domingo, 24 de janeiro de 2010

O inviolável e entrelaçado sentido de quem somos.






Há palavras distintas que a vida nos entrelaça como sendo uma, com um só significado.
Medo, Ansiedade, Amor e Procura. São quatro de algumas palavras que a vida me entrelaçou...

Bebia quando estava deprimido. Bebia o suficiente até achar que seria capaz de terminar com a minha vida e depois bebia o resto quando não tinha coragem para o fazer.
Numa das noites em que bebia o resto, quis aliviar a bexiga numa esquina e ouvi gritos sufocados. Cambaleei até à origem do som e de repente, um homem alto enconstava-me à parede com uma faca no pescoço. Um outro, cuja altura não sei precisar por estar de joelhos, abafava uma rapariga e rasgava-lhe o vestido, dizendo-lhe coisas horriveis sobre vingança e a culpa que carregava por ser filha de quem provavelmente não queria ser.

O álcool não é o demónio que muitos fazem crer, é sim uma das chaves que abre o portão aos demónios do choro e do riso que todos albergamos, num lexico de sentimentos que a vida entrelaça à nossa volta.

Naquela noite, o meu portão, já aberto, deixou que as lágrimas de uma desconhecida soltassem demónios de raiva e ódio numa esquina pouco iluminada de lisboa...  Com a rapidez  e força de um anjo do mal, segurei a mao do homem em pé e empurrei-lhe a faca pelo peito até ela não entrar mais. Depois, devagar, caminhei até ao homem de joelhos e fiz-lhe o mesmo. Os seus olhos olharam em minha volta, aterrorizados pela visão dos demónios mais horríveis do planeta e eu, assustado também, disse-lhe que aproveitasse estar de joelhos para pedir perdão e para nunca ter de os ver novamente.
Peguei nela e levei-a para o hotel.
Não só não entendia a sua língua como até hoje desconheço a sua nacionalidade. A verdade é que não falámos durante o caminho e ela, por alguma razão, não questionou para onde a levava. Peguei numa toalha que tencionava roubar do hotel, molhei-a em água morna e devagar limpei-lhe o sangue da cara e dos ombros. Puxei-lhe os cobertores e apaguei as luzes; ela acendeu-as e adormeceu.
Quando acordei de manhã ela estava enroscada ao meu lado na alcatifa, com um bilhete na mão onde se lia um número de telefone e uma morada. Dei-lhe o meu telemovel e ela caminhou até à casa de banho.

- My english not very good...Telephoned my parents, it was twelve minutes... I don’t know  what they’ll charge... Promise i’ll pay you.
- No charges... No charges for a daughter calling her parents.

Levei-a até à morada no papel; não tinha dinheiro para um táxi mas ela pegou no meu pulso e com um gesto delicado usou os ponteiros do meu relógio para me dizer que tinhamos tempo. Durante o caminho ela chorava e eu percebia, porque o choro fala em todos os idiomas. Eu segurava-lhe a mão e fazia truques de magia com moedas de 1 euro - perfeitas para enganar um empregado de bar, convencendo-o de que se as moedas estavam  na nossa mão para pagar e já não estão, é porque ele as deixou cair.
Quando chegamos, os ponteiros no meu relógio demorariam mais uma hora até se alinharem com as horas do seu gesto. Meti discretamente a mão ao bolso e senti o que pareciam ser quatro moedas de  1 euro... Levei-a a tomar o pequeno-almoço.
Durante um galão frio encostei a minha cabeça à parede e ela, percebendo o idioma do choro da alma deslizou um guardanapo até mim... Era um desenho de mim e ela de mãos dadas em frente ao sol. O desenho era perfeito não só porque ela desenhava melhor do que um espelho mas porque na realidade, estava a chover. Depois pegou noutro guardanapo, pôs-se de costas e disse:
- I also know magic...
Quando se virou, havia desenhado o meu retrato, sem olhar para mim uma única vez.
Gostava muito de saber falar a sua língua para não desperdiçar a piada de que ela era uma máquina fotográfica humana mas em vez disso, peguei no isqueiro e queimei o guardanapo do meu retrato. Pousei a mão direita na sua face e com o melhor inglês que sabia, disse-lhe que haverá sempre coisas que nos destroem,  roubam e violam. No entanto, o entrelaçado de experiências, recordações, sentimentos, pessoas e palavras que realmente nos define permanece intacto.

Para o bem ou para o mal, aquilo que somos é inviolável, não se encontra tapado por um vestido nem é vulnerável a uma faca;  não se define com uma carreira, dinheiro, fama ou sucesso. Desenha-se sem olhar.

Sem recurso a idiomas,  beijou-me. Só parou quando a buzina de um mercedes preto e sombrio, tocou. Ela entrou e foi-se embora.
Medo, Amor, Ansiedade, Procura. Ainda hoje vivo com o medo de me baterem à porta pedindo justificações pelos homens cujas vidas os meus demónios roubaram. A ansiedade de que a publicação desta história tenha como única recompensa a visita supervisionada do maior amor que vivi.
Nunca desisti de a procurar. Um dia, passeava num jardim em Lille e vi uma rapariga com um vestido branco, a desenhar. Toquei-lhe no ombro e disse olá...

Não era ela.

Filipe Lascasas 

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O elefante abandonado e o coelho confundido com um leão




Oceano Atlântico, 12 de Setembro de 2009

Contou-me que antes do naufrágio era alguém importante. Navegava no maior navio do mundo quando o oceano, de novo cansado com a arrogância de pequenos seres sem barbatanas, os decidiu afundar.
A minha presença era para ele um privilégio. Quando se está só, numa ilha apenas povoada por outras espécies, qualquer semelhante é bem vindo. Abalam-se preconceitos de côr, credo ou feitio. Apenas porque tudo se torna linear: a raça é a humana, o credo é o da sobrevivência e as vontades são comuns.

No Jardim Zoológico de Budapeste encontrarás um elefante acarinhado pela multidão. É o único elefante presente. Foi recolhido numa savana em Àfrica, onde após ser excluído da manada, esperava conformado, a sua morte.

Estavamos numa ilha banhada pelo atlântico que mais tarde me revelaram chamar-se Lisboa.
No meio da selva, entre presas e predadores, a camuflagem é tudo. Por isso, conservávamos imaculadamente limpos, dois casacos, duas calças, duas camisas, duas gravatas e dois pares de sapatos. Tudo recolhido nas traseiras de uma loja que vestia predadores de consumo - sem tolerância para botões ausentes, linhas soltas ou manchas em couro.
À hora de almoço íamos para a zona de restauração de um centro comercial, perfeitamente camuflados.

Quando um predador caça mais do que realmente precisa para se alimentar, é, meramente, um assassino. Um abutre, perante uma caçada de excessos, deixa de ser um necrófago e torna-se águia real.

Esperávamos que as bestas se alimentassem em frenesim e apoderávamo-nos dos seus tabuleiros abandonados - com a fartura de uma caçada tão vasta quanto desperdiçada. Eramos águias reais, por entre hamburgueres, batatas fritas e bordas de pizza deixadas de parte como ossos indigestos. Nem mesmo quando se comem os ossos se é necrófago, especialmente ossos de farinha e água  - que tantas vezes em vez de pizzas fazem pão.
Ás sete da manhã,  jantávamos – o momento favorito do meu dia. À camuflagem dos fatos, juntávamos duas malas de viagem. A ausencia de uma  roda em cada,  obrigava-nos a transportá-las à mão, mas o nó das nossas gravatas tornáva-nos (entre outras coisas) em dois senhores que preferiam o civismo de transportar o peso dos seus pertences a fazer barulho no chão. Aguardávamos um momento de distração na recepção de cada hotel e fingíamos sair do elevador. Depois seguíamos o cheiro do café, até a uma sala (para nós sempre imponente) onde nos esperava o mais luxuoso dos pequenos almoços. O nosso apetite voraz era castrado pela discrição mas ainda assim, comíamos até não poder mais. Era, porém, uma refeição com regras... Duas, três dentadas no máximo e depois, sorrateiramente, depositávamos a comida na  nossa despensa - que todos veriam como mala de viagem.  
Era o momento favorito do meu dia. Ninguém nos rosnava, os predadores deixávam-nos comer com eles e no fim, ainda nos acenavam, pedindo para voltarmos.

Como em todas as ilhas desertas, há momentos em que a comida escasseia, momentos em que faz frio e nem os predadores ousam sair à rua. Os hoteis esgotam-se, os fatos ficam sujos.


A 3 de Dezembro de 2009 fiquei doente e o meu fato irremediavelmente sujo.
Ele saiu para buscar comida, com o seu fato (ainda limpo) vestido.

Até os leões têm predadores, especialmente quando são encontrados sós.

Ao início da noite, quatro hienas acercaram-se dele e pediram-lhe o seu dinheiro, a sua mala. Encontrei-o numa viela com a sua camisa favorita – só lhe faltava um botão – tingida de sangue...
- Desculpa, acho que não vais conseguir recuperar a camisa.... Eles pensaram que eu era um leão.
Fechou os olhos e deixou cair no chão a sua mala aberta, com croissants e pães de leite sem qualquer dentada.
Dei as dentadas que consegui, vesti o seu fato e caminhei até à porta de um hospital.
Rasgaram-lhe o fato mas ele já me havia salvo a vida.
Um anjo de olhos grandes e azuis acordou-me. Aqueceu com um bafo o estetoscópio antes de mo encostar ao peito, sem perceber que o meu peito havia aquecido no momento em que a vi. Perguntou o meu nome...
- O meu nome é Filipe e naufraguei numa ilha deserta.
- O senhor está num hospital e aparenta ter sofrido um trauma grave que afectou o seu discernimento e memória.
- Talvez a memória, não o discernimento... Neste momento sei que não estou morto e no entanto, estou na presença de um anjo.
Ela corou e deu-me a mão. Não mais a largou.

Filipe Lascasas

sábado, 16 de janeiro de 2010

Génesis




Ao primeiro dia...
A Humanidade recebeu a mais horrível notícia desde a sua criação: o Sol tinha morrido.
Morto e apagado, caía agora desamparado por entre um sistema que outrora fora seu. Como se tal não bastasse, uma estranha e mórbida combinação de posições astrais determinava que o Sol se despenharia no nosso planeta, porventura o único para o qual tinha valido a pena brilhar.

Ao segundo dia...
Os cientistas evocaram a grandiosidade do Homem e calcularam as hipóteses de sobrevivência. Os religiosos evocaram a fé e rezaram pela salvação. O resto do mundo parou e aguardou instruções de ambas as partes.
Quando faltavam trinta minutos para o fim do segundo dia, os cientistas anunciaram que pelas leis da física, iríamos morrer. Os religiosos anunciaram que pelas leis de Deus, a extinção era inevitável.

Ao terceiro dia...
O mundo entrou em depressão. As ruas estavam desertas e as prateleiras de anti-depressivos e bebidas alcoólicas, completamente vazias. Esporadicamente ouvia-se um grito de desespero, uma lamentação, um choro, mas a maior parte do tempo o silêncio era total, quase aterrador. Parecia até que a própria Natureza se tinha apercebido da eminência do seu fim...  As folhas das árvores quase não se mexiam, os pássaros não cantavam e as pessoas que continuaram a trabalhar nos zoo's de todo o mundo juraram que todos os animais se recolheram nas jaulas, recusando sair cá para fora.

Ao quarto dia...
Passava apenas um minuto da meia-noite quando um casal de namorados com setenta e sete anos ousou evadir-se do lar de terceira-idade onde estava aprisionado. O velho debruçou-se sobre a janela de um carro abandonado, no meio da outrora, avenida mais movimentada do Porto. Empurrou para as entranhas do rádio uma cassete que trazia no bolso, aproximou-se da velha e perguntou:
- A menina concede-me uma última dança?
O silêncio abraçou a melodia da valsa que os velhos dançavam e deixou-a atravessar o mundo inteiro (à velocidade do som). Os deprimidos vieram à janela e sorriram. Depois, um a um, desceram às ruas do mundo e dançaram também.

Ao quinto dia...
O Planeta assistiu à maior festa alguma vez celebrada pelos seus habitantes. De todos os continentes surgiam relatos de cães a beijarem gatos, leões a abraçarem zebras. tubarões a dançarem com focas. Em Israel derrubaram o muro das lamentações e no mesmo local construíram um palco a que chamaram "muro das celebrações". Nele tocaram noite e dia, artistas Palestinianos e Israelitas, juntando num só repertório temas hebreus e árabes. Apenas os temas religiosos foram censurados...
Em Cuba dancou-se ao som de Rock n' Roll  e nos Estados Unidos fumaram-se charutos cubanos. Os Brancos honraram os Negros e os Negros perdoaram os Brancos.
Todos os seres que se conseguiam mexer, dançaram. Os restantes cantaram.

Ao sexto dia...
Não há registo de se ter visto, nas ruas e avenidas do mundo inteiro, uma só bandeira de qualquer nação. Contudo, em Amesterdão, um grupo de pintores e poetas pintou nas paredes da cidade uma bandeira com todas as cores conhecidas, a que chamaram: "Bandeira da Humanidade". Nela estava escrita uma frase:
" A nós, Humanos, foi dado um corpo. Nós criámos o Espírito e imortalizámos a Alma. É esse o nosso legado."
As companhias ferroviárias, rodoviárias e de aviação anunciaram em todos os países, viagens gratuitas para qualquer lugar. Sem nunca pararem de dançar, todos os amigos se abraçaram, todos os familiares se juntaram e todos os perdidos se (re)encontraram. Cozinharam-se as melhores iguarias, fizeram-se as melhores sobremesas e decoraram-se as mais belas árvores de Natal.
As operadoras de telecomunicações bateram os recordes de SMS's enviadas num só dia, como é óbvio. No inicio do dia, sete em cada dez mensagens continham a palavra: "desculpa". No fim do sexto dia, nove em cada dez mensagens continham a palavra: "obrigado".

Ao sétimo dia...
Deus, cansado de descansar, pensou em descer à terra para julgar os vivos e os mortos, enquanto havia vivos. No entanto não o fez...
Momentos antes do sol cair, já não havia pecadores e santos, defeitos e virtudes, ódios e amores... Apenas um mundo unido e alegre que se despedia do universo, celebrando em apoteose, a mais agridoce dádiva da Criação: a consciência de existir.

O Universou fechou os olhos e ouviu-se um "Big Bang".

Filipe Lascasas

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Possível





Fizemos o que muitos proclamavam...

Impossível.

Precisava atravessar a sala de lasers uma vez mais, para ser bem sucedido. No entanto, como a vida é feita de surpresas, o alarme tocou. Apertei as alianças com força e atirei-me pela porta antes da grade fechar.
Já se ouviam sirenes quando vi a luz da alvorada. Entreguei as joias ao Pratas e disse-lhe:
- Corre!
- Não te preocupes... Vai vestir-te que estás atrasado. 
O Pratas não correu; como um bom engenheiro, escolheu as rotas mais curtas para o destino. A Sandra, a Raquel, a Jessy e a Gabi arrancaram mal ele chegou mas ainda tiveram tempo para dar beijinhos e dizer “olá”. Na auto-estrada, puseram-se lado a lado com a ambulância e atiraram as joias pela janela.
A ambulância parou numa fila interminável. Ligou as sirenes, avançou pela berma e parou junto à policia...
- Não temos nenhum paciente connosco mas esperam-nos com urgência no hospital –disseram em uníssono, a Claudia e o Félix. 
- Encerrámos todas as vias, roubaram as alianças do museu – aquelas, sabem... Com que se casaram os princípes de Inglaterra!
Levantaram a barreira e eles arrancaram.
Um quilómetro antes de chegarem ao hospital, o André abriu as portas, saltou em andamento de bicicleta e desceu pelos montes, até à marginal. Curosamente, ninguém comentou o facto de um estranho pedalar numa corrida com algumas lendas do cilismo. Pelo menos até ao ponto em que chegou à frente do pelotão e ultrapassou o Lance Armstrong... (Ainda pensou em parar para lhe pedir um autógrafo mas estava muito atrasado.) Ao quilómetro 32 entregou as alianças  ao Bruno e ao João e eles, por sua vez, apanharam aleatóriamente 3 boleias de estranhos que afinal, eram amigos do Nelinho. A Paula escondeu as alianças no fato de banho e lançou-se ao mar, 13 segundos depois da prova ter começado. O mar encrespou-se inesperadamente e entre braçadas, ela viu o Michael Phelps atrapalhar-se. Habituada que está, a nadar em águas tumultuosas, nadou até ele e levantou-lhe o queixo...
A Mafalda fez-me o nó da gravata e a Belinha  fez o resto, enquanto o BT me forçava a beber “à golada” uma mini – para me acalmar... A cerímónia já tinha começado e eu não estava lá.

Um silêncio terrível invadiu a igreja quando a ausência das alianças se juntou à do padrinho.
O silêncio não durou muito tempo, apenas o suficiente para vos dizer isto:

Há um Limite para todas as coisas que podes fazer por um amigo. É possível desafiar o Limite, vencendo todos os dias coisas que apenas “custam muito” ou são só “muito difíceis”; no entanto, infelizmente, nunca te será permitido ultrapassá-lo... Simplesmente porque a palavra “impossível” mora em casa de um optimista. É ela que o acorda quando ele voa em sonhos e o detém, quando acordado, sonha em voar. 

A porta da igreja abriu-se e o padrinho, ofegante, entregou as alianças a um principe e a uma princesa.

Na realidade, acabamos por lhes oferecer apenas uma máquina de café e dinheiro num envelope. Nunca tive ou terei dinheiro para oferecer alianças de noivado feitas para principes, a Paula nunca irá salvar o Michael Phelps na água, o André nunca será capaz de deixar para trás o Lance Armstrong (pelo menos sem lhe pedir um autógrafo)...

Nos anos que se seguiram, montámos juntos o berço do herdeiro (comprado no Ikea), após um jantar muito semelhante àquele em que a noite acabou a levarmos a princesa ao hospital para dar à luz (um parto que ainda hoje juro ter sido induzido por gargalhadas). Um jantar semelhante àquele que teriámos feito, não tivesse o forno gelado e um abraço colectivo tentado abafar (sem sucesso) a notícia da morte do pai de um de nós.
Vencemos quilómetros, agendas, empregos, cansaços, preguiças e esquecimentos para estar juntos.
Fizemos (na realidade) o que muitos proclamam...

Impossível.


Filipe Lascasas

(É óbvio a quem dedico esta história) 

sábado, 9 de janeiro de 2010

A boleia




Não foi fácil entrar no berçário mas teve a ajuda de um toxicodependente que conhecera na noite anterior... Já por cinco vezes havia conseguido entrar no hospital para roubar metadona. Entrava e saía sem que ninguém desse conta.
- É como roubar um rebuçado a uma criança! – Disse o ressacado, sem perceber a ironia da metáfora que as suas informações iriam originar. 
Reconheceu o berço mal entrou. Pegou no bebé e colocou-o debaixo do sobretudo.
Minutos antes, havia aberto por três vezes, a mesma porta de emergência, sem que fosse visto. Quando finalmente os seguranças desactivaram o alarme, presumindo “mau contacto”, seguiu sem problemas pela mesma porta, desta vez sem a fechar.
Meteu o bébé no carro e destapou-o. O bébé estava calmo e bem disposto – o conceito de “passeio” assimila-se em qualquer idade, já o de “rapto”, aprende-se...Depois de muitos outros.
O carro comia alcatrão a uma velocidade estonteante. Depois da segunda paragem mudou uma lâmpada e uma vela ao carro mas durante todo o tempo esteve apenas concentrado na colossal operação que o esperava a seguir... Sem qualquer diagrama ou manual técnico, encheu o biberão com o leite comprado na farmácia e pegou no bébé.
O carro arrancou; desta vez e sem explicação aparente, muito devagar.
Os biberões acumularam-se no banco de trás ao mesmo ritmo que um estranho cheiro impregnou o interior do carro.  A dado quilómetro riu-se, com a ironia de conduzir um carro onde pela primeira vez não tinha fumado e que ainda assim, cheirava pior. O bébé, aliviado, riu-se também.
Comprou fraldas para uma idade desadequada, saiu do supermercado e viu  uma televisão numa montra mostrar a sua cara, em formato “preto e branco”, saindo do hospital – havia sido visto.
Faltavam 32 quilómetros quando uma mota da patrulha de trânsito se colocou à sua frente e o mandou encostar. O polícia pediu os seus documentos e perante a visão de biberões vazios e fraldas espalhadas no banco de trás, sacou a sua arma.
De mãos levantadas, colocou-se em frente ao polícia e, sem falhas técnicas, desarmou-o, com uma sequência fluida de Krav Maga. A sequência, à semelhança de uma muda de fraldas, pode ser esquematizada em 4 fases:

1ª - O corpo roda para uma posição fora da trajectória da bala e simultâneamente, a mão esquerda agarra firmemente o pulso da mão que segura a arma.
2ª - A mão direita  agarra o cano da arma e roda-a para dentro, em direcção ao corpo do agressor.
3ª -  A arma solta-se perante a impossibilidade física de a manter agarrada, ficando na posse de quem a segura pelo cano.
4ª - A coronha livre da arma é lançada violentamente na traqueia do agressor..

O polícia, lutando para respirar, foi amarrado e metido dentro da mala. Não foi a primeira vez que agrediu um agente da lei... Já em Praga havia sido preso por fazer o mesmo.
Meteu-se no carro e seguiu viagem. Acelerou, olhou para o bébe, depois acelerou de novo.
Só parou o carro quando chegou às traseiras da penitenciária. Pegou no bébé ao colo e caminhou em direcção ao pátio... Rui, de uniforme azul, esperava-o por trás da rede, sozinho. (O suborno aos guardas prisionais havia resultado).
Levantou o bébé e encostou-o à rede. Rui esticou os dedos por entre o ferro entrelaçado e tocou na face de Diogo que curiosamente, estava calmo e bem disposto – o conceito de “pai” assimila-se em qualquer idade, já o de “liberdade”, aprende-se... Depois de muitos outros.

Muitos pais cometem crimes graves, mas nenhum castigo ou sentença pode alguma vez impedir um pai de querer beijar o seu filho.

Filipe Lascasas

Ao Rui e ao Diogo Almeida (o trabalho também é uma prisão).

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A sereia (com toque repetitivo)





De repente estava no oceano dos seus sonhos. A água era transparente e de um azul profundo. Não precisava de mergulhar para ver os corais e os peixes de múltiplas cores, que haviam construído o seu mundo a bastantes metros de profundidade. Nadava sem estilo próprio – não fosse aliás o oceano estar à sua volta e mais pareceria que estava a voar!... Lá muito no fundo, o horizonte, o mesmo de sempre. Não sabia se aquela linha de terra escondia uma ilha paradisíaca, mas tinha essa esperança. Comia doses individuais de esperança todos os dias e os seus braços não conheciam melhor fonte de energia. Arrastava por isso, um saco cheio de pequenas embalagens de esperança que flutuavam pacientemente, na ondulação das águas formada pelos seus braços.
Sempre que se cansava de invadir a privacidade dos peixes ou quando os seus braços fraquejavam, levantava a cabeça. Mantinha os olhos bem abertos, para confirmar que a ilha ainda ali estava, para confirmar a sua rota, confirmar que ainda tinha uma.
Um problema porém: não viajava em linha recta. Era um viajante, por isso deixava-se fascinar mais pelo percurso do que pelo destino. Isso custava-lhe tempo e obviamente, embalagens de esperança. Parava vezes de mais, fazia muitos desvios. Mergulhava para falar com os peixes, mantinha-se à deriva para sentir o vento na cara e assistir ao pôr-do-sol... Tinha consciência disso, mas nunca nadou de forma diferente.
Conseguiu um dia chegar à areia branca da ilha e ali ficou, deitado, a recuperar o fôlego e a usar-se disso para não vencer o medo de contemplar o destino...
Passaram-se alguns anos, o convívio com os seus semelhantes e os frutos colhidos nas várias árvores da ilha, tratavam de lhe lembrar todos os dias, que a rota escolhida tinha valido a pena. Lembravam-lhe, persistentemente, que já não estava só.
Passados alguns anos, saiu de uma festa feita na ilha e caminhou até à praia onde tinha chegado pela primeira vez. Tencionava contemplar a imensidão do oceano que ele atravessara e regozijar-se com a proeza.
Porém, quando lá chegou, percebeu que tal caminhada não tinha a haver com vaidade, mas com frustração. Afinal o que realmente precisava era que o oceano lhe falasse de sucesso, elogiasse a escolha de cada braçada naquela direcção. Esperou que o cheiro a maresia recordasse ao seu olfacto e ao seu paladar o sabor delicioso dos frutos da ilha... Esperou em vão. Ao fim de algumas horas de silêncio decidiu abrir as portas do espírito que encerravam muitos dos seus sentimentos; deixou-os tomar conta do seu corpo. Deixou cair um dos frutos que tinha na mão. Uma vez liberto, o seu paladar tratou de esclarecer, sem censuras, que os frutos já o enjoavam. Fizeram-no salivar por pequenos pacotes de esperança, há muito passados da validade.
A memória corria desesperada pelos corredores da alma, à espera que cortassem as suas correntes – foi a última a ser atendida –, mas mal conheceu a liberdade, saiu cá fora, de lágrimas nos olhos, pelo braço da saudade. A viagem tornou-se num erro mal terminou. A sua estadia ali não tinha sido mais do que um conjunto de ilusões, manipuladas e conservadas pelo orgulho, pelo amor-próprio, pela vaidade, pelo medo.
Não foi preciso muito mais para começar a pensar na solidão, o grande tabu daquela ilha. A ilógica de não se sentir só enquanto viajante, desfez-se com o paradoxo de estar no meio de tantos semelhantes e mergulhado em solidão. Chorou lágrimas há muito encarceradas. Gritou.
Ninguém o ouviu como é óbvio... Estava só. Como não percebera isso antes? Estavam numa ilha; estavam todos sós.

Dou-vos a minha palavra que o sol mais lindo do universo apenas pode ser contemplado no meio do oceano, com um saco de pacotes de esperança preso nas nossas costas. Alexandre, de novo em viagem, confirmaria isso mesmo.
Nadava agora com outra força, com uma nova linha no horizonte (porque infelizmente é sempre preciso haver uma em cada viagem). Quando deixou de olhar para os peixes, reparou que a umas milhas dali estava um sereia a acenar-lhe – uma óptima oportunidade para descobrir novas rotas. Mal chegou, perguntou-lhe se estaria a ter um sonho ou um pesadelo. Ela preparava-se para responder quando o despertador tocou, com um som que não precisa de descrição para ser idealizado.
Acordou no meio do oceano da realidade, não tão transparente e azul como o outro. A ilha no horizonte estava lá e também era real, mas ele nunca lá tinha chegado. Ao terceiro murro no despertador levantou-se e começou a nadar.   

(Os verdadeiros pesadelos são os sonhos que não cumprimos ou aqueles em que somos acordados pelo frenético som da realidade – teria respondido a sereia.)

Filipe Lascasas