domingo, 24 de janeiro de 2010

O inviolável e entrelaçado sentido de quem somos.






Há palavras distintas que a vida nos entrelaça como sendo uma, com um só significado.
Medo, Ansiedade, Amor e Procura. São quatro de algumas palavras que a vida me entrelaçou...

Bebia quando estava deprimido. Bebia o suficiente até achar que seria capaz de terminar com a minha vida e depois bebia o resto quando não tinha coragem para o fazer.
Numa das noites em que bebia o resto, quis aliviar a bexiga numa esquina e ouvi gritos sufocados. Cambaleei até à origem do som e de repente, um homem alto enconstava-me à parede com uma faca no pescoço. Um outro, cuja altura não sei precisar por estar de joelhos, abafava uma rapariga e rasgava-lhe o vestido, dizendo-lhe coisas horriveis sobre vingança e a culpa que carregava por ser filha de quem provavelmente não queria ser.

O álcool não é o demónio que muitos fazem crer, é sim uma das chaves que abre o portão aos demónios do choro e do riso que todos albergamos, num lexico de sentimentos que a vida entrelaça à nossa volta.

Naquela noite, o meu portão, já aberto, deixou que as lágrimas de uma desconhecida soltassem demónios de raiva e ódio numa esquina pouco iluminada de lisboa...  Com a rapidez  e força de um anjo do mal, segurei a mao do homem em pé e empurrei-lhe a faca pelo peito até ela não entrar mais. Depois, devagar, caminhei até ao homem de joelhos e fiz-lhe o mesmo. Os seus olhos olharam em minha volta, aterrorizados pela visão dos demónios mais horríveis do planeta e eu, assustado também, disse-lhe que aproveitasse estar de joelhos para pedir perdão e para nunca ter de os ver novamente.
Peguei nela e levei-a para o hotel.
Não só não entendia a sua língua como até hoje desconheço a sua nacionalidade. A verdade é que não falámos durante o caminho e ela, por alguma razão, não questionou para onde a levava. Peguei numa toalha que tencionava roubar do hotel, molhei-a em água morna e devagar limpei-lhe o sangue da cara e dos ombros. Puxei-lhe os cobertores e apaguei as luzes; ela acendeu-as e adormeceu.
Quando acordei de manhã ela estava enroscada ao meu lado na alcatifa, com um bilhete na mão onde se lia um número de telefone e uma morada. Dei-lhe o meu telemovel e ela caminhou até à casa de banho.

- My english not very good...Telephoned my parents, it was twelve minutes... I don’t know  what they’ll charge... Promise i’ll pay you.
- No charges... No charges for a daughter calling her parents.

Levei-a até à morada no papel; não tinha dinheiro para um táxi mas ela pegou no meu pulso e com um gesto delicado usou os ponteiros do meu relógio para me dizer que tinhamos tempo. Durante o caminho ela chorava e eu percebia, porque o choro fala em todos os idiomas. Eu segurava-lhe a mão e fazia truques de magia com moedas de 1 euro - perfeitas para enganar um empregado de bar, convencendo-o de que se as moedas estavam  na nossa mão para pagar e já não estão, é porque ele as deixou cair.
Quando chegamos, os ponteiros no meu relógio demorariam mais uma hora até se alinharem com as horas do seu gesto. Meti discretamente a mão ao bolso e senti o que pareciam ser quatro moedas de  1 euro... Levei-a a tomar o pequeno-almoço.
Durante um galão frio encostei a minha cabeça à parede e ela, percebendo o idioma do choro da alma deslizou um guardanapo até mim... Era um desenho de mim e ela de mãos dadas em frente ao sol. O desenho era perfeito não só porque ela desenhava melhor do que um espelho mas porque na realidade, estava a chover. Depois pegou noutro guardanapo, pôs-se de costas e disse:
- I also know magic...
Quando se virou, havia desenhado o meu retrato, sem olhar para mim uma única vez.
Gostava muito de saber falar a sua língua para não desperdiçar a piada de que ela era uma máquina fotográfica humana mas em vez disso, peguei no isqueiro e queimei o guardanapo do meu retrato. Pousei a mão direita na sua face e com o melhor inglês que sabia, disse-lhe que haverá sempre coisas que nos destroem,  roubam e violam. No entanto, o entrelaçado de experiências, recordações, sentimentos, pessoas e palavras que realmente nos define permanece intacto.

Para o bem ou para o mal, aquilo que somos é inviolável, não se encontra tapado por um vestido nem é vulnerável a uma faca;  não se define com uma carreira, dinheiro, fama ou sucesso. Desenha-se sem olhar.

Sem recurso a idiomas,  beijou-me. Só parou quando a buzina de um mercedes preto e sombrio, tocou. Ela entrou e foi-se embora.
Medo, Amor, Ansiedade, Procura. Ainda hoje vivo com o medo de me baterem à porta pedindo justificações pelos homens cujas vidas os meus demónios roubaram. A ansiedade de que a publicação desta história tenha como única recompensa a visita supervisionada do maior amor que vivi.
Nunca desisti de a procurar. Um dia, passeava num jardim em Lille e vi uma rapariga com um vestido branco, a desenhar. Toquei-lhe no ombro e disse olá...

Não era ela.

Filipe Lascasas 

3 comentários:

  1. Gostei muito desta. :)
    Adorei especialmente esta parte: "Para o bem ou para o mal, aquilo que somos é inviolável, não se encontra tapado por um vestido nem é vulnerável a uma faca; não se define com uma carreira, dinheiro, fama ou sucesso. Desenha-se sem olhar."
    A propósito, mataste mesmo aqueles dois senhores?

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  2. Medo,ansiedade,Amor e procura, são eternos em tudo o q nos acompanha na vida,sinto tudo isto todos os dias....é preciso é não desistir d prosseguir!

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