sexta-feira, 2 de abril de 2010

Cinco Cigarros




Quando uma história é bonita de mais chamam-lhe conto de fadas, quando é demasiado triste chamam-lhe drama ou tragédia. Em ambos os casos, é-lhes retirado o direito à veracidade. Ninguém acredita que alguém tão feliz ou tão miserável possa ser real.                                                                                                          

Cinco cigarros

Perdeu o emprego que tinha e a esperança de arranjar outro qualquer. Os seus amigos partiram para lugares longínquos – aqueles – onde  a fronteira entre a mera ausência e o abandono completo é uma linha ténue, quase invisível.
A mulher que ele elegera amar até ao fim dos seus dias, desligou o telefone há dois cigarros atrás... Revelou, simplesmente, que ele não era o homem que ela amaria até ao fim dos seus dias, nem tão pouco aquele que ela mais amou em todos os outros.
Sem dinheiro, com apenas cinco cigarros num maço amachucado e a poucos dias de ser despejado, sentou-se às escuras na cozinha e brindou a si próprio, com uma garrafa reservada para um momento de glória.

Quatro cigarros

No meio do fumo viu o garoto que já foi... Corria por entre campos de trigo há muito substituídos por betão. Por entre cada passa, recordou o garoto levado nos braços do vento e abençoado pelo sol. Apenas chovia enquanto ele dormia.
Lembrou-se dos pais, dos amigos de infância, do primeiro beijo, da liberdade, da inconsequência juvenil e todas as outras coisas que ao terminarem, levam a felicidade consigo.
“A vida adulta é o princípio da morte.” – Pensou ele bem alto, ao segundo copo da garrafa da glória. “Os pais morrem, os amigos nunca mais são iguais, os beijos passam a ser todos iguais e perdemos toda a liberdade para um tirano qualquer com o poder de fazer cortes salariais e hipotecas... A partir do momento em que deixamos de ser inconsequentes, ironicamente, passamos a ser vítimas de todo o tipo de consequências.”
A solidão foi abruptamente interrompida pelo barulho do telefone e pelos gritos da esposa de um dos seus amigos distantes:
- (...) estou a falar a sério! Ele deixou uma carta de despedida! Ninguém faz ideia onde ele possa estar!
Desceu o elevador com a garrafa numa mão e as chaves do carro na outra, acendeu mais um cigarro e rezou para que a pouca gasolina que tinha, desse para percorrer os
70 km do seu palpite...

Três cigarros

Chegou à ponte e olhou lá para cima. Tentou lembrar-se do caminho secreto e ventoso que o levava ao cimo do arco que a sustentava. Depois, concentrado e esperançoso que o equilíbrio (entregue ao álcool) e o vento se anulassem de forma a ele não cair, iniciou a subida...

- Não podias ter escolhido uma noite menos fria para vir para aqui?
- Tu?! O que é que estás aqui a fazer?
- Sempre gostei deste sítio... O mundo aqui anda mais devagar.
- Sim, é verdade. Ainda te lembras da primeira vez que subimos até aqui?
- Acho que sim, foi uma aposta qualquer com uns miúdos mais ricos do que inteligentes... Apostaram que se subíssemos até aqui morríamos, certo?
- Pois... Não sei se  hoje ganhávamos a aposta...
- Será que com este vento consigo acender um cigarro?
- Não devias fumar... Isso faz mal à saúde!
- Desculpa se me recuso a aceitar essa tua advertência neste momento... Quantos maços sem consequências poderei fumar no tempo em que cais até lá baixo?
- Tens razão, dá-me um cigarro!
Ficaram ali os dois, durante horas, com o vento a tentar levá-los uma vez mais nos seus braços, mesmo sem a benção do sol. Beberam um vinho nascido no mesmo ano que eles, pelo gargalo da tal garrafa especial e recordaram os pais, os amigos que partiram, o primeiro beijo, a liberdade e a inconsequência que os tinha levado a subir pela primeira vez, o arco daquela ponte.
Quando as luzes da cidade do Porto começaram a apagar-se, desceram a ponte juntos, com falsas promessas de voltarem a encontrar-se e não desistirem da busca pela felicidade.
Despediu-se do amigo ainda com algum vinho na garrafa que abrira em casa. Ligou o carro e acelerou até à última gota de vinho e gasolina - quinhentos metros suficientes para o amigo o perder de vista no horizonte. Depois, deixou as portas abertas e caminhou durante meia hora até um penhasco junto ao mar. Queria ver o Sol cometer a ousadia de nascer e brilhar à sua frente.
O astro ousou nascer de facto, para todos - como se diz. Mas apenas para iluminar alguns -  como se omite...

Último cigarro

Olhou o mar e recordou o amigo prestes a saltar para um rio de mágoas e frustrações umas horas antes. Tranquilo por saber que ele caminhava para casa, iluminado por um sol que o escolhia, sentou-se numa rocha, acendeu o seu último cigarro e escreveu nas costas da mão:
“Eu sabia que hoje era o dia certo para abrir esta garrafa!”


Filipe Lascasas

Para o R.C. que foi sempre o preferido do sol e ainda bem, porque só há 5 anos atrás, barraram definitivamente o acesso ao arco da Ponte da Arrábida)
















Stina Nordenstam - Little Star

4 comentários:

  1. Consegues sempre superar a expectativa!
    Beijinho
    Mi*

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  2. O que sinto quando leio as tuas histórias é... real.

    PS

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  3. Ou sou eu q sou demasiado sensivel ou esta história mexeu mm cmg...já senti isto mtas vezes infelizmente!
    Beijinhos e obrigada por existires...

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