sábado, 4 de setembro de 2010

Silêncio



Uns anos mais tarde, a verdade quebrou o silêncio.

Alguns dizem que era um super-herói e que os heróis são verdadeiros… O seu super-poder era ouvir. Não ouvia mais do que um humano dito normal, mas conseguia prestar atenção a todos os sons. Todos.

Aquilo que identificamos como “silêncio” é um conceito falso, denunciador da incapacidade generalizada de um humano prestar atenção aos barulhos que não percebe. A própria vida é uma coisa barulhenta; começamos a fazer barulho mal nascemos, num planeta ensurdecedor... Rapidamente deixámos de ouvir.

O primeiro passo lunar gerou um pequeno caos sonoro na galáxia e apenas ele o ouviu… Era um super-herói.
Uns anos depois, quando tentava aproveitar um minuto de menos barulho para tentar adormecer, ouviu um pequeno coração gritar a milhas de distância.

Os corações falam baixinho, mas gritam quando sentem a mão fria da morte amordaçá-los.

Levantou-se da cama de cartão que a humanidade lhe entregara (por ouvir demais) e correu para um contentor do lixo. Encontrou o bebé quase a desistir de fazer barulho. Tomou-o nos braços e correu para uma pequena fogueira na viela, alimentada por uma cama de cartão já sem dono. Enrolou o seu corpo no do menino e aguardou que o seu coração voltasse a falar baixinho.
O sol nasceu quando o bebé acordou. Caminharam pelas ruas durante horas, pedindo esmola e comida a quem passava, mas ninguém os ouviu – concentrados que estavam nos pequenos barulhos que percebiam. Apenas dois ou três, mais distraídos, lhe tocaram no ombro, para perguntar com um tom acusador:

- O que fazes com um bebé, vagabundo?

Fugiu da multidão e levou o bebé a passear pelos subúrbios menos barulhentos da cidade. Roubou a tigela de leite de um gato persa, pousada numa varanda de mármore e,  mais à frente, apoderou-se da ração de carne de um cão com mais vacinas do que ele… O bebé sorriu por fim, saciado, com gotas de leite a escorrerem-lhe do queixo. Ele também.
Quando a noite caiu, elevou o bebé nos braços e disse-lhe:

-Vês aquela bola brilhante no céu? Já lá fizeram barulho!

No dia seguinte choveu e ninguém cometeu a desumanidade de alimentar um animal cá fora. Consciente do caminho a percorrer para encontrar comida quando não há sol, embrulhou o bebé numa manta e pousou-o debaixo de uma escada.

- Espera por mim aqui bebé, não te destapes… Vou procurar comida!

Disputava com um cão sem vacinas, um pedaço de carne enlameada, quando ouviu novamente os gritos do coração do bebé, do outro lado da cidade. Correu para ele à velocidade de um super-herói, mas chegou tarde. O coração deixara de fazer barulho.   
Prostrou-se no meio de uma avenida com o bebé nos braços, a suplicar por ajuda, mas ninguém o ouviu… Havia demasiado barulho.
A viela estava quase a adormecer quando as sirenes de um carro a fizeram acordar.
O herói - já rouco - ainda gritava por ajuda, mas nem nessa altura o ouviram…

- Encontrámos a criança e o suspeito.

Aquilo que identificamos como “justiça” é um conceito falso, denunciador da incapacidade generalizada de prestar atenção à verdade que não percebemos. Ignora os “justos” e define-se na procura de “culpados”- para que ninguém assuma que o conceito é tão falso e vago como o silêncio…

- Confessa que matou o bebé?
- Confesso que não consegui mantê-lo vivo.

O júri não sabia ouvir e declarou-o culpado. Fizeram justiça.
À saída do tribunal, alguém muito barulhento rompeu um cordão policial e cravou-lhe uma faca no coração…

-Morre assassino!

Prostrado e com o olhar fixo na primeira pegada lunar, ouviu o seu coração gritar sete vezes.
Depois...

Veio o silêncio.

Uns anos mais tarde, a verdade quebrou o silêncio.



Filipe Lascasas



Paul Simon & Garfunkel – The Sound of Silence

7 comentários:

  1. "O silêncio é uma espécie de fala."

    PS

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  2. Pergunto-me quantas vezes o que parecia ser não o era, e o quanto isso mudou a vida de uma data de pessoas...tudo porque não conseguiram ouvir e sentir...

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  3. Não conseguiram ou dava demasiado trabalho! Fantástico

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  4. Daqui

    ttp://espacosdotempo.blogspot.com/2010/08/la-montagne-et-locean.html

    Para aqui

    http://estreladamarisa.blogspot.com/2010/09/casa-te-com-memoria.html

    :-)

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  5. Parabéns Lascasas, está fabuloso!

    Rui

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  6. I + Lina: Obrigado.

    Existe uma carta de resposta de um leitor do jornal a essa Errata sobre "amar". Um dia volto a publicar (aqui).
    De vez em quando é bom acreditar que há erratas para as nossas...

    Filipe Lascasas

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