quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

A sereia (com toque repetitivo)





De repente estava no oceano dos seus sonhos. A água era transparente e de um azul profundo. Não precisava de mergulhar para ver os corais e os peixes de múltiplas cores, que haviam construído o seu mundo a bastantes metros de profundidade. Nadava sem estilo próprio – não fosse aliás o oceano estar à sua volta e mais pareceria que estava a voar!... Lá muito no fundo, o horizonte, o mesmo de sempre. Não sabia se aquela linha de terra escondia uma ilha paradisíaca, mas tinha essa esperança. Comia doses individuais de esperança todos os dias e os seus braços não conheciam melhor fonte de energia. Arrastava por isso, um saco cheio de pequenas embalagens de esperança que flutuavam pacientemente, na ondulação das águas formada pelos seus braços.
Sempre que se cansava de invadir a privacidade dos peixes ou quando os seus braços fraquejavam, levantava a cabeça. Mantinha os olhos bem abertos, para confirmar que a ilha ainda ali estava, para confirmar a sua rota, confirmar que ainda tinha uma.
Um problema porém: não viajava em linha recta. Era um viajante, por isso deixava-se fascinar mais pelo percurso do que pelo destino. Isso custava-lhe tempo e obviamente, embalagens de esperança. Parava vezes de mais, fazia muitos desvios. Mergulhava para falar com os peixes, mantinha-se à deriva para sentir o vento na cara e assistir ao pôr-do-sol... Tinha consciência disso, mas nunca nadou de forma diferente.
Conseguiu um dia chegar à areia branca da ilha e ali ficou, deitado, a recuperar o fôlego e a usar-se disso para não vencer o medo de contemplar o destino...
Passaram-se alguns anos, o convívio com os seus semelhantes e os frutos colhidos nas várias árvores da ilha, tratavam de lhe lembrar todos os dias, que a rota escolhida tinha valido a pena. Lembravam-lhe, persistentemente, que já não estava só.
Passados alguns anos, saiu de uma festa feita na ilha e caminhou até à praia onde tinha chegado pela primeira vez. Tencionava contemplar a imensidão do oceano que ele atravessara e regozijar-se com a proeza.
Porém, quando lá chegou, percebeu que tal caminhada não tinha a haver com vaidade, mas com frustração. Afinal o que realmente precisava era que o oceano lhe falasse de sucesso, elogiasse a escolha de cada braçada naquela direcção. Esperou que o cheiro a maresia recordasse ao seu olfacto e ao seu paladar o sabor delicioso dos frutos da ilha... Esperou em vão. Ao fim de algumas horas de silêncio decidiu abrir as portas do espírito que encerravam muitos dos seus sentimentos; deixou-os tomar conta do seu corpo. Deixou cair um dos frutos que tinha na mão. Uma vez liberto, o seu paladar tratou de esclarecer, sem censuras, que os frutos já o enjoavam. Fizeram-no salivar por pequenos pacotes de esperança, há muito passados da validade.
A memória corria desesperada pelos corredores da alma, à espera que cortassem as suas correntes – foi a última a ser atendida –, mas mal conheceu a liberdade, saiu cá fora, de lágrimas nos olhos, pelo braço da saudade. A viagem tornou-se num erro mal terminou. A sua estadia ali não tinha sido mais do que um conjunto de ilusões, manipuladas e conservadas pelo orgulho, pelo amor-próprio, pela vaidade, pelo medo.
Não foi preciso muito mais para começar a pensar na solidão, o grande tabu daquela ilha. A ilógica de não se sentir só enquanto viajante, desfez-se com o paradoxo de estar no meio de tantos semelhantes e mergulhado em solidão. Chorou lágrimas há muito encarceradas. Gritou.
Ninguém o ouviu como é óbvio... Estava só. Como não percebera isso antes? Estavam numa ilha; estavam todos sós.

Dou-vos a minha palavra que o sol mais lindo do universo apenas pode ser contemplado no meio do oceano, com um saco de pacotes de esperança preso nas nossas costas. Alexandre, de novo em viagem, confirmaria isso mesmo.
Nadava agora com outra força, com uma nova linha no horizonte (porque infelizmente é sempre preciso haver uma em cada viagem). Quando deixou de olhar para os peixes, reparou que a umas milhas dali estava um sereia a acenar-lhe – uma óptima oportunidade para descobrir novas rotas. Mal chegou, perguntou-lhe se estaria a ter um sonho ou um pesadelo. Ela preparava-se para responder quando o despertador tocou, com um som que não precisa de descrição para ser idealizado.
Acordou no meio do oceano da realidade, não tão transparente e azul como o outro. A ilha no horizonte estava lá e também era real, mas ele nunca lá tinha chegado. Ao terceiro murro no despertador levantou-se e começou a nadar.   

(Os verdadeiros pesadelos são os sonhos que não cumprimos ou aqueles em que somos acordados pelo frenético som da realidade – teria respondido a sereia.)

Filipe Lascasas

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