Limpou a última gota de sangue, pousou-lhe a mão na face e sorriu. Prendeu a ponta das ligaduras com o polegar e enrolou-as à volta dos pulsos, tapando as feridas dos olhos e da alma.
Este não é o fim da história mas também não é o inicio.
Encheu a banheira com água a quarenta graus – a temperatura que dizem ideal para (nestas circunstâncias) confundir o corpo e não deixar que ele incomode a alma.
Pousou a lámina no pulso direito e depois no esquerdo; escorregou para dentro de água e sentiu à sua volta um calor vermelho, que o fazia voltar ao ventre da sua mãe.
Sem realmente adormecer, entrou num sono profundo e quase logo, teve daqueles sonhos que se lembram, quando estamos acordados.
Os pais acordavam-no com um beijo e faziam-lhe uma surpresa no dia de aniversário com um bolo de iogurte. Depois pedalava na bicicleta emprestada pelo Rui, ao pôr-do-sol, num campo de tremoços. Deu dez primeiros beijos em dez amores e despediu-se de todos eles com a certeza de ser recordado. Os amigos ofereciam-lhe uma braçadeira, levantavam-se, batiam-lhe continência e nomeavam-no capitão. Ele levava alguns para a guerra, pedia-lhes que entregassem as suas vidas por ele e ganhava – todos viviam. A irmã partia um dente a fazer cambalhotas, ria, chorava e ria outra vez. Cinco bébes apertavam a mão direita no seu dedo anelar, confirmando que o ouviram e o (re)conheciam na vida e amor dos seus pais. Numa madrugada do dia de Natal estava com o seu irmão na ribeira, no mesmo estado de felicidade. A mesma estrela cadente rasgou o céu e ele pediu o mesmo desejo – aquele que ainda hoje pediria...
- O que foi?
- O que foi?
- Uma estrela cadente... Já acabaste o café?
- Pediste um desejo?
- Acho que sim. Não sei se me precipitei mas curiosamente não foi aquele que era suposto...
- Então é porque era esse que tinha de ser pedido.
- Pediste um desejo?
- Acho que sim. Não sei se me precipitei mas curiosamente não foi aquele que era suposto...
- Então é porque era esse que tinha de ser pedido.
No fim de vários sonhos sobre tudo aquilo que teve, veio um pesadelo sobre aquilo que desejava ter. Visualizou com detalhe o que lhe faltava e aí abriu os olhos – para se certificar que a água ficava vermelha, cor-de-sangue. Para ter a certeza que em breve, com pesadelos ou sonhos, a mágoa teria um fim.
A água estava já a vinte graus quando eles entraram – sem pedir licença.
Ela limpou a última gota de sangue, pousou-lhe a mão na face e sorriu um sorriso de aceitação.
- Perdoa-me mas não é assim.
Prendeu a ponta das ligaduras com o polegar e enrolou-as à volta dos pulsos, tapando as feridas dos olhos e da alma. Pegaram-no ao colo e deitaram-no numa cama que fizeram com lençóis vermelhos – cor de sangue. Ele dormiu sozinho, em lençóis que mereciam (a sua) companhia. Dormiu e sonhou sonhos cor-de-sangue, a salvar anjos de demónios, a viver o amor verdadeiro que dormiria a seu lado em paz, sabendo estar protegida por um capitão.
Ele apareceu na sala com os golpes cicatrizados e a cama já mudada (por ele). Estava pronto.
Fizeram a viagem em silêncio, propositadamente pelo caminho mais longo, junto ao mar. Ele olhou para as ondas e pediu-lhes força. Depois olhou para o céu e pediu-lhe um pouco de sorte.
Ela pousou-lhe a mão na face e sorriu. Prendeu a ponta das ligaduras com o polegar e enrolou-as à volta dos pulsos, tapando as cicatrizes dos olhos e da alma. Calçou-lhe as luvas, bateu-lhe nos ombros e disse:
- Estás pronto.
Ele percorreu um corredor formado por todos os que o pousaram numa cama de lençóis vermelhos, uns meses antes. Entre rir e chorar, escolheram rir. Lançaram-lhe aplausos e abraços que faziam dele já um herói. O Bruno teve dificuldade em conseguir que a braçadeira passasse pelas luvas mas conseguiu pô-la, um palmo abaixo do ombro.
Olhou para o ringue e depois para eles – de braços abertos a acenarem vitória. Entregou-lhes um sorriso de resignação, perante a eminência de uma morte certa, uma luta de David (sem fisga) contra Golias.
A luta era por amor – em nada diferente das batalhas mais importantes que se travaram no mundo... Mas isso é outra história.
Ele subiu ao ringue, bateu as luvas uma contra a outra e lançou-se à batalha.
Não há nenhum mal em morrer... Isso acontece; a todos.
É a forma como se morre que conta. Por isso não deixes alguém morrer por desistir. Liga-lhe os pulsos e faz-lhe a cama com lençóis de coragem e dignidade. Depois deixa-o morrer... Mas a lutar.
Ao primeiro soco caiu. Mas levantou-se. Ao sétimo soco caiu outra vez mas estava a ganhar, já desde o primeiro.
Este não foi o fim da história, foi o ínicio.
Filipe Lascasas
Aos que me fizeram a cama.
Para ouvir com: "Waiting For The End" - Linkin Park