quinta-feira, 30 de setembro de 2010

À procura de um toque


Neste mundo existem coisas muito raras ou difíceis de explicar. Mas existem. Vivemos sob um guarda-chuva existencial feito de leis da física, factos científicos e senso comum que nos protege de uma doença não letal mas incapacitante: a dúvida.

(...) Após três dias, na viagem de resposta à suas dúvidas, teve a sorte de viajar numa das já raras e românticas, carruagens com camarote. Quando entrou no único que lhe pareceu vazio, deparou-se com uma rapariga, encostada à janela, mas era já tarde para recuar. Não a olhou nos olhos – já há muito que o seu ego não o permitia. Ainda assim, reparou pelo reflexo da janela, que ela era bonita. Cabelos lisos, pelo ombro, pele de porcelana e uns olhos enormes, verdes; tão grandes, que quase faziam acreditar que Deus comete os mesmos exageros de um pintor amador quando - orgulhoso de uma obra - não pára de a retocar.
Por difícil que tenha sido, conseguiu durante a viagem não olhar para ela. No entanto, esse receio que ela mostrasse o habitual desprezo por um rosto e uma alma esteticamente desagradáveis, rapidamente se desvaneceu. Ela parecia não se mexer. Começou a questionar se ela respirava. Parecia mergulhada no mais fundo dos oceanos.
Mais tarde, e graças a um momentâneo jogo de sombras e raios luminosos que bombardearam a janela, pareceu-lhe ver os seus olhos banhados em lágrimas. Pareceu-lhe, por momentos, que ela vivia o mais horrível dos choros: o contido – aquele em que o coração, os olhos e a alma, cooperam no limite, para que se fechem as portas a um motim de lágrimas. Conseguiram, nem uma se soltou.
Depois veio um túnel, e ele deixou de ver o seu reflexo.

- Deve ser desgosto amoroso. Uma “boneca” destas deve ter a sua vida preenchida com casos sucessivos de aparentes paixões. Provavelmente rejeitaram-na e não estava habituada. Bem feita!

(A melhor cura para algo que não se quer querer ou não nos é permitido tocar, reside no ódio.)

Ao fim de uma hora de viagem conseguiu pensar noutra coisa.
Estação de Esmoriz – o comboio arrancou de novo. Ainda iniciava a aceleração quando travou de repente, provocando  um solavanco suficientemente forte para causar embaraço a quem estivesse na casa-de-banho. Foi também suficiente para que um livro pousado numa pequena prateleira, junto do assento onde ela viajava, se projectasse para o chão. Ele, por instinto, rapidamente baixou-se e pegou no livro. Mas não foi cuidadoso... Ao entregar-lhe o livro ela tocou de raspão com a mão no seu polegar.
As pupilas dele dilataram, o coração quase parou e a visão foi imediata: um miúdo numa cama de hospital, ligado por tubos a uma máquina. Viu um acidente de carro. Os olhos encheram-se de lágrimas, e o seu coração, olhos e alma, cooperaram no limite. Havia motim mas só uma se soltou.
Ele ficou assustado com a visão e aterrorizado com a sua natureza. Pela primeira vez, não visionava a felicidade, mas sim a amargura de alguém. Foi a primeira vez que o seu dom lhe transmitiu negrura.
De repente, as suas mãos começaram a tremer, o seu estômago apertou-se; agarrou com força um dos joelhos – para conter a tremura e a dor. 
- Obrigado. – Disse ela.
Ele baixou a cabeça e nada respondeu mas mesmo assim ela notou que ele estava perturbado. Levantou-se e foi à casa-de-banho; sentia as pernas desfalecerem, agarrou-se a tudo o que podia para não cair. Já na casa-de-banho, lavou a cara, olhou para o espelho e viu de novo o irmão da rapariga. Caiu no chão em convulsões, abriu a boca, sentiu um tubo de plástico entrar-lhe nas goelas e viu o irmão dela abrir os olhos. Respirava agora de uma forma ofegante. Sentia as mucosas do nariz e da boca cheias de um líquido estranho. Sentia um estranho sabor na boca e não demorou a vomitar soro fisiológico e várias anestesias...
Só dez minutos mais tarde é que teve uma primeira visão de felicidade. A princípio nem conseguiu distinguir a imagem com que se deparou – o alívio de estar de novo recomposto era tal, que limitou-se a ficar quieto e a recuperar a respiração. Já não sentia o tubo no esófago, apenas o tal sabor...
Momentos depois, com calma, inspirou fundo, fechou os olhos e sentiu um aroma campestre. Levantou a cabeça e viu a rapariga passear de mãos dadas com o irmão. Era incrivelmente linda. Tinha uma papoila na mão – que não iria mais murchar depois de ela lhe ter tocado. O irmão já estava bem.
Ali ficou, sentado numa retrete, envolvido na melodia ensurdecedora dos carris, com uma papoila na mão. Levantou-se, limpou a casa-de-banho e entrou de novo no camarote. Mas não foi cuidadoso... Abriu a porta depressa de mais e a dona da papoila não teve tempo de disfarçar que tinha estado a chorar. Mal se sentou, ela levantou-se embaraçada e foi ao mesmo local onde ele esteve aparentemente hospitalizado.
Ele não desperdiçou o momento de solidão nem conteve o impulso de colocar a papoila no meio do seu livro (que afinal era um diário). Cometeu ainda a indiscrição grosseira, de pegar numa caneta e escrever no diário da moça, por baixo da papoila:

O teu irmão vai ficar bem, prometo.

Depois abandonou a carruagem, antes de ela chegar. Gostou do aspecto da estação e estava na altura de sair.
Ao mesmo tempo, centenas de outros como ele rumavam para a India, evitando tocar em quem quer fosse, à procura das mesmas respostas.
Para esses, um toque é suficiente para absorver toda a tristeza, medo e desespero que outros carregam. Para os outros, um toque deles seria tudo o que é preciso mas dificilmente os encontrarão, no seu mundo de empurrões.


Filipe Lascasas



DeVotchKa – How It Ends


segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A tua Alma é uma obra de arte... Porque não a pintas?



Não percebia nada de arte e continuo a não perceber. Olho para um quadro ou uma escultura e ainda não sei dizer qual a técnica utilizada na concepção ou o valor de mercado antes e depois do artista morrer. Raramente sei como se chama o artista e, quando sei, é porque a assinatura é legível. Não sei distinguir quando pago uma exorbitância ou uma bagatela pelo preço do bilhete de uma exposição de pintura. Comprava quadros porque tinha dinheiro, porque os meus amigos diziam que era um bom investimento, um item obrigatório para uma casa e uma pessoa como eu (seja lá o que isso quer dizer...)
Acordava de manhã e nas muitas divisões da minha casa, era perseguido por olhares de pessoas que não conheci, paisagens que nunca vi, formas, cores e pinceladas que (por muito que me esforçasse) apenas me davam a sensação que tinha comprado os quadros antes de eles serem acabados. Depois da minha higiene pessoal e da escolha do fato e da gravata mais adequada, metia-me no carro com mais cilindrada e luxo no mercado, aconselhado pelos mesmos amigos  – por ser o veículo que melhor definia a minha personalidade. (Seja lá o que isso quer dizer, garanto-vos que a minha personalidade sai bem cara.)
Quando chegava à minha empresa e subia ao escritório, era perseguido por mais caras, mais paisagens, mais formas...
Um dia fui interpelado por um sujeito que havia bloqueado a entrada que dava acesso à  minha empresa. Tinha espalhadas no passeio montes de telas pintadas com aguarelas.

- Não quer comprar um dos meus quadros?
- Não obrigado!
- Mas porquê? Não vê nenhum que lhe diga alguma coisa?
- Isso não se pode considerar arte!
- E se fosse você o autor dos quadros, comprava?

Com essa introdução o estranho iniciou o meu primeiro negócio dessa manhã... Propôs que passasse por lá todos os dias e desse uma só pincelada, com a cor e a forma que melhor definissem o meu estado de espírito nesse dia ou no anterior.

- Quando a tela ficar completa, se gostar do seu quadro, compra-o juntamente com mais dez meus. Caso contrário, passo a vender quadros noutro passeio.

Achei um bom negócio – o mais económico dos que celebraria nesse dia – e aceitei.
Durante duas semanas, a espiral azul significou a minha infância, a recta cinzenta a discussão com a minha mãe, o rectângulo amarelo os três dias de férias na praia, o circulo vermelho interrompido o meu namoro, a mancha preta – destoada no centro com duas gotas salgadas – a morte do meu tio.
Nenhuma técnica, nenhum estilo. Apenas eu e um  pincel que mergulhava na minha alma e escorria a cor em que ela estava vestida nesse dia. Depois aterrava levemente na tela, pegava a alma pela mão e dançava com ela... Uma vezes valsa outras vezes tango.
Passadas três semanas, com o pincel mergulhado em verde-esperança, pousei-o numa ponta da tela e acabei na outra. Mas a tela era curta demais para uma diagonal pintada nesse verde... Uma diagonal com essa cor só é grande o suficiente quando não parece um ponto. Por isso, peguei num balde cheio de verde e continuei a recta, pelas paredes do sitio onde trabalhava, pelas caras dos que se pintavam orgulhosamente de cinzento e corações daqueles a quem tinha sido roubada essa cor.
Pelo caminho, sujei um Monet e disso arrependo-me. Não me arrependo porém, de ter despejado o resto do balde no dono da empresa, ensopando-o o suficiente para que todos pudessem mergulhar nele os seus pincéis e pintarem pequenas estrelas da cor que ele mais ofuscava.
Arrumei as minhas coisas enquanto troquei (pela primeira vez em cinco anos) algumas palavras com o segurança da empresa – que descobri ser admirador e um bom conhecedor de arte. Ofereci-lhe um caixote cheio de quadros do meu escritório e em troca, recebi um sorriso – pintado com muitas cores.
Quando cheguei cá em baixo, comprei o meu quadro e mais dez, com medo que alguém passasse naquele passeio e descobrisse tudo sobre a minha vida. Depois sentei-me no passeio e perguntei ao pintor se ele não receava expor-se. Riu-se e confessou que não vendia as telas onde se pintava.
Vendi o meu carro pois a cor não definia qualquer estado de espírito que eu pudesse ter. Ofereci, criteriosamente, os quadros antigos que possuía a alguns amigos que os mereciam e, por fim, mudei de amigos – na   forma e nas cores... Afinal, são poucas as que não destoam com tempo e são precisas apenas algumas para originar todas as outras.

Continuo a pintar...

Mas os meus quadros não estão à venda.


Filipe Lascasas
                                  

Ao Arnaud  (túnel de metro de Montmartre - Paris)


The Irrepressibles - In This Shirt     

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Corre!


Era uma vez uma floresta encantada. Nela viviam todos os seres do mundo, ocupados nas suas vidas, a rir, a chorar, a fugir, a viver, a morrer…
Sim, a morte estava presente. O sofrimento também. Era uma floresta encantada não por tudo ser perfeito mas por ser real, por ser uma floresta da vida, onde a harmonia habita a uns metros do caos, a tristeza coabita com a alegria e por tudo de bom e de mau acontecer em função de um equilíbrio maior, superior a qualquer vontade…
Uma leoa caça uma mãe veado e alimenta os seus filhotes leões, um bebé veado chora a perda da sua mãe, uma flor nasce, uma flor morre, um filhote de coruja cai do ninho e morre na queda, um golfinho dá à luz, uma estrela nasce, outra cai e enquanto tudo isto acontece, os pássaros cantam, as hienas riem, os lobos uivam, uma árvore chora e a floresta vive… Plena de encanto.
Era uma vez um menino e uma menina que percorriam essa floresta. Carregavam enorme sacos às costas, cheios de sonhos enterrados, mágoas mal arrumadas, lágrimas a baloiçar e sorrisos que flutuavam à tona. Mas o que realmente enchia os seus sacos era o Passado. O peso do “Pretérito Perfeito” havia curvado as suas costas, obrigando-os a caminhar lentamente, com olhos postos no chão, fora do ritmo dos sonhos que jaziam no fundo dos sacos. De vez em quando revoltavam-se. Pousavam os sacos a rir e a chorar ao mesmo tempo, despejavam com fúria os verbos que mais lhes pesavam… “Chorei”, “Sofri”, “Perdi”, “Lamentei”, “Traí”,“Arrependi-me”, Menti, “Falhei”, “Desisti”. Esvaziavam o saco, enterravam os verbos, levantavam as costas e caminhavam, mas os verbos desenterravam-se por ordem cronológica e corriam atrás deles, como predadores de uma vítima que olha o horizonte e não encontra razões para fugir. Ao fim de uns minutos já estavam curvados de novo, a chorar e a rir ao mesmo tempo, com o peso de todos os anos que haviam vivido.
Num dia em que os pássaros cantavam, as hienas riam, os lobos uivavam e uma árvore chorava, chocaram um contra o outro e caíram, largando os sacos. De olhos postos um no noutro tentaram apanhar tudo do chão. Molharam-se nas lágrimas um do outro, devolveram sonhos que não lhes pertenciam, trocaram risos e soletraram os verbos que, um a um, voltavam sozinhos para os sacos.

- Deixa-me ajudar a carregar o teu saco! – Disse ele.
- És muito frágil, não conseguirás carregar o peso dos meus verbos!

Um filhote de coruja caiu do ninho e ele desviou-lhe a atenção. Um golfinho deu à luz e ela explicou-lhe porquê. Uma flor nasceu e ele ofereceu-lha. Uma estrela caiu e ambos fizeram desejos.
Encurvados e de olhos postos no chão caminharam, de mãos dadas, para não se perderem.

- Estamos numa floresta encantada, não achas que algo está para acontecer? – Perguntou ela.
 - Sim, definitivamente, algo está para acontecer… Estamos a chegar a uma ponte, um novo ano espera-nos na outra margem.
- Mais verbos? Verbos no Futuro?
- Sim. – Respondeu ele num suspiro.

O som da sua resposta atravessou a floresta e foi-lhe devolvido. Parou de caminhar, olhou para ela e disse baixinho:

- Vamos pousar os sacos e deixá-los nesta margem. Traz só os sonhos, para termos alguma coisa para comer.

Ela disse-lhe que sim com o olhar e ambos pousaram os sacos, muito devagar. Caminharam alguns metros e ela olhou para trás…

- O Passado soltou-se. Vai apanhar-nos!

Ele virou-se ,olhou o Pretérito Perfeito (ironicamente cheio de imperfeições) e disse-lhe:

- Já percebi que não adianta fugir... Vais sempre apanhar-nos. No entanto, não mais aceito carregar-te. Proíbo-te de nos barrares o caminho.

O Passado rugiu e atacou-os. Ele deu-lhe a mão e gritou:

- Corre!

Um veado que fugia parou e a leoa também. Os pássaros sustiveram os seus cantos, as hienas choraram, os lobos ganiram e uma árvore sorriu. Todos ficaram inertes a assistir à fuga dos dois. Eles correram pelas suas vidas, com os olhos fixos no horizonte, a rir e a chorar ao mesmo tempo. Por entre tropeções, quedas, carinhos e incentivos mútuos, lá atravessaram a ponte. Quando chegaram à outra margem ela deu-lhe um beijo na face e disse:

- Feliz Ano Novo!

Ele preparava-se para brindar a verbos no Futuro quando um som arrepiante o fez perceber que o Passado tentava atravessar a ponte…

- Os outros verbos vêm aí!
- Então corre... Corre!

Filipe Lascasas

À inventora (e pronunciadoras) do verbo  "Pedaçar" -  acto de juntar por meio de cola humana, partículas de corações e almas. (Um verbo ainda mais bonito quando pronunciado no Futuro)




Leonard Cohen - Waiting_For_the_Miracle

sábado, 4 de setembro de 2010

Silêncio



Uns anos mais tarde, a verdade quebrou o silêncio.

Alguns dizem que era um super-herói e que os heróis são verdadeiros… O seu super-poder era ouvir. Não ouvia mais do que um humano dito normal, mas conseguia prestar atenção a todos os sons. Todos.

Aquilo que identificamos como “silêncio” é um conceito falso, denunciador da incapacidade generalizada de um humano prestar atenção aos barulhos que não percebe. A própria vida é uma coisa barulhenta; começamos a fazer barulho mal nascemos, num planeta ensurdecedor... Rapidamente deixámos de ouvir.

O primeiro passo lunar gerou um pequeno caos sonoro na galáxia e apenas ele o ouviu… Era um super-herói.
Uns anos depois, quando tentava aproveitar um minuto de menos barulho para tentar adormecer, ouviu um pequeno coração gritar a milhas de distância.

Os corações falam baixinho, mas gritam quando sentem a mão fria da morte amordaçá-los.

Levantou-se da cama de cartão que a humanidade lhe entregara (por ouvir demais) e correu para um contentor do lixo. Encontrou o bebé quase a desistir de fazer barulho. Tomou-o nos braços e correu para uma pequena fogueira na viela, alimentada por uma cama de cartão já sem dono. Enrolou o seu corpo no do menino e aguardou que o seu coração voltasse a falar baixinho.
O sol nasceu quando o bebé acordou. Caminharam pelas ruas durante horas, pedindo esmola e comida a quem passava, mas ninguém os ouviu – concentrados que estavam nos pequenos barulhos que percebiam. Apenas dois ou três, mais distraídos, lhe tocaram no ombro, para perguntar com um tom acusador:

- O que fazes com um bebé, vagabundo?

Fugiu da multidão e levou o bebé a passear pelos subúrbios menos barulhentos da cidade. Roubou a tigela de leite de um gato persa, pousada numa varanda de mármore e,  mais à frente, apoderou-se da ração de carne de um cão com mais vacinas do que ele… O bebé sorriu por fim, saciado, com gotas de leite a escorrerem-lhe do queixo. Ele também.
Quando a noite caiu, elevou o bebé nos braços e disse-lhe:

-Vês aquela bola brilhante no céu? Já lá fizeram barulho!

No dia seguinte choveu e ninguém cometeu a desumanidade de alimentar um animal cá fora. Consciente do caminho a percorrer para encontrar comida quando não há sol, embrulhou o bebé numa manta e pousou-o debaixo de uma escada.

- Espera por mim aqui bebé, não te destapes… Vou procurar comida!

Disputava com um cão sem vacinas, um pedaço de carne enlameada, quando ouviu novamente os gritos do coração do bebé, do outro lado da cidade. Correu para ele à velocidade de um super-herói, mas chegou tarde. O coração deixara de fazer barulho.   
Prostrou-se no meio de uma avenida com o bebé nos braços, a suplicar por ajuda, mas ninguém o ouviu… Havia demasiado barulho.
A viela estava quase a adormecer quando as sirenes de um carro a fizeram acordar.
O herói - já rouco - ainda gritava por ajuda, mas nem nessa altura o ouviram…

- Encontrámos a criança e o suspeito.

Aquilo que identificamos como “justiça” é um conceito falso, denunciador da incapacidade generalizada de prestar atenção à verdade que não percebemos. Ignora os “justos” e define-se na procura de “culpados”- para que ninguém assuma que o conceito é tão falso e vago como o silêncio…

- Confessa que matou o bebé?
- Confesso que não consegui mantê-lo vivo.

O júri não sabia ouvir e declarou-o culpado. Fizeram justiça.
À saída do tribunal, alguém muito barulhento rompeu um cordão policial e cravou-lhe uma faca no coração…

-Morre assassino!

Prostrado e com o olhar fixo na primeira pegada lunar, ouviu o seu coração gritar sete vezes.
Depois...

Veio o silêncio.

Uns anos mais tarde, a verdade quebrou o silêncio.



Filipe Lascasas



Paul Simon & Garfunkel – The Sound of Silence