terça-feira, 7 de junho de 2011

Recados em guardanapos deixados por ratos (como tu e eu)





I – O Mr Unlucky.


Em 1997, no início de uma aula de Citologia Animal, foi-nos anunciado que iríamos estudar a anatomia de ratos. 
A funcionária entrou na sala com uma jaula cheia de ratinhos brancos e cinzentos, completamente alheios ao que lhes iria acontecer, focados numa vida que sempre haviam tomado como encarcerada. 
O professor foi minucioso na explicação da operação, métodos e gestos que deveríamos aplicar. Ocupou com isso a primeira meia hora de aula. No entanto, quando chegou à parte da anestesia, desleixou-se - foi vago e precipitado.
Questionei pela primeira vez se teria escolhido o curso certo quando apontei o bisturi à barriga do MrUnlucky – um nome que achei apropriado para o pobre rato que a funcionária deixou na minha bancada. 


Recado para o mundo:

Decidi ir para o curso de Biologia numa altura em que não tinha ainda convicções sobre o que queria fazer na vida (uma sensação que só se prolongou até à minha idade actual). Lembro-me de ter a folha de candidatura às Universidades em cima da mesa durante dois dias e de no terceiro ter visto um documentário das viagens do Jacques Costeau à volta do mundo, com Biólogos a encarnarem marinheiros, a navegarem os mares de todo o mundo, a admirarem todas as formas de vida do planeta. 
Quando o documentário acabou, peguei na folha e assinalei “Biologia” em todas as opções. Amava a vida em todas as suas formas, era bom a ciências, sentia um desejo urgente de viajar e a projecção de mim num navio a navegar pelo mundo, era a inspiração que me faltava.

Ass Eu.

Demorei o dobro do tempo a garantir que a anestesia tinha sido eficaz e apontei o bisturi à barriga do Mr Unlucky. Questionei pela primeira vez porque tinha escolhido um curso onde ameaçava uma vida em vez de a admirar.
A meio da aula, o rato do meu parceiro de bancada (que não tinha nome mas a ter seria “Mr Very Unlucky”) acordou de uma anestesia mal dada. O meu colega entrou em pânico e o MrVery Unlucky, de barriga aberta e entranhas de fora, olhou para nós e para o mundo – uma sala bem diferente da jaula onde nascera e avassaladoramente maior. O mundo. 
Eu apressei-me a pegar no frasco de Clorofórmio mas quando acabei de molhar o pano, o meu colega tinha já esmagado a cabeça do “Mr Very and Horribly Unlucky” com a base de um Erlenmayer.

- És um cabrão, apetecia-me fazer-te o mesmo.

Recado para o mundo:

Não foi necessariamente por causa desta frase, mas a verdade é que na Universidade não fiz muitos amigos no meu curso. 
Não controlas quem te rodeia no trabalho mas controlas quem te rodeia o resto do tempo. Se não fores cuidadoso, desperdiçarás tempo com alguém que eventualmente, por pânico, egoísmo ou puro instinto de sobrevivência, não hesitará em esmagar-te, com  um Erlenmayer ou qualquer outra coisa que esteja à mão.

Ass. Eu



Eu não quis saber dos métodos, do gestos nem do relatório. Empurrei com cuidado e minúcia as entranhas do MrUnlucky para dentro do seu corpo e cosi pela primeira vez na minha vida, a ferida aberta de uma criatura viva.

Recado para os meus amigos de infância:

Não teríamos tantas cicatrizes feias se houvesse Citologia Animal no liceu.

Ass. Eu

Nos dias que se seguiram, estava mais preocupado com o estado de saúde do Mr Unlucky do que com o facto de o professor ter ameaçado chumbar-me - enquanto não realizasse uma operação que o obriguei pelo menos a designar como “autópsia”.
Mr Unlucky nunca mais ficou bem. Ao segundo dia, espevitou mal o tirei da jaula, até comeu. No entanto, a partir do terceiro, começou a arrastar-se. A funcionária dizia que ele ficava à minha espera. Arrastava-se até à porta da jaula e depois ali ficava, com o olhar perdido no horizonte que lhe era possível. Quando chegava, pegava nele com cuidado e ele ficava quieto na palma da minha mão, com um olhar vencido mas menos triste. Concentrava todas as forças que tinha no acto de olhar e cheirar tudo à volta, de sentir a mais pequena brisa que percorresse a sala. 
Um dia acordei a pensar no MrUnlucky. Na verdade, tinha acordado de um sonho estranho, onde ele se sentava à minha frente num bar, transformado numa versão gigante de rato. Falava comigo 10 anos mais tarde e contava a sua história de vida após um dia em que não o devolvi à jaula e ele havia descoberto o mundo – muito além da sala. De vez em quando, interrompia o seu discurso e puxava um guardanapo, onde escrevia recados para mim ou para o mundo.
Nessa mesma manhã, coloquei-o no bolso da bata e fui lá fora. Pousei-o na relva.
Ele ficou quieto, com medo. Tremeu durante três minutos, levantou a cabeça e caminhou pela relva devagar, a sentir cada passo que dava, livre. Depois, uns metros à frente, olhou para mim, respirou profundamente e morreu. 
Fiz-lhe a autópsia de lágrimas nos olhos e o relatório da mesma. O professor riscou a vermelho todas as partes do relatório onde mencionei “autópsia” mas passou-me, com 17 valores.


II- O Júnior


Fui ao laboratório comunicar o roubo mas ele já havia sido notado...

- Não te preocupes, ele já não constava no inventário... Sabes que ele tem um filho? Provavelmente não é o único mas aquele é sem dúvida dele, com a risca cinzenta a atravessar-lhe as costas.

A funcionária virou costas para tomar um “segundo chá” e deixou-me sozinho no laboratório. Peguei no filho, enrolado em si e transformado numa pequena bola. Coloquei-o num dos tupperwares mal lavados da minha mãe, destinados a voltarem com comida. Pousei-o ao meu lado no banco do carro e regressei a casa. 
Dois anos mais tarde, quando regressava a casa, após uns meses de viagem sem destino, dei comigo a pôr a cabeça fora da janela de um comboio, a olhar e a cheirar tudo à minha volta. Senti o vento bater-me na cara. 
Regressava a casa – da qual sentia saudades – mas também a uma vida que reconheci (já em viagem) estar a fugir. 
Quando me sentei, olhei o meu reflexo e vi um olhar vencido e triste. Procurei ocupar o pensamento com recordações de viagem e histórias para contar mas acabei por recordar o Mr Unlucky. Tentei distrair-me e escrever recados para o mundo mas não havia guardanapos; muito menos algo que realmente valesse a pena o mundo ouvir.
Na janela que não podia evitar, reconheci o meu olhar no dele – quando o devolvia à sua jaula. Foi aí, duas estações antes da chegada, que compreendi que o Mr Unlucky se arrastava até à porta da jaula não à minha espera mas sim de algo que havia conhecido no dia da sua autópsia: liberdade. Eu era apenas o guarda prisional com as chaves da cela, a mão que o levava ao “pátio”, à brisa e ao mundo.

Recado para o mundo:

A liberdade é um conceito definido pela alma. O que a alma não conhece não lhe pode fazer mal.
As doenças da alma não são como as do corpo - que sucumbe a seres que nunca viu ou conheceu senão em livros ou num microscópio. As doenças da alma nascem de algo que é sempre conhecido ou reconhecido por ela.
À minha alma deram a conhecer o mundo, à escala de uma sala. 
Quando me devolveram à vida, devolveram-me àquela que tinha, devolveram-me à jaula. 

AssMr Unlucky



A cidade do Porto revelou-se prepotente e bela na janela do comboio. Ignorou o meu reflexo e fez questão de se mostrar indiferente ao meu regresso – como uma esposa abandonada pelo marido em viagem, consciente que ele encontraria muitas amantes mas acabaria por regressar a ela, rendido.
Os meus pais demoraram treze dias a perdoarem-me os sessenta e quatro em que me atrasei - relativamente à data que anunciada para o meu regresso.
 
Entretanto, o Júnior havia crescido. 

Para dificultar a reconciliação com a minha mãe, ele nunca tinha deixado de estar presente, fazia sempre (e às vezes de uma forma inexplicável para um ser desprovido de dotes racionais) aquilo que ela lhe pedia. Agia sempre de uma forma expectável.
Não por vingança ou ciúmes – e disso o meu psicólogo tem a certeza – um dia
deixei a porta da jaula do júnior aberta. Fiz um caminho de comida até à porta do quintal e depois dela, um caminho de comida até ao quintal e depois do quintal, um caminho até à floresta. Na manhã seguinte, a comida estava toda comida até ao quintal, mas ele repousava exausto na sua jaula, no seu emaranhado de lã. 
A minha mãe acordou, deu-lhe comida e ele fingiu que a comeu. Mal ela virou costas saltou para a roda e começou a correr com a cabeça virada para ela – a certificar-se que ela o via. Ela baixou-se junto à jaula, chamou-o e ele veio. Encostou a cabeça ao chão e ela fez-lhe umas festas na nuca. Quando parava, ele voltava à roda e corria ainda mais rápido, até ela voltar.


Recado para o Júnior:

Não compreeendo como és indiferente àquilo que o teu pai mais desejou.

Ass. Eu.


Este ciclo durou quatro anos. Ao terceiro, ele perdeu a visão e a jovialidade. Tudo permanecia igual excepto no ritmo. Reconhecia os passos da minha mãe e vinha à porta ter com ela. Comia, recebia as festas e ia para a roda, desta vez não com a cabeça virada para ela mas para todos o lados, a ver a sua amada – à esquerda, à direita, no chão e principalmente no céu.  
Nesses quatro anos, houve outras alturas em que a jaula havia ficado aberta. Havia alturas em que ele tinha saído, mas sempre voltado.


Recado para o Júnior:

Eu amo a vida. Tu amas a minha mãe mais do que a vida.

Ass. Eu.


Recado para ti:

A vida não parece encarcerada quando se tem o amor das nossas vidas por companhia. Nem a cegueira importa, porque a cara de quem amamos permanece para sempre encarcerada na nossa alma. 
O amor é a única coisa na vida que nos faz ver mundo como queremos e não como ele realmente é. É a única coisa capaz de relativizar por completo muros, grades e portões – porque a liberdade é um conceito definido pela alma e no amor, ela corre, ri e voa. No infinito. Para sempre. 
A cegueira e tantas outras privações, quando ensopadas em amor, são apenas pormenores.


AssJúnior


Um dia, ao almoço – meses após a minha mãe me ter perdoado - falámos do Júnior... A conversa relatou pequenos gestos seus, pequenos factos, no entanto resumiu-me a um único tema: amor e fidelidade.
À tarde ouvi a minha mãe dar um grito. O Júnior permanecia inerte, deitado de lado, apenas com uma pata em cima da roda.
A minha mãe ficou a chorar, sentada numa das cadeiras da cozinha e o meu pai pegou nele. Descemos até ao quintal e eu escolhi o melhor sitio possível para cavar uma pequena cova. A minha mãe desceu a chorar, levantou a mão do meu pai e deu um beijo no Júnior. 
Eu abracei a minha mãe e o meu pai colocou cuidadosamente o Júnior um palmo abaixo da terra do nosso quintal – no sitio onde melhor poderia ver as flores da minha mãe crescerem.
De repente, o Júnior mexeu-se.
Estava vivo. Já nós... Aterrados. Começou a arrastar-se com uma só pata – a direita, a da frente. Nós ficamos congelados, quase sem respirar e com as mãos pousadas na terra. De tão aterrados, não conseguimos perceber que no círculo de seis mãos que o rodeavam, ele se dirigia a uma em particular – a da minha mãe. Quando lhe tocou, cravou as unhas nas costas da mão e puxou-se para cima dela. Parou. Aconchegou-se, fez um grande suspiro e adormeceu. A minha mãe permaneceu imóvel durante muito tempo, com o Júnior nas costas da sua mão.
Ao fim de uns minutos ela levantou-se e ele, ajudado por uma brisa primaveril, pôs-se de pé. Eu, a minha mãe e o meu pai rejubilamos em alegria. O Júnior, de pé, dançou uma valsa com a minha mãe. (Uma valsa, um tango ou algo entre os dois – algo que a minha mãe faz sempre que está feliz.) 
Eu e o meu pai sorrimos e eles dançaram quintal fora, a rodopiar, a encostar narizes, a celebrar. 
Quando a dança terminou, a minha mãe subiu as escadas e colocou-o na jaula. Ele deu dois passos em direcção à roda, parou, olhou para trás e voltou a cair. Mal via mas olhou directamente nos olhos da minha mãe. Depois ficou a olhar para os meus...

- Eu sei o que se está a passar, o que ele está a sentir.

Peguei nele e levei-o lá para fora. Segui o mesmo caminho para a floresta que havia feito um dia, enquanto deixava comida de rato para trás...
Pousei-o no chão e ele deu três passos em frente, compassados, com ansiedade mas muita firmeza – como se sentisse o chão e todo planeta, em cada passo que dava.
Após três passos a olhar em frente, parou e olhou para a minha mãe. Depois deu mais dois passos. Olhou para ela novamente e percebeu que ela apenas olhava para ele, não para onde ele se dirigia. 
Todos os passos seguintes foram iguais. Desapareceu no ponto fixo onde todos os caminhos não percorridos terminam. Nunca mais o vimos.


III – Sair da jaula


Passadas umas semanas ela pousou o último prato de sopa na mesa e disse:

- Tu ao menos voltaste.


Recado para a minha mãe:

Ele voltou mais vezes do que eu.Tantas quantas as necessárias para provar que se pode amar algo mais que a vida e a liberdade. Chegará o dia em que partirei novamente, espero não ser tarde mais... Quando é tarde não se volta.

Ass. Eu.


O dia de voltar a partir chegou. Fui convidado a ir para Lisboa – a capital.
Como qualquer capital, era o sítio onde tudo acontecia, ou pelo menos onde acontecia tudo o que humanidade consegue e faz acontecer, de bom e de mau. A decisão de partir não foi fácil - demorou uma semana. Estava cansado de viajar, feliz no meu canto de lã e a viver numa cidade demasiado calma e pequena, onde muitas vezes se reconhecem caras numa versão sempre exagerada de trânsito. Achei que a culpa da minha apatia era do lugar onde estava, das pessoas que me rodeavam – demasiado importantes, a ocupar todo o meu tempo sem deixar nenhum para mim. 
Todas elas fizeram brindes, duas ou três festas de despedida e eu parti.


Recado para Ratos como eu:


Pedi uma caneta ao empregado deste café em Belém e neste guardanapo quero revelar-vos que a vida fica reduzida de forma espontânea e natural aos dias que vêm. Passa ao ritmo de uma roda onde acabamos por correr, a entreter outros, a sobreviver – sem ir a lado algum.
Chegam as sextas à noite e apanhamos uma bebedeira ou algo análogo, sozinhos, acompanhados, tanto faz. No sábado, ressacamos e pensamos fazer alguma coisa nova - que na verdade é uma coisa velha mas que mesmo assim, raramente fazemos... 
Talvez consigamos vencer o sofá e andar de bicicleta, talvez vejamos o pôr-do-sol, talvez molhemos os pés no mar. Ás vezes fazemos alguns quilómetros de alcatrão, visitamos algum lugar onde nunca estivemos, apesar de perto. Fazemos coisas que quase parecem novas mas a “sensação” permanece, o sentimento de ir apenas um pouco longe da roda – com  um aperto que não identificamos mas não é mais do que a trela curta com que nos passeamos, com medo de nos perdermos. 
Vem o domingo e com ele a certeza inevitável que vamos ter de voltar e nada mais podemos fazer do que gastar o tempo que resta até ao despertador. Gastamos o tempo que nos dão fazendo nada, vendo filmes, navegando na Internet, ouvindo música sem a necessidade que ela nos inspire, vendo televisão. Visitamos focinhos familiares e a utopia que todas eles te acompanharão; a ilusão que enquanto os virmos a vida que outrora tivemos, realmente não mudará. No entanto, não partilhamos tempo – gastámo-lo, uns com os outros.
Gastamos o tempo fazendo nada. Até o despertador tocar. 
Depois vem a segunda de manhã e voltamos ordeiramente para roda onde entretemos quem nos dá o ninho de lã e a comida - que apenas realmente usufruimos ao sábado e ao domingo. Esperamos no trânsito, tentamos rir com humor fácil na rádio, insultamos gratuitamente carros que não respeitam leis de trânsito inexistentes em filas de espera. Repetimos o processo no dia a seguir e no outro depois desse, ansiando por sexta-feira. 
Vêm as férias e com elas sextas, sábados e domingos de dois, três, quatro dias, não importa – a segunda chegará e como sempre, será de apenas um dia.
Sonhamos com o que vimos longe da jaula – por nos termos um dia deixado ir. Às sextas-feiras nada fazemos senão caminhar até à porta que deixam aberta, esperando que a vida chegue no bolso da liberdade. A liberdade ajoelha-se à porta, faz-nos umas festas na nuca e sussura-nos palavras de mudança irreflectida, revoluções, decisões irracionais – propensas a nos colocarem numa situação onde iremos ser esventrados. Afinal, a linha que separa coragem de estupidez é muito ténue e muitos questionam se ela sequer existe.
Optamos não ser esventrados, optamos pelo ninho de lã, pela comida certa a horas certas. Optamos permanecer vivos.
Alguém inventou uma palavra para o desígnio de permanecer vivo: sobrevivência. Para um biólogo, até para o Jacques Costeau, nenhum ser vivo faz mais do que tentar garantir isso. É  seu desígnio.
Na ausência de um único relatório de citologia animal (ou qualquer outra disciplina) a reportar ter ficado com vestígios de alma e sonhos na ponta do bisturi, nada temos em que nos basear para mudar ideias, para não ficar apenas à porta e fazer os dias passarem na roda do nosso desígnio. 
A vida nada mais será então do que os dias que estão para vir, sobrevivendo até uma segunda feira que não dará lugar a uma terça.


Ass. Um de vós


IV – Uma segunda-feira diferente


Algures num laboratório, um rato mordeu com força a mão de uma funcionária e a porta ficou aberta... Uns ratos ficaram enrolados nos ninhos de lã, outros atropelaram-se a correr nas rodas, o melhor que podiam - para que ninguém ficasse zangado. No entanto, dois ou três ousaram fugir. 

Algures numa autoestrada de Lisboa, numa fila interminável de carros um tipo atravessou-se à minha frente sem dar sinal e eu bati-lhe com o carro. Saí do carro e ele também. 

- Vai assinar a declaração?
- Só se for para se dar como culpado.
- Então chame a policia

Depois afastei-me e fui buscar um cigarro. Encostei-me ao carro e à minha volta centenas de olhares enjaulados, a minutos de correrem em rodas, olhavam para mim. 

Algures num laboratório, um rato olhou alguns a dormir e outros a correr com toda a pressa que podiam para fazer a comida chegar – a única forma que tinham de o conseguir. Um rato nunca saberá em que dia da semana está mas percebe que são todos iguais, anseia por outros diferentes... 
O barulho ensurdecedor das rodas, o silencio insuportável da apatia e da rotina pingaram lentamente na alma de um rato e foram-se condensando em pura raiva. Uma mão abriu a porta e toda a raiva converteu-se numa dentada, toda a apatia foi quebrada por um grito. 

Algures numa autoestrada de Lisboa, uma pinga de suor correu-me pela testa até ao olho direito e dele nasceu uma lágrima que cozeu no meu rosto, rendida ao sol. Dois condutores atrás de mim saíram dos carros e começaram aos berros...

- Vão tirar os carros? Estão a estorvar!
- Estão atrasados para quê? Para correr na roda?

(Não sei ainda hoje se cheguei a dizer tudo isto). Senti o isqueiro na mão e apertei-o com força. Depois, com a certeza que os meus dedos não se encolheriam, esmaguei o meu punho contra a cara do rato que falara primeiro. Depois contra a segunda. 
Voltei-me e o culpado do acidente olhava-me em pânico, como um rato fora da sua jaula pela primeira vez. Trancou-se no carro a digitar números de 3 dígitos no telemóvel e eu parti a janela. Tirei-o cá para fora e tentei aliviar a minha testa em brasa contra a dele. As lágrimas e o suor coziam-na e eu sentia a frescura do ar cada vez que a deixava cair em cima dele. A raiva foi desaparecendo na frescura dos meus gestos e o silêncio insuportável da apatia foi substituído por um barulho diferente - o meu.

- Eu assino... eu assin... eu assi... eu... 

Ninguém assinou. Arranquei o resto do pára-choques com um pontapé e continuei na estrada para o escritório.
No entanto não parei, evitei qualquer saída, segui em frente, abri as janelas e senti o vento bater-me na cara. Foi a ele que lancei a minha carta de demissão, na forma de um sorriso e com um grito quase tribal como assinatura.
A gasolina acabou mas eu continuei a caminhar, em frente, numa estrada que parecia interminável e inóspita mas diferente a cada metro. Senti ansiedade e medo em cada passo que dei mas também a terra e todo o planeta debaixo de cada um. Passo a passo, fiz desaparecer qualquer ponto fixo no horizonte.  
Senti fome e cansaço. Não vi comida nem sitio para dormir em lado algum. Apenas um horizonte desconhecido a prometer nada mais do que a novidade. Não havia dúvidas que onde quer que estivesse não estava numa jaula. Quaiquer que fossem as estradas, eram rectas, não rodas. Por isso nunca parei de caminhar.


V – Fora da jaula


Não sei quanto tempo de caminhada me resta nem que caminhos farei, mas curiosamente todos me têm levado ao norte – talvez porque é para onde as bússolas apontam. 
No norte adivinho um lar, não uma casa. Finalmente – depois de uma vida a provar o contrário – adivinho um destino definitivamente melhor do que a viagem.

Recado para ti:

Uma casa é algo para onde vais. Um lar é um lugar para onde regressas. Uma casa arranja-se mas um lar procura-se, descobre-se - muitas vezes sem querer. Não é um lugar feito de grades, portas, janelas ou paredes. É feito de pessoas, afectos e sensação de pertença. 
Quando encontrares o lugar onde pertences, jamais encontrarás restrições à vontade de partir mas para sempre sentirás a de voltar. Nunca lá encontrarás silêncios de rotina ou apatia pois todos à tua volta fazem um barulho diferente – o teu. 

Ass. Junior



Há umas noites, no caminho, voltei a ter um sonho em que falava com ratos... À volta de uma mesa, o Mr. Unlucky e o Júnior partilhavam histórias, escreviam recados em guardanapos, com caligrafia de rato. Deixaram-nos espalhados pela mesa, tal como eu aqui. 

Recado para ti:

Nunca em momento algum fora da jaula caias na tentação de te julgares invencível pois na verdade, nunca estarás tão vulnerável. As paredes que te impedem de ver o sol são também as que te protegem das mais horríveis tempestades. Num minuto o mundo pertence-te e no seguinte estás a ser esventrado. Não te deixes asfixiar mas sê grato por cada minuto em que respiras esse ar que é só teu.

Ass. Mr. Unlucky






Recado para ti:

Se tiveres o amor da tua vida como companhia, aconselho-te cuidado. O amor é mestre em camuflar as leis da natureza... Haverá dias em que chove e não te sentirás molhado, haverá dias em que nada mudou e tudo parece diferente. 
Saibam estar atentos, saibam perceber se caminham numa roda a olhar para o outro ou numa recta, a olhar na mesma direcção. 

Ass. Junior




Recado para o mundo:

Não choveu, não tenho fome, sei onde hoje vou dormir e estou grato... 
Não vejo quem caminha ao meu lado mas sinto a sua mão. Continuo sem saber em que dia da semana estamos mas tenho a certeza que o de amanhã será melhor...Porque será diferente.

Ass. Eu,


Filipe Lascasas



Para ouvir com:

Bat For Lashes – Daniel (Qual curso?) / Dan Black – Wonder (Regresso ao Porto) / Yann Tiersen – First Rendez-vous (o Junior cresceu)/ Yann Tiersen – From Prison to Hospital (O Júnior morre)/ REM- I’ve Been High (O Júnior parte e eu também) / Prodigy - Omen (Acidente na Autoestrada) / Tune-Yards – Bizness (Demissão) / Mumford and Sons – The Cave (Fora da Jaula) / The Airborne Toxic Event – All At Once (Liberdade).

12 comentários:

  1. Ri, sorri e verti uma ou outra lágrima. Quase que me doeu a mão com tanto murro. Gostei e muito. Fiquei a pensar na "roda" e o quanto tento não sucumbir ao seu chamamento *

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  2. Obrigado. Que as rodas de todos encravem depressa. :)

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  3. Fantástico! Impossível ficarmos indiferentes! Obrigado pelo fantástico momento que foi ler este pedaço de genialidade!

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  4. estás cada vez melhor!
    (a escrever... não te iludas...) :)

    abraço!

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  5. Quanta imaginação e perceptibilidade... está mesmo muito bonito. E essa roda, será também uma imagem do mundo? Viajamos, mas nunca corremos noutra roda. A nossa casa somos nós e os outros. Mas sobretudo nós.
    Beijinhos

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  6. Espectacular, Las!
    Estou arrepiada!!
    Lindo!!!

    Bjs
    Fi

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  7. Fiquei de ra(s)tos com a história do Mr. Unlucky :(
    Celina

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  8. Fantástico! Que misto de sentimentos este teu texto me fez sentir... Obrigada por teres partilhado, espero que sirva de lição a muitos «ratos» como nós. Beijinhos!

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  9. miudo parece que sabes o que dizes.
    agradeço mais uma liçao. afinal a minha roda pode alargar-se e talvez consiga meter o mundo la dentro. ate o mr unlucky faria parte da tua vida novamente (so para te compensar de qualquer coisa...).
    grande abraço
    GB

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  10. Quando nos encontramos, os dias nascem - convicção nessa assinatura.

    Regresso não agendado.
    Até lá! :)

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