos meus (menos do que dez) amores.


quarta-feira, 27 de março de 2013

Viver é a melhor vingança (Dissertação em duas cartas)





Ouvi o ocupante (já curado) do quarto ao lado sair com a família e indaguei-me sobre se a janela estaria também gradeada como a do meu. Pé-ante-pé, saí, rodei a maçaneta e vi que a janela estava livre. O quarto, ali mesmo ao lado, era para pacientes que não precisavam de grades.
 Abri a janela, subi para o parapeito e sentei-me. Estava a olhar o infinito quando uma pequena nuvem de nicotina atravessou o meu rosto. Olhei para o lado e ali estava ele, duas janelas depois, a fumar.

- Olá! És uma apreciadora de paisagem urbanística ou também precisas de fumar às escondidas?
- Prefiro fumar mas não tenho cigarros.

Ele abriu um maço de Camel e esticou a mão direita na minha direcção…

- Queres um? Tens é de vir cá que eu estou preso a um frasco por um tubo. Desliza sentada e com cuidado, para não caíres. Não quero que ao fim de tantos anos, este dístico no maço que diz “Fumar Mata” assuma um significado inesperado e macabro.

Ri-me e deslizei em sua direcção como ele aconselhou.

- Este é o teu quarto?
- Sim. E o teu é este aqui ao lado não é?
- Sim, somos vizinhos.

Ficamo-nos por aí nos detalhes do nosso alojamento. Ele não perguntou a razão do meu quarto ter grades na janela nem o porquê das ligaduras nos meus pulsos. Eu não perguntei porque é que o quarto dele tinha dois polícias à porta.
Fumamos apenas, silenciosamente, a contemplar do décimo terceiro andar, um horizonte intermitente de luzes e betão.
O ritual de me escapar, de deslizar no parapeito, de fumarmos em silêncio repetiu-se nos dois dias seguintes. Ele respeitava o meu silêncio e eu, o dele.
No entanto, ao terceiro dia, fui impulsiva e perguntei-lhe:

- Porque estás aqui? Desculpa, não respondas, não devia ter perguntado.

Não lhe devia ter perguntado. A minha curiosidade continuaria a fazer-me comichão mas pelo menos evitaria estragar o espaço que havíamos conquistado entre os dois. Ou o espaço que havia para mim - pois agora ele teria toda a legitimidade para me devolver a pergunta e eu sentiria a obrigação de responder. Ou provavelmente pior: passar a ter de o evitar.
Uma vez mais, a minha vontade compulsiva e insaciável de saber, destruía os raros momentos do dia em que estava bem e me sentia minimamente feliz.
No entanto, ele riu-se e disse:

- Não há problema, podes perguntar e eu posso responder. Agradeço que digas e perguntes o que te vai na cabeça. Não precisas censurar-te por quereres fazer perguntas às quais não gostarias de responder.
Riu-se mais um pouco, tossiu e puxou mais um cigarro. Eu sorri também, em alívio mas sobretudo espanto - por em apenas três dias (quase só de silencio) ele ser capaz de me ler tão bem.

- Bem, para ser muito concreto, estou aqui porque pelos vistos, agora, só agora, vou mesmo morrer em breve. A verdade é que me atrasei 5 anos, 4 semanas e (até agora) dois dias a cumprir a data que anunciaram para a minha morte.  
Queres uma cerveja? Tenho algumas escondidas na sala de culturas biológicas…
-Sim, gostava muito.
-Então vai buscar um cobertor enquanto eu apanho as cervejas. Já te conto.   

Eu ainda estava a sair da janela e já ele prosseguia:

- Há 5 anos atrás, neste mesmo hospital, deram-me a notícia que dali a uns meses, me iria acontecer o que me vai acontecer só agora…  
- Espera, como é que conseguiste passar pela polícia?
- Eles também gostam de cerveja. E é complicado recusar desejos a alguém perto da morte.

Deu umas gargalhadas, dois goles na cerveja e depois olhou para mim com ar sério.

- Agora tens de pensar e dizer-me o quão cansada estás e daqui a quanto tempo vais querer ir dormir… Assim posso planear se te conto a versão longa, media, resumida ou “SMS” da história!
- Quero a longa, não tenho sono e detesto SMS’s.
- Nesse caso vou incluir documentação…

Esticou o braço para dentro da janela e puxou um caderno com capa preta a que chamou um nome esquisito…   “Mole… qualquer coisa”.

- Se quiseres, um dia abre o Google e confirma… Escreve: “Morrer aos quarenta anos” – foi a primeira frase que busquei após a minha consulta com o oncologista.
Na Wikipedia. Foi onde encontrei a revelação mais provocadora - aquela com que decidi começar o meu discurso para o jantar de despedida que a minha esposa estava a organizar. Ela insistia e persistia na palavra “reencontro”, proibindo-me de usar quaisquer outras associadas ao que realmente faria os convidados não recusarem o convite.
Fechei o computador e levantei-me.
Guardei os comprimidos no bolso sem ela ver, enfiei a prancha no carro e fui para a praia.
Pelo caminho, visualizei-me a apanhar ondas “épicas”, imaginei o planeta a rodar em “câmara-lenta” enquanto toda a humanidade me observava em grande plano no Youtube e partilhava milhares de posts no Facebook como exemplo de como se deve encarar a vida perante a inevitável consequência da morte. Imaginei biografias póstumas que esgotavam nas livrarias, entrevistas e conferências de auto-motivação, centenas de capítulos finais a descreverem-me a descer uma onda de braços abertos, com o sol a bater-me na cara e um enorme sorriso de aceitação. Imaginei conclusões, ilações, metáforas, analogias e comentários on-line sobre uma vida perfeita e inspiradora, cheia de sonhos cumpridos.
 Quando cheguei à praia vi uns 20 e tal miúdos da tua idade e mais novos na água, a apanhar ondas de 2 metros. Senti-me ridículo.
Escolhi sentir-me ridículo. Abracei esse sentimento em particular e em toda a sua magnitude. Fiquei-me por esse. Não quis racionalizar outros sentimentos que iriam deprimir-me ainda mais, como a frustração de ter amadurecido sem nunca ter deixado de surfar de forma tosca e infantil e o medo de me afogar em ondas de dois metros – numa altura, em que era suposto ser das pessoas mais destemidas do mundo.
O sentimento escolhido era o mais pertinente de todos porque eu era acima de tudo ridículo. Tinha 35 anos, um emprego banal, uma vida pequena e anónima para o mundo. Não tinha sonhos nem ambições que não financeiras.
Descobri – também no Wikipedia – que aos 22 anos, Mozart tinha já 30 sinfonias compostas, que Alexandre - o Grande, morreu antes dos 33 anos sendo o maior conquistador da história. E ainda li sobre Picasso- o mais provocador de todos… Nascido e dado como morto, foi abandonado pela enfermeira que dedicou os seus cuidados à mãe. Um médico decidiu soprar-lhe o fumo de um charuto para os pulmões e ele reagiu, começou a respirar e chorou. Depois vingou-se o resto da vida, soprando fumo artístico para os nossos pulmões… “Aos catorze anos conseguia superar as maiores exigências de uma conceituada academia de arte.”   
Já eu, com 35 anos, morreria sem que o mundo desse conta que eu sequer tinha nascido.
Tirei o fato térmico e escondi a prancha antes que alguém desse conta da minha existência. Peguei no Moleskine, fui para uma tasca e comecei a escrevinhar o meu discurso para o jantar de desp…, aliás, “Reencontro” - designação em que insisti (e treinei) para não magoar a minha esposa.

Estavam todos sentados na mesa em “U” do restaurante. Já tínhamos comido as entradas e bebido bastante (eu e os meus amigos  sempre bebemos bastante), quando me levantei e pedi silêncio pois tinha escrito uma carta.
Tenho ainda aqui a carta original. Já estás cansada?
-Não! Lê, quero ouvir! Tens é de ir buscar mais cerveja.

Ele riu-se. Levantou a cortina por cima de uma caixa cheia de garrafas e abriu-me uma cerveja com o isqueiro.

- Tens de me ensinar a fazer isso!
- Não te preocupes que mais tarde ou mais cedo vais aprender a fazê-lo sozinha. O discurso foi este:

Descobri na internet que a esperança média de vida do Ser Humano era, há 150 anos atrás, de 40 anos. Ironicamente (com uma pequena margem de erro - por ser uma média), a idade anunciada da minha morte.
 Já todos sabem, no entanto para aqueles que fingiram não saber, revelo então que vou morrer daqui a 2 meses.
Como sabem, dediquei parte da minha vida ao estudo do Homem, da natureza e do universo. É portanto com suficiente corroboração científica, que vos digo que até no que toca ao tema da passagem pela vida, o Ser Humano conseguiu foder isto tudo à grande.
 Camada de ozono? Aquecimento global? Extinção de espécies? Escassez de recursos?
Tudo faz parte de uma espiral de consequências originadas no momento em que o Homem conseguiu – num espaço de 150 anos – estender a sua presença natural no mundo. O Universo é feito de equilíbrios com um desígnio próprio. Se a natureza determinou que viver uma média de 40 anos era o suficiente para nós, devíamos ter compreendido e acatado isso.
No entanto, decidimos não conformar-nos. Inventámos doenças, curas, vacinas, terapias, remédios… Remendos.
Com excepção a doenças como a minha, em que a natureza vai conseguindo por enquanto sublinhar a sua vontade, a partir do momento em que ultrapassamos a nossa duração programada, não somos mais que uma panóplia de remendos sobrepostos à teimosia de não cessar.
“Dentes revitalizados”, “próteses”,” implantes capilares”, “óculos”, “aparelhos de abdominais”,” pacemakers”,” transplantes”,” terapias”, “reabilitações”… Preciso continuar?~
 A partir da idade planeada para expirarmos como espécie, o caos inicia-se e Deus,  o Cosmos, a Natureza, a nossa genética (o que quer que aceitem como realmente superior a vós) apenas nos tenta matar.
Aqui desfaço a ironia - mencionada em tantos jantares revivalistas que fiz convosco - que quando deixamos de ser inconsequentes, passamos a ser vítimas de todo o tipo de consequências. A fase em que passamos a temer “consequências” é na verdade um sinal de alarme do (verdadeiro) relógio biológico, um pressentimento instintivo e certo, que o mundo já não é suposto tolerar mais a nossa presença e… vai haver consequências.
Olhamos a nossa espécie como omnipotente e especial mas nada mais somos do que os parasitas mais irritantes persistentes e adaptáveis do Universo. Falamos com desdém de vírus e bactérias, na forma como insistem em adaptar-se, ou ousam (imagine-se!) desenvolver resistência a nós! Não temos, nem por um segundo, a lucidez de considerar que somos nós que insistimos em desenvolver resistência a tudo, á ordem natural das coisas.
Conheço-vos bem o suficiente para saber que os mais optimistas e mundanos aqui presentes vão estar por esta altura a esboçar um sorrisinho condescendente e céptico… Querem exemplos concretos desta nossa sobrevivência errática, ilógica e deplorável?
Eu dou-vos:
- Somos a única espécie que continua a beber leite em idade adulta. (O leite é uma fonte de cálcio mas só começamos a ter realmente falta dele a partir dos 40)
- Somos a única espécie que se vai deitar quando não tem sono e a única que se levanta quando tem (o que faz muito sentido!).
- A evidência mais aberrante de todas: somos o único animal que elege e obedece a líderes mais fracos que o resto da matilha. Uma consequência natural de termos chegado ao trono máximo do reino animal e nada mais haver para dominar senão uns aos outros.
Alguém aqui nunca teve um chefe biologicamente e/ou intelectualmente mais fraco que vós ou algum dos vossos semelhantes /colegas?
Na humanidade, 3% das pessoas são “Alfas”, vivem realmente como querem, fazem o que lhes apetece, sem que as questionem. Desses três por cento, 0.01% são pessoas realmente especiais ou abençoadas. Todos os outros, todos nós – os restantes 97% - trabalham e vivem para as que mencionei anteriormente.

Vou sentir saudades vossas e peço-vos desculpa por estes últimos anos ter estado tão ausente. Por tantas vezes ter preferido o sofá à vossa companhia.
No entanto, percebam que também vos / nos fiz um favor. Evitei que a frequência dos nossos encontros tornasse repetitivas, ridículas e obsoletas as memórias do que vivemos. Que acabássemos por perceber – quando os temas de conversa sobre o passado se esgotassem – o quão fora de prazo realmente já estamos. A revolta de perceber que os dias que vivemos a sentir que o melhor ainda estava para vir, deram lugar a dias em que sabemos que o pior ainda está por acontecer.
Com tudo isto, quero convencer-vos a não sentirem pena de mim. A vida ignorou-me o tempo suficiente para eu poder gozá-la e vingou-se, como sempre o faz. Apenas de forma incontornável, no meu caso. Ainda assim, na altura que é a mais certa, para mim e para todos.”

Bem, no fim do discurso não houve aplausos. Algumas esposas e esposos segredaram coisas como “inventa uma desculpa para sairmos” ao ouvido dos meus amigos. Mas nenhum ouviu. Todos ficaram.
Estás bem?

- Sim, estou… Perturbada.
-Seria correcto da minha parte dizer-te que se quiseres, fico por aqui. Mas agora peço-te que ouças o resto…
- Continua, por favor…
- Um dos meus melhores amigos, o Ricardo, veio logo ter comigo. Ainda estava a fechar o caderno e a minha esposa a propor - em desespero, para salvar a noite - um brinde à amizade, aos amigos e a uma frase em latim que tinha tatuado na anca. 
Agarrou-me pelo pescoço e a rir gritou-me ao ouvido:

- Se não soubesse que vais morrer daqui a uns dias, era gajo para apostar que estás com uma crise de meia-idade... Olha lá, o que é que vamos fazer?
- Como assim?
- Como assim?! Então caralho!? Conseguiste o argumento perfeito para todos nós termos desculpa e justificação para fazermos (quem sabe a última vez) aquilo que nos apetece! Que patrão, esposa ou sogra vai ter a coragem de te condenar por estares, simplesmente, a acompanhar um amigo no seu leito da morte? O que é que vamos fazer? O que é que que um gajo como tu, com uma oportunidade destas, quer fazer que nunca tenha feito?

Apeteceu-me (e quase o fiz) mandá-lo para o caralho. Chamar-lhe egoísta. Insultá-lo e tornar público o seu aproveitamento da minha morte.
Ainda desviei o olhar para a sala mas depois, olhei-o de novo e vi o mesmo olhar do meu cachorro quando saio de casa pela manhã e lhe digo “até logo”. Um olhar que nunca irá mudar por mais vezes que volte, por mais vezes que cumpra a promessa. Porque na sua “irracionalidade animal” (que no mundo não científico se chama “amor incondicional”) qualquer despedida minha, é para ele, sempre eterna.

- Bem, já que queres saber, há três coisas na vida que sempre desejei e sempre considerei impossíveis…

Abri novamente o Moleskine e citei-as:

1-     Surfar uma das maiores ondas do mundo.
2-     Percorrer de mota a América do Sul com os meus melhores amigos.
3-     Voar em pé e com os braços abertos.

Ele olhou para mim muito sério e disse:

- Não bebas mais e vai-te deitar. Põe o despertador para as 6 horas da manhã e às sete encontra-te comigo na porta do hotel.

Eu obedeci. Disse a todos que estava muito cansado e me ia retirar. Vi alguns esposos e esposas tentarem conter um sorriso de alívio, beijei a minha na testa e disse-lhe: “obrigado, por tudo”. 

Cheguei à porta do hotel às 6h55 mas ele e eles – os meus melhores amigos – já estavam todos lá. Tinham feito directa e ainda estavam bêbados, os cabrões.

-Isto são horas? Como és o ultimo, vais ter de ir ao “castigo”!

Formaram um corredor com os braços levantados e eu tive de o percorrer, a levar “cachaços” até ao fim, até à visão (ainda hoje das que tenho mais magníficas) de uma Volkswagen “Pão de Forma” - perfeitamente estacionada no centro do nascer do sol, com cortinas nas janelas e sete lugares sentados.  

- Onde é que arranjaram a carrinha? E as pranchas?
- Não faças muitas perguntas, evita informações que te comprometam... Vais ter de dar as respostas (e se não fores “cromo”, ainda muitas mais) à polícia. Mas o que é que vão fazer? Condenar-te à morte?

Explodimos em gargalhadas. Rimos de forma provocadora, livre e inconsequente – algo que não fazíamos há 20 anos.
Fizemos 2 horas de viagem. Era para ser surpresa, mas quando faltavam 25 minutos de viagem vi uma placa a dizer ”Nazaré” e percebi o que íamos fazer...
A tua cerveja já deve estar quente… Vou buscar mais duas?

Era verdade, a minha cerveja já estava quente. Estava tão siderada no relato que me tinha esquecido de beber e até de fumar - pois já tinha meio cigarro de cinza na perna.
Ele trouxe mais cervejas e continuou.

- Onde é que eu ía? Ah! Na Nazaré...
Quando chegámos à praia, já com os fatos vestidos e as pranchas debaixo do braço, vimos uns 7 miúdos da tua idade e mais novos na água, a apanhar ondas de 13 metros. Desta vez não me senti ridículo, senti-me protegido. Não estava sozinho.
(O ridículo é apenas uma questão de números – se pertences a uma maioria ou, pelo menos, a um número representativo, aí ridículos são os minoritários. Os restantes, são apenas vulgares.)
Estávamos a apertar os “Streps” (aqui no Sul chamam-lhes “Leashes”) quando vi um tipo com “ar estrangeiro” aproximar-se de nós…

- I guess they’re going to be some great waves today, ah guys?
 
Chamava-se Garret McNamara e era Havaiano - foi o que nos disse. Tinha uma comitiva gigantesca de pessoas à volta dele. Gajos a tirar fotografias, a pedir autógrafos, a arrastar motas de água para o mar, a falar em walkie-talkies.  
O Ricardo disse que era um actor de Hollywood mas o Rui refutou-o, dizendo que já tinha visto uns vídeos dele no Youtube e que era vocalista numa banda…
Fazia sentido. Quando tinha a tua idade, o vocalista de uma banda do meu tempo, chamado Eddie Vedder, também andou, durante uns tempos, viciado nas ondas do nosso país. 
Vi o vocalista vestir o fato com umas merdas esquisitas e não resisti em perguntar:

-What the fuck is that you’re wearing?
- It’s an inflatable suit.  If I pull this string, it fills with air and then I can float and not drown.
- Good for you. I guess my suit also does that… See these holes in it? The air also comes in, but unfortunately, I think it doesn’t stays there.

Ele riu-se e disse qualquer coisa como: “Old-school shit, man. That’s the way to go!”
Quando finalmente tive tempo para pensar, já estava imerso no oceano da Nazaré. Rodeado de gente nova em pleno usufruto da idade inconsequente e sem remendos que a vida lhes tolerava.
Não tive a recepção ou as reacções que temia. Não ouvi risinhos de escárnio sobre a antiguidade da minha prancha, do meu fato e do meu corpo. É verdade que a Adrenalina e o nervosismo sempre me fizeram franzir a sobrancelha e colocar um ar extremamente sério e ilusoriamente concentrado. No entanto, a maré de gente nova que me rodeava estava bastante indiferente ao quão vulnerável e ridículo eu me achava. A cada braçada que dava, desviavam-se e ficavam ao meu lado. Abriam-nos um corredor marítimo para passar e ficarmos com o lugar da frente. Acenavam-nos com a cabeça, com a mão, com o polegar e o dedo mindinho espetados. Eu retribuía os gestos, sempre sério mas com a boca a esboçar um quarto de sorriso. Nada de condescendência, comentários ou juízos geracionais de parte a parte. Senti-me respeitado por aquilo que eu era e senti respeito por eles, por aquilo que viriam a ser – melhores que nós.
Por tudo isso, tentei honrar, com esforço e em cada braçada, o corredor que me abriram. Agradeci o lugar da frente quando lá cheguei e depois fiz questão de controlar a ansiedade e as braçadas de forma a eles e eu permanecermos todos lado a lado. Lado a lado. Uma linha humana formada pela minha geração e a deles, a contemplar a mesma linha de horizonte e a vencer as mesmas ondas.
Não te sei explicar a estranha tranquilidade que me invadiu neste ponto. Continuava com medo e com adrenalina nas veias porque os meus braços continuavam a remar com uma força que não era habitual. Ainda assim, estava calmo e com um sentimento muito pouco lógico de segurança. Associei mais tarde, imagens de batalhas medievais, em livros e filmes… A mesma geometria linear de combatentes camaradas, a avançarem lado a lado para a batalha. Talvez seja a geometria mais instintiva ao Homem para, perante o medo, encontrar alguma segurança... Para os mais fortes, uma consciência colectiva que ninguém ficou para trás e que a descoberta do que está à frente será partilhada. Para os mais fracos, a consciência de ocuparem a posição onde mais facilmente serão amparados.

Presumimos que as ondas estavam a ficar do tamanho do meu sonho quando vimos o vocalista correr para a água e ser rebocado pelas motas de água. (Não condenámos a “ajuda motorizada” – descobrimos que o tipo tinha já 45 anos!)  
De repente, surgiram á nossa frente ondas de 20 metros. Os meus amigos e toda a linha de “gladiadores” começaram a dispersar, a remar de volta. Eu senti-me ridículo de novo, mas desta vez por estar a desafiar a natureza, ou a vida, ou deus, ou a genética (ou qualquer outra coisa que havia julgado inferior), daquela forma.
Olhei para o Ricardo e viu-o com cara séria…

- Acho melhor pormo-nos no caralho! – Gritei-lhe.
- Eu também! Mas agora, ao menos, que seja com classe!

Rodou a prancha para a costa, olhou para mim e gritou-me a sorrir:

- Rema! Rema como se fosse a tua última onda! É muito provável que seja!

Virei a prancha e comecei a remar em direcção à praia. Senti a onda apanhar-me, levantar-me e colocar-me a pique – em direcção a um precipício.
“Quando olhas para o abismo, o abismo também olha para ti” – Disse-me Nietzsche - naquele segundo - ao ouvido.
No segundo a seguir, a minha alma soltou-se e livre do meu controlo, gritou ao abismo:

“Não quero morrer.”

Comecei a chorar compulsivamente e pus-me de pé. Verbalizei as palavras da alma e a soluçar, os meus lábios mexeram-se três vezes num grito mudo:

“Não quero morrer!”
“Não quero morrer!”
“Não quero morrer!”

O meu olhar começou depois a subir. Até que vi a praia, não o abismo.
A prancha começou a endireitar-se e a velocidade a diminuir. Vi uma multidão na praia a saltar e a aplaudir. Pensei que fosse para o vocalista mas quando a prancha começou a afundar-se e fiquei mais perto da praia, percebi que o vocalista estava atrás de mim, de costas, ainda a ser rebocado.
Era tudo para mim. Era eu. Havia tido o meu último momento de glória.
Abri os braços, subi a cabeça para o céu e apertei as pálpebras contra as lágrimas - antes de a prancha parar por completo.
Afinal não estava pronto. Nunca estaria e pronunciei-o, uma vez mais:

- Não quero morrer.

 Mesmo fora do meu prazo de validade, consegui enganar a vida uma última vez. Mas seria mesmo a última vez.

Já na areia, a glória e o êxtase duraram apenas até avistar os meus amigos, com o olhar bem desviado de mim e concentrado nas ondas…

- O Ricardo? Onde está o Ricardo, Filipe?

Eu não sabia responder. O Ricardo havia ficado para trás, entre o abismo e a minha glória.   
A prancha dele apareceu a flutuar meia hora depois. O Ricardo apareceu dois dias depois, na costa da…



Apertou as bordas do parapeito e começou a chorar.
Eu, sem hesitar, abracei-o da forma que me era possível – de lado, com um braço por cima dele e a outra mão a segurar-lhe o ombro.
Só se recompôs passados 15 minutos. Ainda a soluçar, disse:

- Nunca esquecerei o que a esposa do Ricardo me disse quando liguei a pedir desculpa por não ter conseguido ir ao funeral:

 “Devias ter vindo. Ele conseguiu ir ao teu. Só lamento que o encontro de despedida tenha sido, afinal, para a pessoa errada.”

- Ainda hoje, a minha mente não resiste em tentar substituir a agonia da perda do meu amigo por raiva. A raiva de ter roubado, sem pedir autorização, o protagonismo inquestionável da minha morte. Mas era assim que ele era… Preferia pedir desculpa a pedir licença. Não consigo sentir raiva, nem nada que me retire a tristeza da sua ausência.    

Depois pediu-me desculpa, tirou o meu braço do ombro e entrou para o quarto.  
Ao fechar a janela, murmurou:

- Devia ter (-nos) contado apenas a versão resumida. Não estava à espera que fosses tão boa ouvinte… Obrigado por ouvires.


No dia seguinte, a janela dele não se abriu durante toda manhã.
Fui almoçar e quando vinha do refeitório, vi a minha mãe no fundo do corredor, parada, em frente à porta dele. Escondi-me.
Ela olhou para a saída, depois para porta e depois para a saída novamente. Levantou lentamente a mão da maçaneta e caminhou na direcção do seu olhar. Nem sequer tinha dado conta que estava no quarto errado e que o meu era ali ao lado. Foi cobarde, uma vez mais. Não me conseguiu encarar. E mesmo que o fizesse, não saberia o que me dizer. Nunca soube. 
No entanto, dessa vez, apenas nessa vez, senti-me triste.
Presumo que se ela me tivesse encarado, naquela altura, não teria havido mal em não saber o que me dizer. Ter-me-ia bastado que ela estivesse, ali, calada. E com isso, a respeitar o meu espaço. E eu, em silêncio, também o dela.

Estive uma hora no parapeito e ele não apareceu. O espaço dele tinha sido comprometido e por isso tinha de me evitar, como eu o faria.
Estava a apagar o último cigarro dos que ele me tinha dado quando a janela se abriu.
Sentou-se ao meu lado.

- Hoje a minha mãe esteve cá.
- Eu sei – Disse ele a sorrir.
- A vida está repleta de surpresas desagradáveis. – Retorqui, sem disposição para sorrir.
- Desagradáveis para uns e agradáveis para outros.
- Ou isso…. A vida escolhe alguns e castiga outros.
- Não. A vida escolhe todos e castiga todos, se queres a minha opinião.
Sabes, apesar de tudo não dou como desperdiçado o tempo que dediquei ao discurso que li aos meus amigos naquela noite, no meu “falso encontro de despedida”. A verdade é que o discurso continua a ser pertinente e bem dirigido à maioria dos representantes da nossa espécie…
 Mantenho a plena convicção (e algumas confirmações) que a maioria, na nossa espécie, toma as decisões mais importantes da vida como se fosse viver apenas até aos vinte e cinco anos e depois, durante (sempre demasiado) tempo, assume um modo de vida apenas lógico para quem viveria trezentos anos.
- Como assim, trezentos anos?!… Não entendi.
- Viver uma vida de trezentos anos é, nada mais, nada menos, do que viver num rebanho e aceitar ser notado apenas depois de todas as (outras) ovelhas terem morrido. É fazer escolhas uma, duas (no máximo) e ficar por aí, com medo das… consequências.
Na vida, e para todo o rebanho, só há uma consequência irreversível – a morte. E essa, mesmo para “o recordista mundial das escolhas mais acertadas da vida”, acontece. A todos.
- Estou a ficar deprimida. Sabes que há uma razão para me terem alojado no quarto com grades nas janelas, não sabes?
- Esquece as grades! (Excepto esta aqui, de cerveja, que arranjei para nós!)
- Onde é que vais arranjar tanta cerveja?!

Sorriu e propôs-me um negócio.

- Troco a revelação de como evitar a mediocridade que acabei de relatar por um dos comprimidos de Xanax que eu sei que te receitaram.
- Eu troco de boa vontade, mas aviso-te já que só vão pôr-te ainda mais vegetal e deprimido. Desculpa a sinceridade.
- Não vão nada. Esses comprimidos vão tirar-me as dores físicas e colorir algumas que tenho na alma. Apenas porque eu confirmo, a todo o momento, que os controlo, não eles a mim. Como ao álcool... Nunca bebas para te sentires feliz, bebe para te sentires ainda mais feliz!
- Toma lá dez para controlares… Entrega lá essa revelação.
- A revelação é tão simples quanto óbvia: sê compulsiva e instintiva nas decisões que tomas. Como se tivesses trezentos anos para as corrigir ou anular. Depois vive as tuas escolhas como se fosses morrer no dia seguinte.

Eu comecei a chorar e ele - que aprendeu comigo a forma de o fazer - abraçou-me como era possível, num parapeito.
Escancarei os portões do meu espaço e desabafei…

- A tua teoria é fantástica mas só me faz acreditar ainda mais que já não há esperança para mim. Segui essas regras toda a vida e até no amor, principalmente no amor, nunca fui uma ovelha. Nunca aceitei ser notada ou escolhida apenas depois de todo o rebanho ter morrido.
Se queres que te diga, no que toca ao Amor, graças a deus, ou, como dizes, “ao universo, ao cosmos, à natureza, à genética…” sempre fui mais que uma ovelha. Fui pastora, ou loba…

(Ele ia rir mas olhou para a minha expressão e conteve-se)

- Sim, fui uma loba. Nasci com a noção do que queria, do que procurava: Olhei para milhares de “rebanhos” percebendo que neles não encontrava quem realmente me completava.
Até que a encontrei. A minha “alma gémea”. Encontrei-a e vivi com ela como Óscar Wilde aconselharia:
Suprimi qualquer desejo individual como se qualquer um deles nos pudesse afastar por 300 anos e vivi cada erro, cada discussão, como se não houvesse mais do que até ao dia seguinte para as mudar, corrigir, ou anular.
A dado momento, (quase) consegui e anulei-me. Não para ser feliz mas para Sermos felizes.
Não consegui no entanto, matar uma única coisa em mim que ainda hoje carrego e detesto: uma vontade insaciável de saber tudo. Não ser capaz de resistir às comichões da curiosidade e da dúvida. Há coisas que devemos evitar saber. Eu não evitei e soube… 
Fui traída.
“T”.
 É a letra que mais odeio por iniciar a palavra que me matou.
Agora, sou uma loba que preferia ser ovelha, por entre milhares de outras que me contagiariam com a sua inocência e, pelo menos, não me fariam sentir só. Escolhi ser loba e com isso a solidão.
- Achas que estás condenada a ficar só apenas porque existem muitas ovelhas e poucos lobos?

Depois largou-me. Como se a revelar que o seu abraço lateral – abraço de parapeito – não faria a mesma função das grades na janela, a barrar vontades sem o efeito de Xanax.
Largou-me, acendeu um cigarro e ficou a observar-me. Deixou-me baixar o olhar para o abismo e deixou-me vê-lo, a olhar para mim também.
Depois, de uma forma muito pouco natural, encenou um falso egoísmo e ignorou os meus últimos minutos de desabafo…

- Como te estava a contar, não dou como desperdiçado o tempo que investi no discurso que li aos meus amigos. A verdade é que – com excepção a dois ou três casos – o discurso não era aquele que mereciam ouvir. Escrevi-o para uma maioria quando na realidade deveria ter-me focado nas pessoas que realmente iriam estar presentes. Disso, arrependo-me.
Mas pouco mais do que isso. Não deves arrepender-te demasiado.                                       
O mundo passa o tempo todo a tentar fazer com te arrependas. A abanar a cabeça em reprovação, enquanto aponta para um relógio em contagem decrescente.
Não ligues “ao mundo”.
Não penses que “já está”, que acabou, que o que quer que foi estragado é irreparável.
Os posts que vês no Facebook, partilhados entre milhares de ovelhas, a anunciar que a vida e curta e devemos viver como se ela fosse acabar em breve, são fraudulentos. Parecem fazer sentido mas assentam numa teoria sem consistência ou aplicabilidade na vida real da nossa espécie. Porque na nossa espécie, é a sensação de imortalidade que realmente consegue demover-nos a persistir, a fazer as coisas mais incríveis, mais apaixonantes, mais vivas… mais certas. 
Desenvolve um desprezo provocador à definição que estar vivo é uma espécie de dádiva. Pediste para nascer? Foi-te um desejo concedido?

Estava tão concentrada em conter as lágrimas que nem reparei que ele estava calado, a olhar para mim, à espera de uma resposta.

- Não, não pedi para nascer.  
- Pois não. A vida não é uma dádiva, sai bem cara, por sinal…
A dádiva, és tu. Para aqueles que conspiraram para ta dar e para aqueles que a viverão a teu lado.
E já que ela se entranhou em ti, sem pedir autorização, vinga-te e goza com ela. Responde à sua imprevisibilidade e sarcasmo com provocação e estupidez camuflada de coragem. De vez em quando, insiste em constatar que todos os momentos em que proclamas ter "gozado a vida" são na verdade ocasiões em que gozaste com ela. Isso irá ajudar-te a não mudar, a não sentir medo.

Deu um gole interrompido na cerveja e continuou…

- Ou então sente, mas domina-o, porque só o que temes te domina.
Se temeres a vida ela irá dominar-te, e tudo que farás, irá resumir-se à utópica luta de ficares não com ela e não sem ela - mas acima dela, sobre a vida. Chama-se a isso - e com toda a lógica - sobre…viver.


No dia seguinte encontramo-nos, mas não no parapeito da janela. Ele tinha tido algumas recaídas, estava deitado.

- Como te sentes?

Ele tirou a máscara de oxigénio e disse-me a sussurrar:

- Sinto-me drogado e tonto. Estas drogas legais são uma merda. Tive uns “ataquezitos” e eles aproveitaram-se logo disso para me acalmar… Salva-me!

Eu ainda me estava a rir quando uma mulher lindíssima entrou no quarto. Tinha uma pose extremamente confiante mas um olhar meigo e triste…

- Apresento-te a minha esposa, a encarnação no mundo real da princesa que casa com um sapo e, por mais vezes que o beije, nunca consegue um príncipe.
- Deixa-te de disparates! Olá! És a amiga que o tem aturado nestes últimos dias? Muito prazer…
- Muito prazer. Ele é que tem aturado a mim.

Ele olhou para uma mochila que ela pousou no canto do quarto e perguntou:

- O que é aquilo? Já tenho pijamas que cheguem!

Ela pegou-lhe na mão e disse:   

- É apenas algo que vais precisar, mais tarde.

 
Acordei às duas da manhã a baterem-me suavemente na porta do quarto.
Abri a porta e vi dois homens e uma mulher a olharem para mim…

- Olá, ele pediu para te chamar. Também pediu que te vestisses para sair.
- E traz papel higiénico e a escova dos dentes! – Disse a mulher, um pouco mais atrás.
- E cobertores! – Sussurrou o outro.

Vesti-me à pressa, atirei alguns objectos de higiene pessoal para um saco de plástico, arranquei os cobertores da cama e saí.
À entrada do quarto olhei para o corredor e vi outros dois sujeitos a amarrar dois polícias amordaçados, a umas cadeiras.

Quando entrei, os três estavam a tirar à pressa, roupas de cabedal e um capacete da mochila, no canto do quarto. Depois começaram a vesti-lo, à pressa.
Ele olhou para mim a rir e disse:

- Ainda não sei para onde é que estes caralhos me vão levar, mas queres vir?
- Não tenho a agenda muito preenchida! E já que estou vestida…

Os restantes dois entraram no quarto e ele perguntou-lhes:

- Os polícias não a viram pois não?
- Acho que nem sequer nos viram a nós! – Disseram a rir.
Pegaram nele ao colo e descemos as escadas de emergência. Um deles, em vez de descer, subiu em direcção ao telhado.
Já lá em baixo, partiram o alarme de incêndio. Depois entramos numa sala com esfregonas e produtos de limpeza. Ficámos quietos, apertados, ofegantes e à espera.
Ele, agarrado ao pescoço do amigo não parava de rir…

- Aprende e observa-os pois é mesmo este o tipo de pessoas que, toda a vida, ouviste dizer que deverias evitar…

 Comecei a ouvir confusão nos corredores e de repente a luz foi abaixo…

- Aí está o resultado da excelente pedagogia ministrada no curso de Electrónica e Telecomunicações da Universidade de Aveiro! – Disse um deles.
- Com umas dicas do curso de Engenharia de Sistemas e Informática da Universidade do Minho!

Ele ria ainda mais com o diálogo…

- Deviam ter vindo trajados! – Olhou para mim e piscou-me o olho.

Saímos, na escuridão, em direcção à luz - de emergência. Lá fora, estavam quatro motas mais uma - com sidecar – onde o pousaram. Taparam-no com cobertores, entregaram-me o capacete dele e disseram para me sentar num banco de trás qualquer.
Depois aceleraramos.
No caminho, vi-o sempre a dormir - ainda sob o efeito dos medicamentos. Tinha um sorriso congelado na cara e toda uma expressão de vitória, de felicidade.
Parámos numa pequena vila chamada Sarrazola, junto de – ao que me disseram – “um dos milhares de canais não turísticos de Aveiro”.       
No cais estava um barco enorme e nele, um homem magro, a acenar-nos.
Ele, entretanto, acordou. Fez questão de se levantar sozinho e devagar, a cambalear, caminhou até ao homem do barco. Apertou-o com um abraço, ficou com os olhos humedecidos e disse-lhe:

- Oh meu caralho! Também estás metido nisto?
- Estamos todos! – E apertou-o com força. – Estamos todos. Sempre estivemos.

Um dos outros assobiou…

- Venham cá para me ajudarem a preparar a “receita”.

Olhou para ele, piscou o olho e disse:

- Tenho de te pôr “firme e hirto” e aos outros também. Não vamos pedalar mas isto também não é uma simples viagem a Santiago…

Pegaram num garrafão de água vazio, em vinho branco, cerveja, açúcar amarelo e mais umas coisas que não identifiquei. Abanaram tudo e passaram o garrafão de mão em mão… (Quando bebi, estremeci… Mas gostei! Era revigorante.)

- Vamos para a nossa ilha? É para lá que vamos? – Perguntou ele ainda abraçado ao amigo.
- Não. Achas que era preciso um barco destes para ir para lá? Nem tinha piada! Não te posso dizer, é segredo.

Enquanto eles metiam as motas no barco, a esposa dele chegou num carro branco. E a irmã uns segundos depois - numa mota que cheirava estranhamente a perfume.

Entretanto, perante a visão da sua esposa, sorriu e caminhou até ela, sem cambalear. Deu-lhe um beijo na testa e depois a mão.
Sem perceberem, mesmo à distância, a intimidade deles era comprometida pelas suas sombras – no centro de uma lua grande e cheia. Cheia por eles.
As sombras trocaram carícias, os lábios pronunciaram palavras e as mãos apertaram-se.
Estavam a voltar quando ele, ainda dentro da lua, a parou e lhe colocou algo na cabeça.
Enquanto regressavam às luzes do barco, algo na cabeça dela começou a brilhar. Como se ela estivesse a equilibrar, com a cabeça, toda uma constelação de estrelas.
Era uma coroa.
Era uma coroa tão bela, que qualquer leigo ao vê-la, mesmo não sabendo do que era feita, entendia que pertencia a uma princesa.

- Então é isso que a polícia anda à procura. – Disse um dos amigos.
- Obrigado querido. Mas lamento meu amor, amanhã vou devolvê-la.    
 - Amanhã podes devolvê-la. Mas enquanto eu te vir, até o barco desaparecer, peço-te que a uses.

Depois olhou para mim, piscou-me o olho e disse:

- Os príncipes compram, os sapos pedem emprestado.

O barco rumou, lentamente, pelas águas da Ria até ao mar. Ela foi desaparecendo no horizonte, sempre com a coroa posta e a brilhar – toda ela – como um farol.
A irmã abraçou-o enquanto comia uma maçã e os amigos iam passando o garrafão até ele.

Acordei sobressaltada, com gritos, guindastes a mexer e o barulho de um navio – um bacalhoeiro. Estávamos no alto mar, no meio do Atlântico.

Desembarcámos na América do Sul, em parte desconhecida mas linda; tão promissora como decerto havia sido para Vasco da Gama.
Por carregarmos os mesmos genes do Vasco, pisámos a areia não com um sentimento turístico mas com uma sensação de conquista.

Descemos as motas e voltámos a rolar.

Umas vezes mais forte, era ele quem conduzia. Outras vezes, ficava deitado no sidecar. A observar o céu, a paisagem e – a maior parte do tempo – a todos nós.
Muito aconteceu nessa viagem à volta da América do Sul. Muito veio à tona. Memórias e revelações. Coisas incríveis, pessoas fantásticas, momentos inesquecíveis.
Tenho tudo registado num outro caderno preto que um dia também abrirei. Neste caderno no entanto, registei um momento da nossa subida a Machu Picchu…


Abraçou-me. De forma muito semelhante à do parapeito. Olhou a cidade Inca e disse:

- Esta cidade foi, outrora, habitada por seres da nossa “espécie actual”. Talvez os primeiros de nós a alcançarem algo mais - algo mais do que a sua “esperança média de vida” lhes tolerava.
Aqui terão vivido os primeiros seres imortais da nossa espécie. Os primeiros a viver o seu estatuto (conquistado) de deuses, entre os deuses.    

Não percebi, na altura, muito do que ele disse, mas registei-o.


Umas semanas depois, chegámos ao deserto Siloli, no sudoeste de Potosi, Bolívia. Considerado um dos mais áridos desertos do mundo.
Não pretendíamos atravessá-lo como é óbvio, mas havia uma rota de passagem por ele que nos permitia chegar às Lagoas Coloridas e ao Salar de Uyuni. Tivemos no entanto, de acampar nas portas do deserto, pois recebemos um email com o aviso de um tornado que se estava a formar.
Como disse, durante a viagem tivemos noites mágicas. Noites de felicidade generalizada, contagiante. Inconsequência colectiva e brindes sentidos à vida, a nós… E ao Ricardo.
Durante a viagem, tivemos noites melhores do que essa. No entanto, registei esta, neste caderno preto, pelas razões que daqui a umas linhas irão perceber e pela carta que mantenho guardada na pequena bolsa de papel da contracapa…

Fizemos uma fogueira maior do que o razoável e mais quente que o nosso frio.
(Ele viajava no sidecar já há alguns dias, cada vez mais fraco, cada vez mais intermitente nos minutos em que adormecia e acordava.)
Pensávamos que ele estava a dormir e por isso ríamos baixinho. Ele aproximou-se por trás de nós, em pé, totalmente erguido, sem vacilar – há muito que não o víamos assim.
Olhou para a irmã e disse:

- Mana, já reparaste neste céu?
- Sim, está magnífico, deve ser por causa do tornado.
- Que tornado?
- Esta a formar-se (ou já se formou) um tornado a uns quilómetros daqui.
- Há mitos a afirmar que a visão mais límpida das estrelas só pode ser vista mesmo no centro de um tornado. – Disse um dos amigos.
- Ainda bem que reconheces que são mitos! – Respondeu outro a rir – Mesmo que alguém consiga chegar ao centro de um tornado, duvido que consiga, no dia a seguir, pôr um post no Facebook a garantir isso!

Rimos à gargalhada mas ele apenas sorriu e disse:

- Todos os mitos têm um fundamento de verdade… Bem, vou dormir.

Depois, uns metros à frente, olhou para trás, com ar de gozo…

- Se por acaso o tornado aparecer por aqui, não se esqueçam de me acordar… É que eu tenho conta no Facebook!  

Todos riram muito mas eu só consegui rir durante uns segundos. Porque fiquei concentrada no seu vulto afastar-se na areia. A indagar-me sobre se o esforço que fazia para caminhar direito era por nós ou para ele.

Na manhã seguinte, acordei com o nariz a tocar num objecto estranho, pousado na almofada do saco-cama.
Era uma carta, escrita com a sua linda caligrafia – não tão regular, mas ainda assim, firme e vincada…



Querida M,

Quero confessar-te e quero convencer-te que a vida é bem diferente do que eu outrora apregoei ou acreditei. Toda ela, ou a parte boa dela, independentemente da idade que tens, é na verdade um somatório de fragmentos. De “fotos”, se quiseres.
É verdade que quando somos (mais) novos, as fotos são aos milhares e parecem ser mais coloridas - por serem reveladas na “câmara escura” da imaginação e da inocência. Mas continuam a ser fotos que nunca irás parar de reter e revelar enquanto estiveres viva.
A vida que viveste e sentes viver, é um desfile dessas fotos. Um álbum que desfolhas rapidamente e se transforma numa película animada, fazendo desaparecer as páginas em branco onde não havia fotos, onde porventura (e em qualquer idade, qualquer altura da tua vida) estavas parada, a não viver. É por isso - pelo desfolhar do álbum de trás para a frente - que sempre olharás o passado como bem mais intenso e melhor que realmente foi e o presente como mais parado e pior do que realmente é. É por isso que imaginas o futuro como mais vazio do que será.  
Quero convencer-te que valeu realmente a pena conseguirmos, como espécie, viver mais que o suposto. Que a melhor forma de viver é desfolhar o nosso álbum como se ele não tivesse fim. Não a sentir nostalgia pelas páginas desfolhadas mas ansiedade, pelas fotos que ainda podes vir a percorrer. Viver em prepotência e presunção não seres uma fotógrafa com um rolo do tamanho da tua “esperança média da vida” mas sim uma realizadora, com uma pelicula infinita.
E realiza a tua vida.
Sem censura e sem “efeitos especiais” (embora com uma boa banda-sonora!). Acima de tudo, sem medo de deixar uma obra inacabada - pois a “tarefa de viver” já começou acabada.
 
Eu sei que no que toca a convencer-te de tudo aquilo que acabei de escrever, possuo um grande inimigo, um grande obstáculo – o amor. O tema que mais te desanima e descredibiliza o álbum da vida que até agora estás a desfolhar. Juro que gostava de saber como eliminar as marcas desbotadas nas fotos que as tuas lágrimas mancharam. Juro que se soubesse ou pudesse, editava em “Photoshop” todas as tuas fotos passadas. Não para as adulterar mas para te fazer ver que mesmo a “preto e branco”, manchadas ou desfocadas, são belas e devem permanecer no teu álbum. Farão parte importante (e bonita) do teu filme.
Gostava de poder adulterar – isso sim – a tua esperança, a tua noção do que perdeste e do que ainda poderás conquistar; o fim que prevês para o filme da tua vida. Gostava de te fazer sentir imortal.      
E, já agora, sabe que no amor também fui um lobo e até nele estive “fora de prazo”. Mas foi graças a essa falsa convicção de imortalidade, que vivi um, dois, dez, vinte amores e nunca tive medo de os recusar, de não os escolher. Ainda havia tempo.  
Foi o tempo prolongado que presumi ter que me deu a serenidade de acreditar e compreender que o amor das nossas vidas - a tal “alma gémea” - anda por aí, entre os milhares de nós, por encontrar, para ser encontrada… Com tempo.
Mas sim, deves ter pressa de encontrar. Vais ter pressa. O instinto da tua mortalidade (natural) vai fazer com que te precipites. Saibas porém absorver essa arrogância persistente e adaptável da tua espécie e não te precipitarás. Com implantes, terapias, transplantes, aparelhos de abdominais, próteses (e até um sidecar), irás ter tempo suficiente: para procurar, para escolher, para te arrependeres da escolha, recuar e voltar ao início.
 Até que a(o) encontres. Como eu encontrei.
Ainda que no limite da arrogância para com o tempo que realmente tens, no limite do tempo que dispões para a tua procura, viverás mesmo assim todos os momentos românticos e lindos que procuravas e são teus, por direito. Por teres persistido, por recusares - com a prepotência de um ser imortal - todas as escolhas que a procura foi sugerindo mas de alguma forma sentiste serem erradas ou, simplesmente, não tão certas como deveriam ser.
  
E (ainda) viverás esse Amor prometido. E gozarás com a vida. Mais ainda do que algum medicamento, cura, terapia ou prótese (até ainda por inventar) poderá tornar possível.
Não vivas em sofreguidão para encontrar o amor. Vive o amor, esse sim, com sofreguidão. E não desprezes momentos de “amor fora de prazo” – mesmo que jamais passíveis de serem retratados num bom livro ou filme...
Como escovarem a tua prótese dentária e voltarem a coloca-la num copo de água com limão escolhida para ti e que é só teu. Ou aquecerem o teu pijama junto à lareira enquanto estás no banho e entregarem-to, em mãos, quando sais. Ou atrasarem a tua saída de casa para escovarem o borboto da camisola que vestiste para ir à sessão de Quimioterapia. Ou empurrarem-te para depois te abraçarem quando ressonas alto….
Jamais encontrarás num filme ou num livro (pelo menos bem cotados) descrições de momentos tão românticos - mas fora de prazo – como esses. No entanto, mesmo que só esses momentos possas ter, tê-lo-ás. Porque apesar de tarde, mesmo depois que “o suposto”, os conquistaste.

E porque o amor também não se rende ao tempo.
                                                                                                                                                                                                                                                      
Não te rendas. Mesmo quando a vida descarregar sobre ti a sua raiva (de uma forma que se tornará cada vez mais frequente com a tua persistência em existir). Reage, vinga-te dela com força, sem cambalear; vivendo um pouco mais que o suposto. Desfruta em pleno do estatuto de um deus que a nossa espécie irritante, parasita, adaptável e resistente lutou para (te) conquistar nos últimos 150 anos. O estatuto de viver como um deus na terra:

- Com milhares de seres à sua volta, mais novos e inocentes, a tomar decisões com desfechos que já conheces mas ainda assim, desfrutarás como se de uma novidade se tratassem. (Como um bom filme que voltaste a alugar).  
- Cenários, paisagens, personagens e experiências que se repetem. Revividas com nitidez e verdadeiramente contempladas, sentidas. Não desfocadas pela surpresa da descoberta e da sofreguidão distraída de as viver.
- Vinhos que abrirás com a dignidade de conseguir apreciar o seu sabor. Que passarão a preencher-te mais do que a embriagar.
- Fotos com maior exposição. Mais panorâmicas mas ao mesmo tempo também mais detalhadas.
- Capacidade para dares conselhos em vez de teorias. (Afinal, e como alguém sábio um dia disse, um conselho não é mais do que um erro cometido depois reciclado e polido, oferecido num embrulho bonito).
- Memórias. Que suplantam o tempo limitado (e editado) das recordações. Que te permitem saber o que tudo já foi, muito antes do que agora é ou se pensa ter sido.   
- Próteses, transplantes, medicamentos, drogas e curas a manterem-te de pé, a fotografar e a realizar.
- Amigos (vivos e em pé) como espectadores e actores secundários da tua glória, presente e passada.
Amor e filhos a passarem os créditos da tua essência enquanto vivo e a perpetuarem o teu legado, depois… da segunda consequência.
E no fim, mesmo lá para o fim, um coliseu (não quero abusar e chamar-lhe templo) erguido em teu nome. E nele, uma tela de cinema a passar o teu filme.
                                                                                                         
Talvez recebas um óscar, talvez não passes do “circuito alternativo”. O importante é que a ficção que criaste para ti torne credível a frase “Para sempre”. Que a tua mensagem seja “Imortalidade” e a moral da história seja “Amor eterno” – uma espécie de indiferença dos que te amam aos defeitos que deténs e aos erros que cometeste.
No estatuto de Deus que a tua espécie conquistou, está-te reservado um coliseu e um palco – montado pelos que te amam. Neles apenas dançarão as virtudes que te tornaram único.  
Saibas, no fim (estando ou não presente), escutar, sorrir e agradecer as palmas.                                               
Sim; no fundo, só deveria ter escrito isto: Escuta, sorri e agradece.

Beijinhos, muitos beijinhos, minha filha. Amo-te. Espero que tenhas paciência para ler toda esta carta – mesmo que não de uma vez só. A verdade é que divago demasiado sempre que bebo demais e acima de tudo, neste momento, estou bastante embriagado com a vida. A acreditar que terás tempo para a ler. Por seres, tal como eu fui, imortal.  



Na manhã seguinte, a mota mais potente desapareceu e ele também.
Fomos para o topo da montanha mais próxima e depois de horas a observar o horizonte deserto, algo captou a nossa a atenção…
O tornado anunciado levantou-se, numa zona longe da prevista mas ainda assim, com a força estimada. E de repente, a 280 km/h, num fragmento azul, perfumado e com duas rodas, lá estava ele, a rolar na sua direcção.
A boca do tornado era tão grande, que da nossa perspectiva, media sete centímetros. Vimo-lo a baixar a cabeça e a entrar nele, a 320 km/h. Suspendemos a respiração durante – na nossa perspectiva – treze minutos. Ao décimo quarto, ele apareceu. Mesmo no centro, de pé e com os braços abertos – como sempre tinha desejado voar.
Nós explodimos em aplausos e ele, escutou-os, sorriu e agradeceu – momentos antes de desaparecer no céu.                                  

Não foi bem assim que esta parte da história aconteceu, mas foi assim que (para sempre) a decidi registar.
                                              

                       
Não conheci o meu pai durante 21 anos. Fui fruto de uma das suas más decisões e vivi “a consequência” de ele ter tempo para se arrepender – não de mim – mas do álbum que estava a fotografar. 
Quis a vida, a sua ironia e imprevisibilidade, que nos encontrássemos 22 anos depois, no parapeito de um hospital, com vontade de fumar. Não foi um pai ausente, pois por causa da minha mãe, nem ele nem eu sabíamos que faltávamos, um ao outro. Mas foi o melhor pai que poderia ter.
Mesmo sem perceber de “Photoshop”, nas últimas semanas ele conseguiu editar todas as fotos que eu tinha, arquivadas nas páginas da minha vida. Não as adulterou, apenas deu destaque às cores que me estavam escondidas e ensinou-me o ritmo com que as devia folhear - para contemplar e realizar o meu filme.

Neste momento tenho 22 anos e tal como todos nós, não pedi para nascer. Vim e encontrei um mundo esgotado, sem esperança e em crise… De valores, essencialmente.
No entanto, mesmo sem ainda ter percebido porquê, sinto-me grata pela consequência de boas e más decisões que me fizeram nascer.
Percebo que o tempo passa ao ritmo de fotos que tirámos e folheamos. Aprendi que terás tantas fotos quanto o tempo que tiveres para as tirares. E também sei que hoje - mais do que ontem mas menos que amanhã - o ritmo será mais rápido mas o tempo será mais longo...
O meu pai demorava mais do tempo num autocarro , na assinatura de um cartão de biblioteca e no pagamento da multa de atraso pela entrega de um livro que eu demoro no Google, a  contemplar 10000 informacões  de dez mil génios (dentro ou fora de prazo) . Um amor de Verão, prolongado em 50 cartas, 50 selos, 50 envelopes,  é agora resolvido no Skype, em 150 segundos.  Um encontro para jantar é marcado, re-agendado, deslocalizado e mesmo assim, pela altura em que os meus pais estariam a agradecer as ultimas orientações para a morada certa, a subir a janela do carro e a dobrar o mapa, eu já estarei na sobremesa.  
Com a vida, esta que tens neste preciso momento, herdas a responsabilidade de fazer algo “prepotente, parasita, adaptável e resistente com o tempo que ganhas, a cada segundo.
O meu pai e os seus amigos ensinaram-me a ser imortal.
Ensinaram-me que não há problema nenhum em desperdiçar tempo, em gozar com a vida – na cara – fazendo de conta (ou realmente acreditando) que ela não acaba. Que não há “dead-lines”, limitações, escolhas irreversíveis, consequências. Ensinaram-me a escarnecer em vez de fazer “like” de posts no facebook  a profetizar que o” fim está próximo” e mais vale escolher / fotografar tudo amanha, e rápido - antes que o tempo se esgote.  Ensinaram-me que para tudo o que chamamos viver é sempre tempo certo e apenas existe um ritmo certo.
Depois ensinaram-me coisas que ainda não aprendi (ou ainda não desfolhei), porque por enquanto, estou bastante ocupada a ser imortal, parasita, resistente… Intemporal. Ou qualquer outra coisa que a vida queira chamar-me.
Para já, estou bastante ocupada. A viver. E depois … Bem, depois, vou vingar-me. Vou insistir manter-me viva o máximo que puder.


Filipe Lascasas

P.S. Para os meus “sete”, para a minha mana e, principalmente, para o Farol.                                                                                                                                                                                               
Banda sonora: Youth lagoon – Raspberry Cane