segunda-feira, 15 de março de 2010

O Homem do Lixo


Acordava enquanto todos dormiam. Calçava as suas luvas e saía para as ruas do mundo.
Até o Sol nascer, levava o lixo que as pessoas deixavam nas suas portas.
Um dia, cansado e irremediavelmente sujo, entrou no oceano para se lavar e desapareceu.
A dúvida levantou-se.
Ninguém quis saber o que lhe aconteceu mas sim a razão pela qual o Lixo permanecia, dia após dia, em frente às suas portas. Alguns, mais envergonhados, ou simplesmente zelosos, começaram a enterrar o Lixo nos seus quintais e jardins. Mas quando a relva desapareceu e todas as flores morreram, o cheiro a podridão tornou-se insuportável e inevitavelmente visível.
As Ratazanas e todas as criaturas das trevas deixaram então de temer o Sol e vieram para as ruas desfilar, vaidosas e temerárias.
Já a percentagem de suicídios e mortes por afogamento quadruplicou. Uns, sucumbiam à podridão do seu Lixo, outros, inconformados, entravam incessantemente no oceano para se lavarem. O Lixo boiava enquanto nadavam, fazendo-os sentirem-se mais puros, mas depois prendia-se aos corpos e arrastava-se pela areia quando regressavam a Terra.
Quando todas as crianças que entravam na puberdade, morreram, os governos de todo o mundo proibiram a prática de banhos, a fim de a raça humana adquirir imunidade ao seu Lixo. No entanto, alguns países, em nome da liberdade, decretaram que o acto de tomar banho, apesar de “desaconselhado”, era “tolerado”. (Numa clara pretensão de aumentarem as suas receitas turísticas, com a procura desesperada de uma pureza temporária ou ilusória tornada “fruto proibido”.)
Os pais encorajaram os seus filhos mais novos a produzirem o próprio Lixo e a comê-lo, para se tornarem imunes, enquanto os cientistas proclamavam todos os dias, avanços na obtenção de um antídoto extraído de golfinhos, deficientes profundos e recém-nascidos.
Nunca se encontrou uma cura.
Os raríssimos puros que saíam à rua para comer, eram facilmente detectados, graças às Ratazanas e outras criaturas que fugiam deles como de um incêndio. Depois, eram perseguidos e comidos vivos. Apesar de nenhum canibal ter ficado curado, a “caça ao puro” tornou-se obsessiva devido ao sono profundo que a carne das vítimas gerava... Após a digerirem, não conseguiam ver, tocar, ouvir, cheirar ou provar a podridão que transportavam, mas uns dias mais tarde, acabavam por acordar.
Nasceu o rumor de que alguns puros conseguiram fugir, abrigando-se numa ilha idílica algures no oceano Índico, mas a existência de tal lugar nunca foi provada. O que se tornou facto, foi que sete anos mais tarde, quando os últimos velhos porcos morreram, o planeta voltou a ser azul...

Nunca se soube o que aconteceu ao Homem do Lixo. Na verdade, ninguém o queria encontrar.


Filipe Lascasas

Para mim e  para os Homens que fazem a recolha do Lixo.


E is for Estranged - Owen Pallet

3 comentários:

  1. O lixo é de facto um obstáculo...neste momento encontro-me a limpar um "lixão", mas é, neste momento, um trabalho demasiado pesado. Como tudo é uma questão de percepção da realidade e dos processos que construímos, o lixo de amanhã será bem menor do que o de hoje.

    Beijinhos

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  2. Terrivelmente escuro. A imagem (do texto) faz literalmente mal. Bem conseguido.

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  3. Os "Homens do lixo" são aqueles q têm a profissão mais nobre e digna d ser respeitada...e eu diria q infelizmente diáriamente ainda tropeço em montes d lixo q me aparece á frt! Pq não há nobreza nem respeito,pq os humanos são egocêntricos...

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