terça-feira, 27 de abril de 2010

Relatório de uma patologia




Entrei no quarto de um edificio que me era familiar. Ela dormia.
Por entre postais e ramos de flores, pousei a carta - que lhe escrevi muito longe daquele lugar. No envelope, com letra séria, imprimi apenas:

“Relatório clínico da tua patologia”


Sintomatologia

Por muito que fujas, por muito que te escondas, por mais cosmética que uses nas palavras que expeles, por mais convicção ou autoridade com que fales aos outros de ti, por mais caro que tenha sido o espelho onde contemplas o teu ego, por mais conselhos que tenhas ouvido, por mais livros que tenhas lido e acrescenta o que quiseres a esta lista, jamais conseguirás fugir à tua natureza, nunca te esconderás das atrocidades de que és capaz, nunca conseguirás maquilhar as nódoas negras da tua consciência, nunca terás convicção nem autoridade para descobrir o que os outros realmente pensam de ti, nunca o espelho te dirá aquilo que esperas, nunca seguirás os melhores conselhos, nunca terás lido livros suficientes e acrescenta o que quiseres a esta lista.

Diagnóstico

Sofres de Vida – "uma doença sexualmente transmissível que mais tarde ou mais cedo se torna fatal". (Algo que alguém esclarecido sobre si, já  escreveu um dia).
 É incurável. Nos casos de maior sofrimento o indivíduo morre sentindo a  dor de nunca ter vivido.

Tratamento

Para evitar o sofrimento aceita aquilo que és. Escuta; mantêm-te no silêncio e na sombra o tempo que for preciso até ouvires o que pede a tua alma. Depois, parte todos os espelhos. Reduz os amigos para um número passível de ser contado com os dedos de uma só mão e inclui, logo à partida, os teus pais e o cão, se tiveres. Viaja, mas não fujas. Ri-te, mas sem escarnecer. Abdica da carreira promissora para a qual nunca
tiveste vocação. Sê cordial. Mantêm-te calmo, em todas as situações. Percorre muitos caminhos, mas contempla todas as paisagens. Escreve mentalmente o teu livro e deixa-te conquistar por cada personagem, cada romance, cada drama, cada fim, cada início...

...se no fim de tudo isto, estiveres sozinho, perdido numa praia deserta, quase sem dinheiro, as solas dos sapatos lisas, um enorme sorriso nos lábios e o Sol a pôr-se à tua frente, saberás que o tratamento está a resultar.


Numa manhã de primavera, ela tocou-me no ombro e sentou-se ao meu lado. Olhei para ela e sorri. Depois, enquanto olhávamos as nuvens, dei-lhe a mão e disse:

- Um dia, se quiseres, visitamos aqueles que lá ficaram, mesmo depois de tratados.


Filipe Lascasas







Moby - Everloving

domingo, 18 de abril de 2010

Memória fotográfica



Os seus ombros tocaram-se quando contemplavam um quadro de Giuseppe Archimboldo. O tempo parou à medida que desviaram o olhar um para o outro. Passados uns segundos, era o quadro que contemplava duas figuras humanas, perdidas no infinito fotográfico que todas as retinas deslumbradas registam mas a memória não arquiva. Tivesse algum génio artístico a vontade de despejar sobre eles litros de aguarelas ou queimar uma película fotográfica e o momento teria durado para sempre,  na parede de um qualquer museu.

Era uma vez um homem que cortou a sua memória com uma faca de cozinha e alguns utensílios de jardinagem. Uns dizem que fora uma tentativa de suicídio, outros afirmam ter sido uma intervenção cirúrgica brilhante. Era fotógrafo. Recebeu a sua primeira máquina fotográfica aos seis anos e desde então, fotografava tudo o que podia. Nunca soube explicar porquê, mas sentia haver uma razão para o fazer...
Demorou umas semanas a preparar a operação. Juntou os milhares de fotografias que possuía, escolheu as mais importantes e mandou-as ampliar ao tamanho das paredes de sua casa.
Após retirar a sua própria memória, caiu num sono profundo. Quando acordou, olhou à sua volta e viu muita luz; depois, viu a fotografia de um homem a segurar um bebé.
Tinha nascido.
Levantou-se e caminhou até à imagem de uma senhora com ar familiar que lhe dava a mão, numa rua de granito.
Era o seu primeiro dia de escola.
Uma fotografia que tirou aos 12 anos dos seus pais a darem um beijo ternurento, mantinha-os casados e apaixonados para a eternidade. O seu avô sobrevivia aos anos, no papel que forrava a despensa, debruçado num tractor.
Nunca perdera um amigo. Na sua parede virada a Este, brincavam aos “cowboys” e uns centímetros depois, lanchavam pão com marmelada e doce de chila feitos pelas mães, numa altura em que as fotografias eram a preto e branco.
Na parede a Oeste apaixonava-se pela primeira vez, na bilheteira pouco iluminada de uma exposição de Archimboldo. Avançava uns metros até ao primeiro beijo e seguia até à cozinha, por um areal branco banhado por águas límpidas, de mãos dadas com a sua amada. Ela nunca havia partido, esperava-o sempre numa parede à saída do quarto, com o pequeno-almoço numa bandeja e uma tulipa vermelha na orelha.
Na sala, junto à lareira, cumpria sonhos de uma vida... Em milhares de fotos recortadas e sobrepostas, assinava o contrato do seu emprego de sonho, comprava uma casa de paredes enormes, publicava as suas primeiras fotografias num jornal, recebia o seu primeiro prémio, exibia os seus trabalhos por todo o mundo...
Os pássaros não dormiam à noite. O verão não acabava. O sol permanecia eternamente posto, num oceano de águas calmas.
No tecto do seu quarto, uma fotografia gigante de um céu coberto de estrelas, lembrava-o que talvez não estivesse só. Olhava uma estrela cadente cuja queda havia sido eternamente amparada pela película fotográfica e fazia desejos até adormecer...
A sua casa era a sua vida. Todos os dias acordava, nascia, crescia, vivia e adormecia, feliz. Viveu mil trezentas e doze vidas.
No dia em que acordava para viver a mil trezentos e treze, bateram-lhe à porta uns senhores vestidos com batas. Acordou numa cama de hospital, olhou à volta e só viu paredes brancas. Numa das paredes, uma televisão aspirou-lhe o olhar... Em minutos mergulhou num mundo onde aconteciam milhares de coisas diferentes, imediatamente esquecidas.
Passados uns minutos, morreu.
Alguém anunciou a sua morte, mas foi imediatamente esquecida.

Filipe Lascasas

(Aos fotógrafos, aos poetas e aos pintores... Por nos lembrarem.)



Sol Seppy - Enter One

sábado, 10 de abril de 2010

Despejo.


Depois de o estabilizar ele levantou a cabeça e murmurou:

“Chamaram-no e ele veio. Tinha um olhar de gelo quase a derreter. Não existem muitos olhares assim... Parecem perdidos no infinito, indiferentes a tudo, até ao momento em que se fixam em ti. Depois, atravessam-te lentamente, lendo tudo o que em ti está escrito .
Chamaram-no e disseram que pagaríamos o que ele quisesse. Ele respondeu que bastaria estarmos dispostos a pagar o preço necessário...
Ao fim da primeira semana não notámos grandes diferenças, o lugar continuava imundo. Porém, passados treze dias, constatei que a sujidade não mais havia aumentado...
Pediram-me  um” debriefing”, pediram que o procurasse....
“Queremos saber como corre a limpeza”.
Quando entrava na última sala, uma mão penetrou a luz e atirou-me para a escuridão de um canto escondido da sala...
- Como está a correr a limpeza? O lugar continua sujo.
Ele leu-me com o olhar e disse que não faria desaparecer a sujidade. “Depois de a sujidade ser criada, ninguém a faz desaparecer. Aquilo que apenas se pode fazer é camuflá-la ou mudá-la de lugar. Não é para isso que aqui estou... Vim garantir que a sujidade deixará de ser criada”.
Permanecemos em silêncio. Ao vê-lo imóvel, com o olhar perdido no infinito, temi que desviasse o olhar na minha direcção e tornei-me imóvel, tentando diluir-me na escuridão do lugar. De repente, dois grandes pássaros levantaram voo. Um deles deixou cair uma pena e ele sorriu, mas o outro sujou o lugar. Nesse instante, levantou uma arma. Ouvi um “click” metálico e vi o pássaro cair no chão.
Segui-o como se estivesse preso com correntes à sua cintura. O pássaro olhava-o, ainda vivo, com um olhar de gelo derretido... “Que as lágrimas te purifiquem” (Segundo “click”).
- São eles os culpados por tanta sujidade? – Perguntei. Ele olhou-me. “Apenas culpados da sujidade que produzem não ser igual à vossa”.
O segundo grande pássaro voava assustado de um lado para o outro, parando em lugares onde encontrava luz.
“Para sermos iluminados não precisamos procurar  luz mas sim afastarmo-nos da escuridão”.
O pássaro rendeu-se ao argumento e pousou. Ele levantou-se, caminhou em direcção ao pássaro e sentou-se à sua frente. Os pássaros choram. Todos os seres choram.
“Se te lavares em lágrimas perdoar-te-ei”.
Aquele pássaro não chorou. Abriu a asas com magestosidade, mostrou as suas nódoas e morreu ao primeiro “click”.
Saí a seu lado para fora do lugar. A noite havia caído e apesar da escuridão ocultar a sujidade, ela continuava presente...
“Amanhã é o dia em que deverão pagar-me”.  
Disse-lhe que trataria de lhes comunicar. Procurei usar um tom convincente e desviei o olhar para que não pudesse ser lido...
No dia seguinte, quando voltei, o lugar estava limpo. A sujidade havia desaparecido. Mal entrei, encharquei os sapatos num rio de lágrimas e vi-os a todos caídos. Nenhum estava vivo. Presumo que recusaram pagar-lhe o “preço necessário”.
Em cima do balcão, um pedaço de papel... Um recibo.
Nele apenas uma assinatura e duas palavras: “Dívida Paga”.
- Olhei para trás e vi um espelho...

“Click”.

A ambulâcia e a polícia chegaram e eu reportei a tentativa de suicídio. Só então consegui desprender a arma da sua mão, cheia de penas e sangue.
Nas costas de um recibo estava  escrito:
“Não o chamem mais, passei 27 anos a tentar aprisioná-lo dentro de mim”.

Filipe Lascasas

P.S. No dia 20 de Maio de 2004, matei sete pombos com uma arma de pressão, para conservar o meu emprego...
Era 1 de 3 coordenadores num centro de ciência e exigiram-me uma sala « isenta de problemas técnicos, parasitas voadores e sujidade », num edifício abandonado, com uma exposição ironicamente intitulada: « Genética – o segredo da vida »

As janelas ficaram abertas duas semanas mas  o Homem é o único animal a quem podes (entre outras coisas) comunicar um despejo com a certeza de ele se retirar voluntariamente.

Tinha uma equipa de sete, mas o homicídio não se delega. Nem se perdoa.








Reckoner - Radiohead

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cinco Cigarros




Quando uma história é bonita de mais chamam-lhe conto de fadas, quando é demasiado triste chamam-lhe drama ou tragédia. Em ambos os casos, é-lhes retirado o direito à veracidade. Ninguém acredita que alguém tão feliz ou tão miserável possa ser real.                                                                                                          

Cinco cigarros

Perdeu o emprego que tinha e a esperança de arranjar outro qualquer. Os seus amigos partiram para lugares longínquos – aqueles – onde  a fronteira entre a mera ausência e o abandono completo é uma linha ténue, quase invisível.
A mulher que ele elegera amar até ao fim dos seus dias, desligou o telefone há dois cigarros atrás... Revelou, simplesmente, que ele não era o homem que ela amaria até ao fim dos seus dias, nem tão pouco aquele que ela mais amou em todos os outros.
Sem dinheiro, com apenas cinco cigarros num maço amachucado e a poucos dias de ser despejado, sentou-se às escuras na cozinha e brindou a si próprio, com uma garrafa reservada para um momento de glória.

Quatro cigarros

No meio do fumo viu o garoto que já foi... Corria por entre campos de trigo há muito substituídos por betão. Por entre cada passa, recordou o garoto levado nos braços do vento e abençoado pelo sol. Apenas chovia enquanto ele dormia.
Lembrou-se dos pais, dos amigos de infância, do primeiro beijo, da liberdade, da inconsequência juvenil e todas as outras coisas que ao terminarem, levam a felicidade consigo.
“A vida adulta é o princípio da morte.” – Pensou ele bem alto, ao segundo copo da garrafa da glória. “Os pais morrem, os amigos nunca mais são iguais, os beijos passam a ser todos iguais e perdemos toda a liberdade para um tirano qualquer com o poder de fazer cortes salariais e hipotecas... A partir do momento em que deixamos de ser inconsequentes, ironicamente, passamos a ser vítimas de todo o tipo de consequências.”
A solidão foi abruptamente interrompida pelo barulho do telefone e pelos gritos da esposa de um dos seus amigos distantes:
- (...) estou a falar a sério! Ele deixou uma carta de despedida! Ninguém faz ideia onde ele possa estar!
Desceu o elevador com a garrafa numa mão e as chaves do carro na outra, acendeu mais um cigarro e rezou para que a pouca gasolina que tinha, desse para percorrer os
70 km do seu palpite...

Três cigarros

Chegou à ponte e olhou lá para cima. Tentou lembrar-se do caminho secreto e ventoso que o levava ao cimo do arco que a sustentava. Depois, concentrado e esperançoso que o equilíbrio (entregue ao álcool) e o vento se anulassem de forma a ele não cair, iniciou a subida...

- Não podias ter escolhido uma noite menos fria para vir para aqui?
- Tu?! O que é que estás aqui a fazer?
- Sempre gostei deste sítio... O mundo aqui anda mais devagar.
- Sim, é verdade. Ainda te lembras da primeira vez que subimos até aqui?
- Acho que sim, foi uma aposta qualquer com uns miúdos mais ricos do que inteligentes... Apostaram que se subíssemos até aqui morríamos, certo?
- Pois... Não sei se  hoje ganhávamos a aposta...
- Será que com este vento consigo acender um cigarro?
- Não devias fumar... Isso faz mal à saúde!
- Desculpa se me recuso a aceitar essa tua advertência neste momento... Quantos maços sem consequências poderei fumar no tempo em que cais até lá baixo?
- Tens razão, dá-me um cigarro!
Ficaram ali os dois, durante horas, com o vento a tentar levá-los uma vez mais nos seus braços, mesmo sem a benção do sol. Beberam um vinho nascido no mesmo ano que eles, pelo gargalo da tal garrafa especial e recordaram os pais, os amigos que partiram, o primeiro beijo, a liberdade e a inconsequência que os tinha levado a subir pela primeira vez, o arco daquela ponte.
Quando as luzes da cidade do Porto começaram a apagar-se, desceram a ponte juntos, com falsas promessas de voltarem a encontrar-se e não desistirem da busca pela felicidade.
Despediu-se do amigo ainda com algum vinho na garrafa que abrira em casa. Ligou o carro e acelerou até à última gota de vinho e gasolina - quinhentos metros suficientes para o amigo o perder de vista no horizonte. Depois, deixou as portas abertas e caminhou durante meia hora até um penhasco junto ao mar. Queria ver o Sol cometer a ousadia de nascer e brilhar à sua frente.
O astro ousou nascer de facto, para todos - como se diz. Mas apenas para iluminar alguns -  como se omite...

Último cigarro

Olhou o mar e recordou o amigo prestes a saltar para um rio de mágoas e frustrações umas horas antes. Tranquilo por saber que ele caminhava para casa, iluminado por um sol que o escolhia, sentou-se numa rocha, acendeu o seu último cigarro e escreveu nas costas da mão:
“Eu sabia que hoje era o dia certo para abrir esta garrafa!”


Filipe Lascasas

Para o R.C. que foi sempre o preferido do sol e ainda bem, porque só há 5 anos atrás, barraram definitivamente o acesso ao arco da Ponte da Arrábida)
















Stina Nordenstam - Little Star