quarta-feira, 26 de maio de 2010

A outra palma da mão.



Foram juntos não porque ela precisasse de uma companhia mas porque queria uma. Nada de novo também na sala... Desde a introdução paternalista, ao tom autoritário - intercalado convenientemente por momentos de falsa ternura e suavidade na voz.  Um desperdício de dinheiro, sem revelações que ele não tivesse já lido em livros de auto-ajuda, ou assistido em “filmes fáceis”.
Quase ao fim de uma hora bem cara  - e  batido que estava,  seguramente, o recorde mundial de “clichés por minuto” -  o psicólogo caprichou e pediu-lhe um último:
O teste de confiança.
Ela (que estava a pagar), hesitou durante vinte e dois segundos, depois fechou os olhos, depois abriu os braços, depois susteve a respiração... Deixou-se cair. Ele, susteve a respiração, depois dilatou as pupilas, depois abriu os braços. Apanhou-a.

- Agora ao contrário.
- Porque não? – Disse o meu colega, com os olhos no relógio.
Ele fechou os olhos e não hesitou. Caiu e bateu com a cabeça no chão.

- Então? Não estavas preparada?
- Estava, mas queria ver se confiavas em mim.

Ele levantou-se ainda a coçar a nuca e fechou os olhos. Não hesitou mas deu-lhe 9 segundos para ela se preparar...
Caiu novamente no chão. Desta vez com mais força.

- Então?!
- Desta vez estava a pensar se fazias o mesmo caso eu não estivesse aqui.

Encontraram-se passados nove anos no Facebook...

Trocaram uns “olás”, partilharam umas músicas e depois começaram a conversar no chat... As linhas de letras e “smiles” aumentaram de dia para dia.  No entanto, o sumário de cada janela era quase sempre uma troca de argumentos forçados (retirados de “filmes fáceis”) tentando provar o quanto estavam bem. Ele, mais do que ela, compilava fotos - enviadas em “ficheiros zip” - de uma vida especial, diferente das outras.
Durante três meses, os teclados de ambos expulsaram pensamentos e expressões que davam vida ao acto consciente e ardiloso de memórias que o início do envelhecimento sempre constroi - para corrobar a historia de quem achamos que somos ou de quem desejaríamos ser.
Depois passaram para a fase seguinte – a oposta – em que se deixa o bolbo raquidiano à solta, sem a trela da censura ou do controlo racional...
Deixaram o bolbo raquidiano uivar e escreveram coisas que não deviam pensar.
Num dia de chuva e vento ele esperava-a on-line, já de olhos fechados, braços abertos e pronto a deixar-se cair. Ela fez login já com o bolbo raquidiano preso pela trela de uma consciência pesada...

- Vou-me casar. Acho que não devemos voltar a teclar por uns tempos.

Coçou a nuca e recapitulou as vezes em que sentira a mesma dor, a mesma “picada”.
Enquanto a racionalidade se sobrepôs à alma, sentiu pena de si próprio e de toda uma vida preenchida de desilusões, por sempre confiar nos outros; por deixar-se cair, por nunca o apanharem.
No fim de uma bebedeira, com todas as trelas guardadas no armário, pintou uma frase na parede do seu quarto (com tinta que afinal não era  lavável):

Nunca caias por ninguém.

No inicio de uma ressaca, olhou para a frase e percebeu que nunca havia caído sem a expectativa de ser amparado. Num último fôlego de racionalidade, ainda expulsou uma frase:

Não tens medo de arriscar... Corres riscos calculados.

Nunca chegou a pintar a frase na parede.
Naquela gaveta da minha secretária ainda guardo o papel que ele aqui deixou. Se quiseres posso ir buscá-lo mas conheço o texto de “cor e salteado” – de tantas vezes que o citei:

Conjugar as palavras “risco” e “calculado” tem tanta lógica como a conjugação das palavras “violador” e “romântico”. Para a vida – que premeia os que correm riscos sem adjectivações e aceitam a sua imprevisibilidade – a conjugação é uma anedota. Enquanto coças a nuca, após mais uma “queda calculada”, a vida ri-se, muito.

Não sei dizer em que momento ele escreveu isto, presumo que algures num ciclo de quedas radicais a que se sujeitou após a notícia do casamento...
Sei que no dia a seguir acordou com a vontade de vencer todos os seus medos mas apenas derrotou alguns. Um deles era o trauma de morrer afogado – nascido após “o acidente”, numa tarde de surf com os amigos.  Procurou uma professora de natação com boas referências e deu com ela numa piscina em Trás-os-montes... Estava a pegar num rapaz, com paralisia cerebral, ao colo. Ele, com o corpo dobrado e inerte – como se nunca tivesse saído do útero da mãe – ria-se muito.  Ela sentou-o na beira da piscina e com uma mão segurou-o nas costas...

- Vou soltar a mão... Estás pronto?

Ele aguardou pela brisa certa e caiu para dentro da piscina ainda a rir. Nunca iria aprender a nadar mas também não queria... Apenas cumpria o sonho de cair na água, ao sabor do vento, sem ser amparado.
Dentro de água, o calor que sentia apenas na cabeça, foi-se perdendo e o seu corpo inerte, foi pouco a pouco, desdobrando-se...  Com ela sempre por perto a ampará-lo, e ao fim de trinta anos, ele conhecia finalmente a sensação de sair do útero da sua mãe.
Ela pegou-lhe no braço (toda a  vida “cimentado” ao seu peito) e começou a esticá-lo lentamente. Depois, um a um, abriu os dedos da sua mão...

- Olha... É a palma da tua mão!

O rapaz olhou maravilhado para a palma da mão que nunca tinha visto... Riu e chorou ao mesmo tempo.

Ele retirou-se sem que ambos dessem pela sua presença.
Apanhou uma bebedeira a pensar na forma livre e arriscada como o rapaz caíra. De manhã, já de ressaca, pensou no mesmo. Depois...
A porta do metro abriu mesmo à sua frente – não era comum. No entanto, à distancia de um passo, ele não se moveu. O metro arrancou e após fotogramas repetidos de caras ensonadas, ali permaneceu, mais acordado e sóbrio do que seria suposto..
Passou tempo suficiente para um novo metro chegar e antes que as portas se abrissem, deu dois passos atrás. De repente, viram-no a correr para não apanhar o metro. Quase parecia que alguém tinha pela primeira vez conseguido reboninar uma rotina matinal que milhares apenas conseguem começar e acabar ininterruptamente... Sei que muitos na estação sentiram-se tentados a não apanhar o metro com ele. Depois...
Surfou nos oceanos que realmente queria. Mergulhou, correu, voou e fez queda livre (muitas vezes até no chão). Viajou até sítios com que sempre sonhou e depois continuou a viajar, até sítios que o fizeram sonhar.
Quis vencer todos os seus medos e derrotou a maioria.
Num dia de sol, algures na Tailândia, olhou para o oceano e recapitulou as frases novas que iria pintar na parede do seu quarto, usando apenas a palma da mão. À penúltima frase, percebeu que tinha de a ir buscar. Ainda estava a tempo de interromper o casamento...
Saiu do avião e abandonou as malas em circulos no tapete do aeroporto. Meteu-se no carro e descarregou a adrenalina no acelerador...
Contrariando o que seria apropriado para a fluidez da história de um “filme fácil”, foi parado a meio da viagem,  pela patrulha de trânsito. Multaram-no, por viajar... Depressa.
Depois, dentro dos limites de velocidade, continuou a viagem, confiante que ainda chegaria a tempo.
Apanhou-a à saída do emprego e caminhou até ela.
Depois susteve a respiração, depois fechou os olhos, depois abriu os braços.
Ela, negou-lhe o beijo e o abraço com um gesto harmonioso. Ele... Caiu.

- Estás bom? Vamos tomar café.

Sem dores na nuca mas com um aperto na alma, ele olhou para o outro lado da rua e depois para ela...

- Vamos. Sempre será mais divertido do que num “chat”.

Falaram.
De tudo.
Ela recordou tudo também,  com carinho, sem as censuras conscientes e ardilosas que o envelhecimento poderia construir - para proteger um ego de “meia idade”. Por entre garrafas de Coca-cola e Ice Tea, descreveu a serenata que ele lhe fez com a Tuna, as centenas de flores que pousou na sua almofada, a perda da virgindade no momento certo para ambos,  a noite em que ele pôs quarenta caloiros a gritar o seu nome para a encontrar no meio de uma praça com centenas de pessoas...

- Então o que te fez aparecer por cá? Confesso que tive medo de te ver durante uns meses... Passei a cerimónia do meu casamento em agonia, a pensar que entrarias a qualquer momento para fazer algum escandâlo. Depois de quatro anos sem notícias tuas comecei a questionar se estavas vivo... O que fizeste entretanto?

Ele sorriu, deu um último trago na Coca-Cola e respondeu:

- Andei a cair por aí.

Ela bebeu mais um pouco do Ice Tea e sorriu também...

- Mesmo sem mim para te amparar?

Ele já não respondeu – perante a visão de um homem com aspecto “mal humorado” que se sentou ao lado dela sem pedir licença...

- Então não respondes às mensagens? Quem é este?
- É um amigo da Universidade que encontrei por acaso... Apresento-te o meu marido.

Ele ía estender a mão ao marido, mas ele levantou-se, pousou uma nota de 20 euros na mesa e disse:

- Gostava muito de ouvir as histórias da vossa infância mas quero ir jantar que estou cheio de fome! Podemos?

A forma rude e grosseira com que o marido lhe falava, fez cair a aura que ela até ali mantinha, destapando nódoas negras e cicatrizes de quem há muito tempo não era amparado.
Ela acedeu e levantou-se...

- Até uma próxima vez!

Quando os dois desapareceram pela porta do café, ele olhou para uma palma da mão e depois para a outra... Mas não a viu - tudo o que restava, era a sua marca embaciada num copo de Ice Tea.

Depois...
Entrou no restaurante e sem procurar, caminhou em fente – indiferente à forte probabilidade de se ter  enganado no restaurante. Como prémio, a vida levou-o até ela e ao marido, numa mesa escondida no canto da sala...

- Vou cair e espero mesmo que me apanhes... Anda jantar comigo que eu levo-te a um sitío que realmente gostes.

O marido levantou-se em raiva, dirigiu-lhe uns palavrões e agarrou-o pelos colarinhos...
Confesso que gostaria de adulterar os acontecimentos por forma a não assumirem tantos contornos de um “filme fácil”... No entanto, ele afastou os braços do marido com força e empurrou-o por cima das mesas. Depois, para garantir que ele ficava sentado onde pertencia,  deixou-o pregado, com um garfo (ironicamente, espetado na palma da mão).
Ela olhou para ele em pânico. Depois, com serenidade. Depois, sorriu...

- Sabes bem que não te vou dizer qual é o meu restaurante favorito!
- Ainda bem... Apetece-me arriscar. No entanto, antes do jantar, vamos só passar num sítio...

Ouvi-os e tentei tudo - desde o tom autoritário, aos momentos de ternura exprimidos com voz suave. Eles, de forma condescente e óbvia, fingiram que os ajudei. Quando finalmente esgotei os meus clichés e os deixei em paz, disseram-me quase em uníssono:

- Faça-nos só o “teste da confiança”.

Tinham, na altura, trinta e cinco anos. Perguntaram-me se conhecia um bom restaurante e sem que eu tivesse tempo de responder, saíram de mãos dadas a rirem-se, com a vida.
Não preciso ser psicóloga para saber que a história deles teve sempre um fim aparentemente imprevisível mas provável.
Eu sei que a tua hora já terminou, há duas atrás... Permite-me no entanto encerrar a sessão com um receituário para a tua cura:

Deixa a tua carreira “pouco arriscada” cair. Mergulha em todos os oceanos em que queiras surfar, viaja até onde nem os teus sonhos cairam, faz queda livre (mesmo que seja no chão). Correrás o risco de descobrir “a palma da tua mão”  - como prémio de uma vida que respeita a sincronia dos teus planos com sua imprevisíbilidade e por isso, não se ri de ti.
Podes escapar algumas destas opções e até automedicar-te. No entanto, confia no príncipio de que o amor será sempre a derradeira razão pela qual viverás, independentemente dos medos que tens para vencer, sonhos para cumprir, fome, sede, ou a simples vontade de procriar.
E convenhamos... Aqui entre nós, sem cobrar mais pela consulta:
É a melhor das quedas e o pior dos riscos... Antes e depois de cairmos no chão, mesmo se amparados pelo meio. É a única coisa que te prescrevo.

Filipe Lascasas

Inspirado numa história (real) da minha professora de natação favorita e dedicado à Mariana – a psicóloga que eu mais respeito por (entre outros dons ) trabalhar  voluntariamente.




Red House Painters - Have You Forgotten + John Butler Trio – Fool For You + Rita Redshoes – Chose Love

5 comentários:

  1. ainda não consegui decidir se me apetece rir ou chorar... de qualquer forma, continuo a adorar as tuas histórias de amor que nunca percebo se são alegres ou tristes, se são ficção ou realidade... só sei que são brilhantes!
    Beijos
    Mi*

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  2. :) Esta era supostamente alegre... Não és tu que estás sempre a pedir-me finais felizes? ;)
    beijinhos Mi

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  3. Li e re-li.

    Uma, duas, três vezes e...
    ... não sei...
    ... não sei...

    Tudo o que eu possa dizer terá "contornos de um filme fácil" ou abusará dos clichés que, em tantos comentário já os usei.


    Qual é a palavra que tu mais gostas mano?


    PS

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  4. Ai, ai que eu devia estar a traduzir mas perdi-me nesta história! Gosto, gosto, gosto!

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  5. Amiguinho eu tenho exactamente a mm sensaçao e opiniao q a MI*....
    Espectacular.... Queria pedir-te se um dia seras capaz d fazer uma destas tuas cronicas sobre o q eu ja passei????? Para mim seria um verdadeiro alivio poder partilhar d uma vez por todas o q me aconteceu e findar c a felicidade q chegou tarde mas chegou...Pensa nisso q se quiseres escrevo-te um mail ou dou-te uma entrevista...LOL e tu pensa seriamente em editar um livro e mostrar ao mundo o valor q tens....beijinhos. Gosto mto d ti!

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