segunda-feira, 8 de março de 2010

Uma porta vermelha, uma porta branca, uma porta verde



Nasci sem irmãos e muito tarde. Pelo menos para conseguir que o meu pai jogasse “à bola” comigo.
Ele foi compensando a nossa gigantesca diferença de idades da melhor forma que sabia... Em vez da história do “Gato das botas” ou da “Branca de neve”, lia-me à noite poemas de António Aleixo e relatos do programa espacial Soviético e Americano.
Aos seis anos, eu não fazia ideia quem eram os sete anões, mas sabia que o “nosso” primeiro satélite se chamava Sputnik e que o primeiro ser vivo no espaço se chamava Laika - uma cadela de rua que durante uns anos foi tratada como uma raínha mas depois morreu da pior forma: na solidão.
O meu pai não jogava à bola comigo mas levava-me a passear no pinhal, ensinava-me a reconhecer o canto dos pássaros, o nome das árvores, as pegadas dos animais.
Um dia deu-me uma prenda – uma fisga. Fez também uma para ele, para atirarmos às pêras e maçãs de propriedades alheias, para podermos gritar qualquer coisa que não “golo”, quando acertávamos em qualquer coisa.
Numa tarde de Agosto, após muitos “golos”, perguntei-lhe:
- O teu pai também te deu uma fisga?
Ele apertou-me a mão como se eu tivesse dezoito anos e contou-me uma história que ainda hoje assombra a minha vida...
- Era uma vez uma menina chamada Rolinda que foi abandonada no altar. Regressou a casa e cuidou da sua filha bébé – a tua tia. Uns anos mais tarde, a tua avó voltou a apaixonar-se mas o meu tio, que sustentava a família, descobriu e garantiu que a irmã não seria mais abandonada (pelo menos num altar)... Expulsou o meu pai com paus, pedras e tudo o que lhe veio a mão. O meu pai partiu e não voltou. Nunca me revelaram se ele sabia que também estava a abandonar a mim. Por isso, não, o meu pai nunca me deu uma fisga.
Cresci com a convicção  que o amor é uma história com muitas versões mas sempre com as mesmas personagens:

O vilão – o tio do meu pai que assustou o meu avô ao ponto de ele nunca ter voltado ou, pelo menos, enviado uma fisga ao meu pai por correio.
O cobarde – o meu avô que não quis ser herói e procurar a sua amada.
A vítima – a Laika ou o meu pai, projectados para o universo em solidão irreversível.

Na altura, fiquei triste e chorei pela Rolinda, quase tanto como pela Laika.
O meu pai olhou para mim em arrependimento e desejou que eu fosse mais velho ou ele mais novo - para ter um amigo forte com quem desabafar ou então, simplesmente limpar a alma jogando “à bola”...  
Bateu-me nas costas, levantou a fisga e acertou com mestria num galho de uvas. Limpou-as com a camisola e deu-mas a provar.

Porta Branca

Doze anos mais tarde vi a Marta, no casamento de um primo. Já tinha ouvido falar dela,  ganhara o titulo de “Miss Concelho da Maia”.
Fiel às minhas convicções (na altura, quase todas incluídas em letras dos Pearl Jam), cataloguei-a: “beleza fácil”, “arrogante”, “ôca”, “destruidora de corações”... Sabia estar preparado para a evitar. Porém, quando a vi, constatei que a beleza dela não era nada fácil... Era hipnotizante.
Mantive-me sentado o tempo todo, tentanto nunca olhar para ela; ainda assim, atento a todos os seus movimentos - para não revelar a minha vulnerabilidade, caso uma ida à casa de banho, por exemplo, nos colocasse frente a frente. 
A cerimónia estava quase a acabar e a minha metodologia quase triunfante, quando a minha mãe estragou tudo:
- Porque não vais dançar com aquela menina? Passou o tempo todo a olhar para ti e há pouco, quando foram todos dançar, quase jurava que olhou para ti em desespero, enquanto a ignoravas.
Nesse instante retribuí-lhe o olhar, mas era demasiado tarde. Ficamos os dois a olhar um para o outro, em desespero. enquanto todos se levantavam e despediam dos noivos. Eu levantei-me também e caminhei para ela; ignorei os noivos, os meus pais, os dela, a música e tudo resto. Toquei-lhe no ombro, olhei para ela e tudo o que consegui dizer foi:
- Até à próxima.
Os dias que se seguiram não foram fáceis... Tive daqueles sonhos que catalogamos como pesadelos, apenas pela raiva de termos acordado. Dançava com ela na maioria deles.
No ínicio de Setembro, enquanto trabalhava na papelaria do meu primo (ainda em lua de mel) e preparava as encomendas dos livros escolares, vi uma lista colada numa caixa que dizia: “Livros da Marta 12ª Ano”.
Sem qualquer dúvida que me estava a ser dada uma segunda oportunidade, abri a capa do livro de Matemática e em forma de prefácio escrevi: “Não imaginas como me arrependo de não termos dançado. Se aceitares o convite para uma valsa (nem que seja a última) estou às quintas à tarde na praia de Leça”.
Fechei o livro e respirei fundo. Nessa noite não tive pesadelos.
Na quinta feira, apesar das reclamações dos meus amigos, não cheguei a entrar na água. Fiquei sentado, à espera, umas vezes a olhar para o mar e a desejar profundamente que me tocassem no ombro, outras a olhar para as dunas, em desespero.
Ela não veio. Quase fiz os meus amigos perderem o autocarro, para ter a garantia que ela não vinha.
Passei duas semanas a insultar-me por ter alimentado a ilusão que poderia ser diferente da Laika ou da Rolinda. Olhava à noite para o céu, à procura do Sputnik, à procura de um outro companheiro solitário com quem desabafar.
No fim de Setembro, numa tarde de ondas perfeitas, com o Sol já a tocar no horizonte, apanhei uma onda e vi na praia três raparigas. Hipnotizado, cai à água da forma mais ridicula possível. Nadei até à costa e caminhei até elas, a cuspir areia e com algas na cara.
A Marta caminhou até mim com um olhar sereno e disse: 
-Vim aqui saber se sempre vais dançar comigo...
Demos as mãos mas não dançámos. Entrámos todos no “88” que nos trazia da praia de Leça para a marginal. Era o autocarro perfeito - semi-articulado, com espaço suficiente para pousarmos as pranchas numa plataforma giratória a meio.
De mãos dadas, rodeados de pranchas e a girar na plataforma, dançámos finalmente a nossa valsa adiada. Alguns passageiros sorriram, os nossos amigos troçaram e nós... Nós girámos, curva após curva, num carrossel que era só nosso.
Faltavam três dias para completar um ano totalmente feliz, quando recebi a notícia, numa cabine telefónica no Mindelo: 
- Vou estudar para Budapeste... Com as minhas notas a matemática... O meu pai tem um amigo na universidade lá...Eu não quero mas o meu pai não recua.... Não te preocupes, vou escrever-te todas as semanas e venho cá de três em três meses.
O meu mundo ruiu.
No primeiro mês recebi cartas todas as semanas, no segundo apenas uma e no terceiro ela não regressou a casa, como prometera.
Algum tempo depois, dei por mim a procurar o Sputnik nos céus, por entre as estrelas... Não sei se zangado por o ter abandonado, ou simplesmente por ter saído de órbita, nunca o cheguei a ver. Se o tivesse visto, contar-lhe-ia que o amor se havia revelado a mim novamente como uma história com muitas versões mas sempre com as mesmas personagens:

O vilão – o pai da Marta, que a fez ir para Budapeste.
As vítimas – eu e ela, impedidos de continuar a viver um conto de fadas 
O cobarde – apenas eu, por a ter deixado partir e não a procurar.

Na altura fiquei ainda mais triste, perante a evidência que os meus genes carregavam a herança de cobardia de um sujeito que nunca havia conhecido.
Abri os armários, parti o mealheiro e comprei um bilhete de avião com dinheiro destinado a uma prancha que não tivesse a ponta emendada com resina.   
Fugi de casa numa madrugada de Setembro. Pedi à Rolinda e à Laika que me abençoassem...
Em Budapeste, persegui uma morada repetida em cinco envelopes e cheguei a uma porta branca. Suspirei e toquei à campaínha... Ninguém apareceu. Sentei-me e adormeci sem dar conta.
Devem ter passado algumas horas porque quando acordei, repentinamente, estava já a escurecer. Levantei-me, olhei para o fundo da rua e vi a Marta, de mãos dadas com um rapaz. Comecei a caminhar em sentido contrário, com a minha alma a discutir com os olhos a razão porque insistiam em a contrariar... Ao chegar à primeira curva ouvi a Marta gritar:
- Filipe?! Espera!
Eu virei-me e apenas consegui dizer:
- Até à próxima.
Continuei a caminhar, com uma força nas pernas que me fez acreditar chegar até casa. Quando finalmente sucumbi ao cansaço, contei os trocos, chamei um táxi e em andamento, já suficientemente longe,  deixei os meus olhos por fim, renderem-se à alma. Uma vez rendidos, não me pouparam o embaraço de uma senhora no Check-in e uma hospedeira, me perguntarem se “estava bem”. Da segunda vez que menti, o homem
que viajava ao meu lado inclinou-se e disse:
- Não me parece que estejas bem...Aposto que estás com uma indisposição daquelas que só o amor consegue causar...
Engoli em seco e disfarcei o meu desespero - ainda não estava preparado para enfrentar o meu pai; dispensava bem esgotar energias com discursos paternalistas...
- É mais ou menos isso, mas passa!
- Eu sei que não acreditas no que dizes mas passa mesmo! Ninguém nos ensina a que portas bater e às vezes levámos com elas na cara... O processo repete-se, até que eventualmente batemos à porta certa e tudo passa... Começamos de novo.
O discurso era indubitávelmente paternalista mas ainda assim, por ausência de um amigo forte com quem falar (incluindo o Sputnik), continuei a conversa... Falei de todos os vilões, vítimas e cobardes que conhecera, falei mim, da Marta, do meu pai, da Laika, da Rolinda, do avô que nunca conhecera...
Quando acabei, os seus olhos continuavam arregalados. Havia-se mantido calmo enquanto eu falara de tudo o resto (acho até que lutou para não adormecer) porém, a história de Rolinda e do meu avô havia-o perturbado.
Ignorou o aviso de apertar os cintos e inundou-me de perguntas:
- Como se chama o teu pai? Em que ano nasceu? Onde morava a tua avó? Como se chamava o tio do teu pai?
Achei aquilo estranho e fui respondendo, com medo de ter estado a desabafar com um psicopata...
No aeroporto ele ofereceu-se para me dar boleia até casa. Neguei a primeira vez mas depois, consciente do “vácuo” nos meus bolsos e confiante na arte que acumulara de “partir o nariz” a quem se metia com a malta do meu bairro, aceitei.


Porta Vermelha

Ainda hoje viajo muito. Vejo mil e uma casas, portas de todas as cores. Sabes que pertences a um sítio quando vês a côr da tua porta – vermelha. Não um vermelho qualquer mas o teu, aquele que foi pintado com a palete da tua alma e onde os pássaros cantam da forma que te ensinaram a reconhecer.
O carro parou e eu sabia que tinha chegado a uma porta onde podia bater. Ele desligou  o motor mas eu não estranhei. Saí do carro e de lágrimas nos olhos e bati à porta.
Podes ver mil e uma casas e portas de todas as côres,  mas irás sempre lembrar aquelas às quais podes bater. No entanto, por muitas portas que abram, a certeza de estar em casa surge apenas com um abraço – o do meu pai.
O meu pai abriu a porta e fez-me sentir em casa.
- Não fiques desiludido comigo! Estava certo que ir atrás dela era bater à porta certa...
Ele agarrou-me nos ombros e de olhos inundados, disse:
- Na vida há poucas certezas. Por isso haveremos sempre de tomar decisões que se revelam certas e outras amargamente erradas... A compensação para a angústia desta realidade reside numa dessas poucas certezas: um pai vai sempre gostar do seu filho, independentemente do que ele decidir.
Eu decidi parar de chorar.
- É a este senhor que devo agradecer ter-te trazido a casa?
- Não! Ele veio para casa pelo seu próprio pé... Peço descupa por incomodar numa altura destas mas tenho que esclarecer umas coisas...
A minha mãe deu-me uma sopa e o meu pai umas uvas - que limpou com a camisola, enquanto respondia às perguntas do homem no avião...
À terceira uva, percebi que o meu pai falava com o seu primo...
O meu avô, desconhendo a história da Laika, contara aos seus sobrinhos a história de um amor perdido, de um vilão que o afastara de um conto de fadas, de um cobarde que todos deviam repudiar...
- O teu pai está vivo! Se quiseres, arranjo forma de se conhecerem... Vais ao café onde ele costuma ir... Não te preocupes, eu falo com ele....

Porta Verde

Numa tarde de Agosto, eu e o meu pai apanhámos o “77”, um autocarro perfeito - conseguíamos sempre lugar e depois, “lá para os lados da Areosa”, com todos os lugares já preenchidos,  uma velhinha entrava e o meu pai dava-lhe lugar.
Saímos em “Montes Burgos”. Caminhámos em silêncio até um café e depois recuperámos o fôlego.
Ele deu dois passos e depois parou...
- Não fiques desiludido comigo... Se calhar não vou conseguir entrar.
- Sabes pai, na vida há poucas certezas... Há decisões que são certas e outras que nos deixam na mer... Tu sabes! Mas um filho vai sempre gostar do seu pai, independentemente do que ele decidir.
O meu pai apertou-me a mão como se eu tivesse seis anos e depois, filho e neto, supiramos em uníssono, enquanto abríamos a porta do café...

O meu avô nunca chegou a dar uma fisga ao meu pai. Deu-lhe no entanto, outras coisas que um miúdo de 55 anos também precisa -  uma porta verde por exemplo, onde ele podia bater sempre que precisasse.

Filipe Lascasas

Para a minha mãe que também lá estava  Foi ela que nos bastidores, nos (re)uniu a todos.


Been so long - Vetiver + Skinny Love - Bon Iver

8 comentários:

  1. quem lê regressa contigo ao passado e parece sentir tudo de igual forma! adorei viver um bocadinho da tua vida... um bocadinho pequeno mas muito intenso! Estás de parabéns como sempre!
    Bjokas
    Mi*

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  2. Quando decidiste parar de chorar, comecei eu a fazê-lo... Beijinho grande. Catarina Almeida

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  3. Filipe,

    Li este teu "capítulo de vida" com avidez e sofreguidão. É curioso que somos primos mas a ligação, por razões de ordem várias, nunca foi ou pode ser muita estreita. Hoje constato, apesar de pouco saber dos meus primos, que são a minha família, que és uma HOMEM fantástico e fico super feliz de ser tua prima. O teu relato é sublime. Quanto às portas...bem...tenho batido a muitas e algumas com resultados desastrosos e outras que dão para "casas" com vários degraus que me permitem escalar até onde estou actualmente. Parabéns por conseguires contar a tua vida...a minha tem alguns episódios com detalhes demasiados rebuscados. Um grande beijinho!

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  4. Obrigado a todos, é uma historia importante e é claro que não vou responder a uma só pergunta que me têm feito por sms. :)Prima: uma das razões é eu ter nascido tão tarde... :)

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  5. Ao ler esta história tive a ilusão de ser real e de efectivamente estares a fazer o relato de algo que aconteceu e que aconteceu na primeira pessoa.
    Depois li os comentários e percebi que o meu palpite estava certo. Não sei se é tudo real ou só parte mas quero felicitar-te se efectivamente as coisas se passaram da forma como tu as contas. Tal como tu, nasci já fora de prazo, mais precisamente 13 anos atrasada, mas ao contrário de ti, nunca consegui ultrapassar essa barreira.
    Fico feliz por ti! :)

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  6. Agora tive a certeza que, se quiseres, um dia escreverás um grande romance!

    rui

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  7. E eu q pensava q apenas a minha vida dava um livro....por tanto q passei e continuo a passar,mas acabo d aprender q todos nós se calhar podiamos escrever um livro da nossa vida,pq afinal todos passamos por grds dificuldades e sofrimento!!!! se um dia quiseres escrever a minha história,eu conto-ta e tu escreves...dividimos os direitos d edição!!! lol

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