sábado, 23 de outubro de 2010

Razões para viver



Não interessam as razões... Há muito que queria morrer.
A vida é uma espiral descendente, onde a cada volta desaparecem a alegria, a novidade, a emoção, a aventura. A rotina é o ponto onde a espiral acaba.
O oncologista escandalizou-se com o sorriso que esbocei quando me disse que tinha um tumor alojado no cérebro... Consegui atraiçoar a espiral.
De repente, a sociedade tornava-se condescendente e simpática para comigo. Levantava-se para me dar lugar, sorria-me, oferecia-me tudo aquilo que me havia privado: dinheiro, tolerância, tempo.
Tentei reunir-me com todos os que me eram próximos mas estavam todos perdidos nas suas espirais. Depois, iniciei uma viagem sem regresso pelo mundo. Senti-me privilegiado, era alguém a quem tinha sido dada a oportunidade de procurar algo para o qual normalmente não se tem tempo: razões para viver. Iniciei, no entanto, a viagem com cinismo, concentrado em desfrutar em pleno da ausência de ansiedade que é fazer a mais tranquila das procuras – aquela em que se sabe, à partida, nada haver para encontrar.

Estava no meio do mar Adriático quando um marinheiro entrou pelo meu camarote a gritar:

- Venha ver isto!!

No início pensei estar a assistir a uma catástrofe natural. As imagens à minha frente fugiam a tudo o que a vida me habituara a tomar como realidade. Então, o capitão com a sua voz serena e bem real puxou-me e disse:

- Incrível como há quem consiga matar estas criaturas…

Eram baleias. Dançavam à tona da água. Não é metáfora, dançavam mesmo! Por momentos jurei ouvir Vivaldi, enquanto as suas barbatanas chapinhavam na água e os seus dorsos rebolavam, harmoniosamente, em sincronia. Não sei o que festejavam mas estavam felizes. Foi a coisa mais bela que assisti em toda a minha vida.
Enquanto jovem cientista utilizei muitas vezes a expressão “sinfonia do acaso” para descrever os fenómenos e as incríveis coincidências manifestadas na natureza… Naquele momento, percebi que não há coincidências. A vida é uma sinfonia, tocada baixinho. Todos participamos nela, mas só alguns a ouvem e dançam.
Um marinheiro foi buscar a flauta transversal que tinha no seu camarote e ao som de Vivaldi, baleias e humanos, todos dançámos.

À noite, na minha pequena cama, escrevi num bloco de notas:

“Razões para viver” por Filipe Lascasas:

1- Dançar como as  baleias ao som de Vivaldi.

No momento em que desembarquei, senti que a minha procura havia mudado. Não foi uma sensação boa... Não há pior momento na vida de um cientista que o testemunho de um fenómeno que contraria todas as suas teorias e convicções. Mesmo que não o digam, sentem-no como um castigo do universo pelo ofício de provar que a fé e os sonhos de muitos são falsos e infundados.
É nessa margem - onde a teoria e o facto terminam, para dar lugar à fé -  que a ciência se encolhe e molha os pés na religião.
Se além de factos e teorias, não temos também qualquer tipo de fé, somos a mais perdida das criaturas e não dançamos.

Também eu, nesse momento, senti o peso dos dias que me restavam…

Por que razão dançavam as baleias?

Por uma questão de fé continuei a viagem, acreditei que no tempo de vida que ainda tinha, encontraria uma resposta.
Quando cheguei a Paris, as dores de cabeça acentuaram-se. Passei a transportar uma prensa dentro do meu crânio. Todos os dias, com uma regularidade mecânica, apertava o meu cérebro. Estava a morrer.

Entrei na estação de metro de Champs Elisé e vi uma rapariga junto às escadas. Era linda. Cabelos lisos, pelo ombro, pele de porcelana e uns olhos enormes, verdes; tão límpidos que quase faziam acreditar que Deus comete os mesmos exageros de um pintor amador quando – orgulhoso de uma obra – não pára de a retocar. Estava com um rapaz, mas ainda assim, olhou para mim e lançou-me um sorriso.

A minha vida foi bonita. Parei de viver entre os vinte e três e os trinta e três anos mas hoje festejei a vida. Dancei com as baleias.

Por entre tubos e balões de soro e oxigénio abri um bloco de notas de escrevi:

“Razões para viver” por Filipe Lascasas:

1- Dançar como as baleias ao som de Vivaldi.
2- Apaixonarmo-nos.

Filipe Lascasas


A todos os que esperam o livro.

Au Revoir Simone – The Lucky One

sábado, 16 de outubro de 2010

O Tesouro veio à tona


Alexandre saiu da prisão com trinta e três anos e uma “missão”.
Afirmou, até ao dia da sua morte, ter tido uma revelação divina… Havia-lhe sido confiada, por “deus em pessoa”, a difícil tarefa de roubar o maior tesouro da Humanidade moderna.
Demorou dois anos a encontrar os cúmplices perfeitos e mais três a convencê-los. A vinte e dois de Agosto, havia reunido a melhor equipa de ladrões de sempre, todos filhos de deus.
Planearam com minúcia e requinte, o plano de assalto. A combinação para o cofre jazia a 665 metros de profundidade da base da Estátua da Liberdade, em Nova Iorque. O tesouro, esse, havia sido guardado na cave de uma casa cheia de histórias negras, ironicamente conhecida por “Casa Branca”.
Viajaram de barco. Viram o sol desaparecer várias vezes no mar e falaram de como a Humanidade seria, após o tesouro estar destruído.
Dormiram duas horas após a chegada e preparam-se para o assalto.

- Que deus nos ajude e a Humanidade nos abençoe.

Pedro, o especialista em informática, usou um vírus tecnológico para destruir os sistemas de alarme. Contaminou os computadores, a internet e a televisão com imagens de pessoas a passearem em jardins, amigos a jogarem às cartas e conversas à luz das velas.
Luis, especialista militar, desarmou os guardas colocando cravos vermelhos nos canos das suas armas (uma técnica antiga mas sempre muito eficaz).
A tarefa mais difícil cabia a Alexandre – a abertura do cofre. Para não correr o risco de fragilizar ainda mais os alicerces da Estátua da Liberdade, propôs-se descobrir sozinho a combinação do cofre.
Ficou sentado durante sete minutos em frente à porta. Depois levantou-se, sorriu, revelou à fechadura o que realmente pensava sobre ela e abraçou-a num gesto fraterno e sincero.
(Ninguém se lembraria de tal combinação).
O cofre, desarmado, abriu-se e despejou lágrimas encerradas durante anos em paredes de aço. O tesouro estava à vista de todos e brilhava com a intensidade de mil milhões de almas.
 
Quando o assalto se tornou público, as pessoas pararam de se empurrar e saíram à rua, abandonando os seus empregos. Já os líderes das “grandes nações” uniram-se, para perseguirem pessoalmente os assaltantes.
Alexandre, Pedro e Luis fugiam de bicicleta por milhas de alcatrão e as pessoas, sorridentes, atiravam-lhes flores e davam as mãos, dificultando a tarefa dos perseguidores. O mundo moderno parou e o alcatrão foi coberto de pétalas.
Avistavam já o oceano quando Pedro caiu. Luís cometeu o erro de olhar para trás e caiu também. Alexandre pousou o tesouro mas foi incapaz de os puxar. Os líderes destaparam canhões em ouro e lançaram sobre eles milhares de barris de petróleo.
Com os ossos praticamente esmagados, Alexandre ergueu-se e viu os seus cúmplices prostrados em pétalas tingidas de negro.

- Rende-te, devolve-nos o tesouro e serás poupado!

Ignorando os avisos, abraçou o tesouro com todas as forças e saltou para o oceano. No segundo seguinte, vinte e oito balas correram na sua direcção e apenas uma lhe fugiu do peito, perdendo-se na atmosfera.
Enquanto descia às profundezas, esvaindo-se em sangue, deixou finalmente a preciosa Ganância desprender-se dos seus braços e viu um tumulto iniciar-se no mundo subaquático… Os peixes pequenos empurravam os seus semelhantes para a boca dos peixes grandes e os peixes grandes eram comidos por peixes maiores. Passado algum tempo, a água começou a borbulhar e a Ganância veio à tona, boiando por entre espinhas, sangue e milhares de peixes que morreram por comerem demais.
Recolheram-na com uma rede e devolveram-na ao sítio certo.

As pétalas apodreceram no alcatrão e as pessoas ficaram sisudas. Regressaram aos empurrões e fizeram filas de trânsito... Tudo voltou à normalidade.

Filipe Lascasas


Dead Can Dance – The Host Of Seraphim

domingo, 10 de outubro de 2010

Invalidez



- Abre o vidro por favor, prometo que não te faço mal.

Ainda olhei para a luz do semáforo, mas o vermelho estagnado obrigava-me a encará-la…

- Tenho fome, estou com frio mas apenas preciso de dinheiro para curar a ressaca.

Abri a carteira e dei-lhe todo o dinheiro que possuía. Ela agradeceu e o verde pousou o meu pé no acelerador.
Senti-me gozado. Horas antes, num almoço de negócios, divagava com uma convicção inabalável sobre o problema da mendicidade e da pobreza no mundo. “Parasitas” – foi a palavra que mais vezes usei. “Não querem trabalhar. Dão-se ao luxo da rejeição social e parasitam confortavelmente todos os que arduamente contribuem para a sociedade.”
Senti raiva e revolta, por isso voltei para trás. Tinha de exigir o meu dinheiro de volta.
Já não a encontrei nos semáforos. Abordei o primeiro parasita análogo que encontrei naquela zona e perguntei por ela.

- Olhos verdes, cabelo negro, pele suja, casaco vermelho de malha… e não, não te dou esmola!
- Ah! A inválida... Vá em frente. Encontra-a na primeira casa abandonada ao fundo da rua.
Entrei no antro e encontrei-a sentada, com uma seringa espetada no braço.

- Bem-vindo! Sente-te em casa! - Disse-me ela com um tom que assumi provocador.
- Vim aqui apenas para exigir o meu dinheiro de volta. Não entendo muito bem o que me levou a dar-lhe o dinheiro porque condeno pessoas da sua natureza mas agora exijo que mo devolva.
- Posso partilhar uma das doses, foi nisso que converti o dinheiro. A razão de me teres oferecido o dinheiro é simples… Por incrível que possa parecer és sensível à minha invalidez.
 “Invalidez”?! Assumi a palavra como o auge de toda a provocação iniciada nos semáforos. Preparava-me para manifestar também o auge da minha raiva sobre aquela criatura deplorável quando ela se antecipou…

- Não esse tipo de invalidez mais comum… Nasci com a incapacidade de mentir. Por isso, deixei de ter amigos depois da infância. Fui boa aluna na escola mas na universidade chumbei vários anos… No dia em que recebia uma bolsa de mérito, perguntaram-me o que achava do contributo dos professores para a minha aprendizagem e, inválida como sou, disse a verdade.
Anos depois, arranjei um mau emprego numa boa empresa. Fui honesta na entrevista mas apesar de tudo, tinha qualificações para lá trabalhar. A minha vida correu razoavelmente bem como operária e uns tempos depois, fui promovida para um lugar na administração da empresa e tudo mudou. A minha invalidez impossibilitava o desempenho de qualquer função de chefia.
Também estive quase para me casar... Mas deves imaginar o que aconteceu na altura de fazer votos que me exigiam como eternos.
Desde então vivo da caridade de pessoas como tu, sensíveis à verdade, dispostas a aceitá-la e a premiá-la.
Não me lembro se a deixei a falar sozinha. Meti-me no carro e voltei ao meu emprego. Durante todo o dia senti picadas atrás da nuca sempre que eu ou alguém mentia. À noite, quase com a nuca em ferida, fui à varanda procurar a cura para a insónia. A olhar o céu percebi que a nossa maior qualificação profissional e social é a capacidade de mentir ou, simplesmente, nunca dizer toda a verdade. O mundo tornara-me válido.

Procurei-a novamente. Levei-a a um café e pedi-lhe que apenas me ouvisse. Depois, despejei compulsivamente em cima da mesa trinta e dois anos de verdades escondidas.
A mesa caiu, ela chorou e eu gritei. As paredes do café começaram a tremer e o chão a rachar. Tudo o que estava em cima das mesas explodiu. As loiças, a comida e as garrafas saíram disparadas dos armários como se projectadas por canhões.
Todos os que lá estavam fugiram, cobertos de lixo e em pânico, enquanto um buraco, do tamanho do edifício, se abria até ao centro dos pecados da humanidade.
Enquanto caíamos, arranquei com todas as forças a minha máscara e a de todos os que comigo haviam participado no baile de máscaras burlesco e de aparências a que chamamos vida. 

Procurei-a, levei-a a um café, partilhei com ela a dose do dia anterior e fiz-lhe companhia, para vos contar a verdade.


Filipe Lascasas


Esta história – como a vida – é uma obra de ficção. Não sou inválido.



The Irrepressibles - The Tide