segunda-feira, 24 de maio de 2010

Azimute*




A minha vida acabou às 22h33m do dia 2 de Setembro de 1995.
A hora exacta da minha morte vinha descrita nos papeis que me entregaram, quando saí do hospital. Por entre novelos de termos médicos, havia uma linha que se destacava: “O paciente deu entrada nas urgências às 22h26m e foi reanimado por massagem cardíaca directa, sete minutos depois, no bloco operatório.”
Dois dias depois, noticiavam a minha morte num jornal diário - “... o despiste provocou ferimentos graves no condutor da viatura e a morte imediata dos seus acompanhantes” – a minha mãe e a minha mulher.
Voltei a casa pelo meu pé mas caí desamparado no chão mal entrei. Transformei-me numa marioneta esquecida, presa por fios de memórias aos objectos que me rodeavam.
Passadas horas, cortei os fios com raiva e despejei pela janela tudo o que fazia a minha mãe e a minha esposa voltarem à vida. No fim, a casa ficou vazia, tal como eu. Elas ocupavam todos os cantos da minha existência.
Na última gaveta, encontrei uma bússola estragada e um bilhete manuscrito que a minha mãe me ofereceu quando tinha dezassete anos. “Toma, o teu pai pediu-me para te entregar isto quando nasceste”. Não fiz perguntas. Não tive pai. O velhaco, dador de genes, partiu quando me pousaram no berço.

Desculpa mas não me é permitido fugir ao meu destino.”

O tempo havia envelhecido o papel do bilhete mas não a tinta. Não me recordo se a bússola alguma vez funcionou. Na altura, coloquei ambos na gaveta mais ignorada do meu armário e, umas semanas depois, quando decidi ignorar o mistério de a minha mãe me oferecer aquilo passados tantos anos, arquivei todo o processo na mesma gaveta.
Agora, a bússola e o bilhete eram símbolos de provocação. Não podia aceitar a ideia de alguém no mundo se julgar parte da minha vida, por isso parti em busca do velhaco, com o único propósito de lhe dizer que todos os seres da minha vida estavam mortos e que o meu pai nunca havia nascido. Ao entregar-lhe a bússola, cortaria o único fio de memória que me ligava a uma vida que já não tinha. 
Procurei-o por todo o mundo com a bússola no bolso. Sempre que falava com alguém que o havia conhecido, lançavam-me um sorriso semelhante ao da minha mãe, quando viajava no meu carro em silêncio, olhando pela janela. Pediam-me para lhe agradecer caso alguma vez o encontrasse e depois, sem grande convicção, apontavam-me uma
possível direcção do seu paradeiro. Passei sete anos em viagem e nunca o encontrei.

Em 1996, atravessava Bangladesh quando descobri que a agulha da bússola apontava sempre na direcção em que seguia. Conheci muitas pessoas na minha viagem e acabei por entrar na vida de muitas delas por diferentes razões... Em 1997 obedeci à bússola, rumei para Este e ajudei a apagar um incêndio numa aldeia em Banguecoque. Durante um mês, os habitantes fizeram questão de me acolher em suas casas. Em 1998, disseram-me que talvez encontrasse o meu pai a trabalhar num hospital em África. Apenas duas enfermeiras, já idosas, se recordavam dele. Uma delas dirigiu-se a uma caixa de madeira escondida por trás de uma porta e entregou-me um estojo médico que dizia pertencer ao meu pai. Na altura em que me preparava para prosseguir o meu caminho, tocou-me nas costas e segredou: “Poderia tornar-se muito útil se usasse esse estojo para tratar alguns dos doentes; pelo menos hoje”. Acabei por trabalhar no hospital meio ano, até o número de voluntários aumentar. Depois, rumei para nordeste e salvei um menino indiano, com um antibiótico caseiro que aprendi a fazer nos meus tempos de estudante. Durante três semanas, o menino colocou flores em frente à porta do meu quarto.
Falaria de mais uma centena de pessoas com quem me cruzei mas o tempo urge e preciso de te revelar que há um ano atrás, quando ajudei a encontrar o teu irmão, segui as indicações da minha bússola. Apaixonei-me novamente e como sabes, não mais viajei sem ti. Guardei as razões da minha procura na mais ignorada das nossas gavetas.
Hoje, quando desembrulhava uma manta para cobrir o nosso bebé, encontrei a bússola e descobri que ela voltou a funcionar. Isso explica a razão pela qual me sinto tão infeliz quando caminho em direcção contrária a ela.
Perdoa-me, mas não consigo fugir ao meu destino. Entrega a bússola ao nosso filho caso um dia ela se avarie.



*Azimute: Do árabe: assimut, caminhos, direcções
s.m., arco do horizonte entre o meridiano do lugar e o círculo vertical que passa por um corpo celeste.


Filipe Lascasas


Jon Brion - Strings that Tie to You + Jamie Lidell - Compass

4 comentários:

  1. Entre o desconcertada e sentimento de incredulidade, não sei muito bem qual destes dois gradientes viajo a favor de...o meu problema é que bússola não tenho, mas olho as estrelas no ceú que me orientam. Aqui, na terra, olho para a estrela que cá vive...a estrela viva, sadina, genial e sem igual: Filipe Las Casas!

    Beijos

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  2. Adoro a forma como trocas as voltas aos teus leitores no final!
    Mais uma vez Parabéns!
    Beijo
    Mi*

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  3. Mais uma reviravolta emocionante! :-)

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