sábado, 10 de abril de 2010

Despejo.


Depois de o estabilizar ele levantou a cabeça e murmurou:

“Chamaram-no e ele veio. Tinha um olhar de gelo quase a derreter. Não existem muitos olhares assim... Parecem perdidos no infinito, indiferentes a tudo, até ao momento em que se fixam em ti. Depois, atravessam-te lentamente, lendo tudo o que em ti está escrito .
Chamaram-no e disseram que pagaríamos o que ele quisesse. Ele respondeu que bastaria estarmos dispostos a pagar o preço necessário...
Ao fim da primeira semana não notámos grandes diferenças, o lugar continuava imundo. Porém, passados treze dias, constatei que a sujidade não mais havia aumentado...
Pediram-me  um” debriefing”, pediram que o procurasse....
“Queremos saber como corre a limpeza”.
Quando entrava na última sala, uma mão penetrou a luz e atirou-me para a escuridão de um canto escondido da sala...
- Como está a correr a limpeza? O lugar continua sujo.
Ele leu-me com o olhar e disse que não faria desaparecer a sujidade. “Depois de a sujidade ser criada, ninguém a faz desaparecer. Aquilo que apenas se pode fazer é camuflá-la ou mudá-la de lugar. Não é para isso que aqui estou... Vim garantir que a sujidade deixará de ser criada”.
Permanecemos em silêncio. Ao vê-lo imóvel, com o olhar perdido no infinito, temi que desviasse o olhar na minha direcção e tornei-me imóvel, tentando diluir-me na escuridão do lugar. De repente, dois grandes pássaros levantaram voo. Um deles deixou cair uma pena e ele sorriu, mas o outro sujou o lugar. Nesse instante, levantou uma arma. Ouvi um “click” metálico e vi o pássaro cair no chão.
Segui-o como se estivesse preso com correntes à sua cintura. O pássaro olhava-o, ainda vivo, com um olhar de gelo derretido... “Que as lágrimas te purifiquem” (Segundo “click”).
- São eles os culpados por tanta sujidade? – Perguntei. Ele olhou-me. “Apenas culpados da sujidade que produzem não ser igual à vossa”.
O segundo grande pássaro voava assustado de um lado para o outro, parando em lugares onde encontrava luz.
“Para sermos iluminados não precisamos procurar  luz mas sim afastarmo-nos da escuridão”.
O pássaro rendeu-se ao argumento e pousou. Ele levantou-se, caminhou em direcção ao pássaro e sentou-se à sua frente. Os pássaros choram. Todos os seres choram.
“Se te lavares em lágrimas perdoar-te-ei”.
Aquele pássaro não chorou. Abriu a asas com magestosidade, mostrou as suas nódoas e morreu ao primeiro “click”.
Saí a seu lado para fora do lugar. A noite havia caído e apesar da escuridão ocultar a sujidade, ela continuava presente...
“Amanhã é o dia em que deverão pagar-me”.  
Disse-lhe que trataria de lhes comunicar. Procurei usar um tom convincente e desviei o olhar para que não pudesse ser lido...
No dia seguinte, quando voltei, o lugar estava limpo. A sujidade havia desaparecido. Mal entrei, encharquei os sapatos num rio de lágrimas e vi-os a todos caídos. Nenhum estava vivo. Presumo que recusaram pagar-lhe o “preço necessário”.
Em cima do balcão, um pedaço de papel... Um recibo.
Nele apenas uma assinatura e duas palavras: “Dívida Paga”.
- Olhei para trás e vi um espelho...

“Click”.

A ambulâcia e a polícia chegaram e eu reportei a tentativa de suicídio. Só então consegui desprender a arma da sua mão, cheia de penas e sangue.
Nas costas de um recibo estava  escrito:
“Não o chamem mais, passei 27 anos a tentar aprisioná-lo dentro de mim”.

Filipe Lascasas

P.S. No dia 20 de Maio de 2004, matei sete pombos com uma arma de pressão, para conservar o meu emprego...
Era 1 de 3 coordenadores num centro de ciência e exigiram-me uma sala « isenta de problemas técnicos, parasitas voadores e sujidade », num edifício abandonado, com uma exposição ironicamente intitulada: « Genética – o segredo da vida »

As janelas ficaram abertas duas semanas mas  o Homem é o único animal a quem podes (entre outras coisas) comunicar um despejo com a certeza de ele se retirar voluntariamente.

Tinha uma equipa de sete, mas o homicídio não se delega. Nem se perdoa.








Reckoner - Radiohead

5 comentários:

  1. Os teus textos levam-me sempre para outra dimensao...

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  2. Bom...agora imagina teres que dormir com o patrão para conservar o teu emprego...já me aconteceu. Na altura respondi ao imberbe que pai já tinha um e gostava muito mais dele quando estava para fora. Safou-me o irmão que lhe disse umas valentes...passado cerca de um ano consegui arranjar outro emprego. Life sucks sometimes...

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  3. Apesar de não me deixares digerir as tuas estórias aqui vai o meu comentário (ainda com a digestão por fazer):
    - Li
    - Intensa
    - Gostei

    PS

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  4. Pareceu-me estar dentro de uma curta metragem!

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