domingo, 18 de abril de 2010

Memória fotográfica



Os seus ombros tocaram-se quando contemplavam um quadro de Giuseppe Archimboldo. O tempo parou à medida que desviaram o olhar um para o outro. Passados uns segundos, era o quadro que contemplava duas figuras humanas, perdidas no infinito fotográfico que todas as retinas deslumbradas registam mas a memória não arquiva. Tivesse algum génio artístico a vontade de despejar sobre eles litros de aguarelas ou queimar uma película fotográfica e o momento teria durado para sempre,  na parede de um qualquer museu.

Era uma vez um homem que cortou a sua memória com uma faca de cozinha e alguns utensílios de jardinagem. Uns dizem que fora uma tentativa de suicídio, outros afirmam ter sido uma intervenção cirúrgica brilhante. Era fotógrafo. Recebeu a sua primeira máquina fotográfica aos seis anos e desde então, fotografava tudo o que podia. Nunca soube explicar porquê, mas sentia haver uma razão para o fazer...
Demorou umas semanas a preparar a operação. Juntou os milhares de fotografias que possuía, escolheu as mais importantes e mandou-as ampliar ao tamanho das paredes de sua casa.
Após retirar a sua própria memória, caiu num sono profundo. Quando acordou, olhou à sua volta e viu muita luz; depois, viu a fotografia de um homem a segurar um bebé.
Tinha nascido.
Levantou-se e caminhou até à imagem de uma senhora com ar familiar que lhe dava a mão, numa rua de granito.
Era o seu primeiro dia de escola.
Uma fotografia que tirou aos 12 anos dos seus pais a darem um beijo ternurento, mantinha-os casados e apaixonados para a eternidade. O seu avô sobrevivia aos anos, no papel que forrava a despensa, debruçado num tractor.
Nunca perdera um amigo. Na sua parede virada a Este, brincavam aos “cowboys” e uns centímetros depois, lanchavam pão com marmelada e doce de chila feitos pelas mães, numa altura em que as fotografias eram a preto e branco.
Na parede a Oeste apaixonava-se pela primeira vez, na bilheteira pouco iluminada de uma exposição de Archimboldo. Avançava uns metros até ao primeiro beijo e seguia até à cozinha, por um areal branco banhado por águas límpidas, de mãos dadas com a sua amada. Ela nunca havia partido, esperava-o sempre numa parede à saída do quarto, com o pequeno-almoço numa bandeja e uma tulipa vermelha na orelha.
Na sala, junto à lareira, cumpria sonhos de uma vida... Em milhares de fotos recortadas e sobrepostas, assinava o contrato do seu emprego de sonho, comprava uma casa de paredes enormes, publicava as suas primeiras fotografias num jornal, recebia o seu primeiro prémio, exibia os seus trabalhos por todo o mundo...
Os pássaros não dormiam à noite. O verão não acabava. O sol permanecia eternamente posto, num oceano de águas calmas.
No tecto do seu quarto, uma fotografia gigante de um céu coberto de estrelas, lembrava-o que talvez não estivesse só. Olhava uma estrela cadente cuja queda havia sido eternamente amparada pela película fotográfica e fazia desejos até adormecer...
A sua casa era a sua vida. Todos os dias acordava, nascia, crescia, vivia e adormecia, feliz. Viveu mil trezentas e doze vidas.
No dia em que acordava para viver a mil trezentos e treze, bateram-lhe à porta uns senhores vestidos com batas. Acordou numa cama de hospital, olhou à volta e só viu paredes brancas. Numa das paredes, uma televisão aspirou-lhe o olhar... Em minutos mergulhou num mundo onde aconteciam milhares de coisas diferentes, imediatamente esquecidas.
Passados uns minutos, morreu.
Alguém anunciou a sua morte, mas foi imediatamente esquecida.

Filipe Lascasas

(Aos fotógrafos, aos poetas e aos pintores... Por nos lembrarem.)



Sol Seppy - Enter One

6 comentários:

  1. Uma das minhas preferidas.

    SIMPLESMENTE LINDA.

    A música... uma bela descoberta.

    Obrigada Lascas, MUITO OBRIGADA.

    PS

    ResponderEliminar
  2. Esta é muito especial...adoro histórias que me fazem voar...e tu, mais uma vez, conseguiste. Quando te olhares no espelho, de manhã, por favor, diz para ti mesmo: tenho muito valor!
    Beijinhos da prima :-)

    ResponderEliminar
  3. Fabulosa! Parabéns, mais uma vez!

    rui

    ResponderEliminar
  4. Gosto muito desta! :) Assim mesmo muuuuiiiitttto!! Beijo*

    ResponderEliminar