segunda-feira, 10 de maio de 2010

Lembrem-se de mim



Foi por entre fumo e muita confusão que encontrei o caderno – uma mistura de diário, agenda e livro de apontamentos...

Quarta-feira, 7h39

Hoje, como todos os dias, entrei no comboio para o emprego e fui caminhando, abrindo porta atrás de porta de cada carruagem, à espera de encontrar um lugar sentado ou, para ser sincero com o meu ego, uma cara familiar. Daquelas que se repetem como se incluídas na tabela de horários dos caminhos de ferro. Troca-se um olhar, um sorriso engolido para dentro e depois o maior dos afectos humanos – o da atenção...
“Ainda não acabou o livro de semana passada”. “Comprou um casaco novo”. “ Cortou o cabelo”. “Hoje dormiu pouco”. “Que musicas é que ele ouve no mp3?”
Hoje porém, depois de todas as portas dei comigo sozinho, na ultima carruagem. De repente, perante a impossibilidade gerada pelo ego de voltar atrás e recuperar atenção já debitada, sentei-me. De repente, percebi que em 5 minutos havia simbolicamente recapitulado a minha vida, até ao seu ponto actual...
Abandonei a atenção desprendida e pura dos meus amigos de infância e entrei noutra carruagem, com destino à universidade.  Depois entrei numa nova e abandonei a estação, já quase deserta. Os amigos que mais valorizavam os meus sonhos haviam partido e estava na altura de apanhar o comboio para o meu emprego.
Ninguém deve abandonar uma carruagem com lugar sentado, onde recebe atenção por aquilo em que se tornou.
 Aquilo em que te tornas é uma mistura incoerente do menino admirável que eras, do jovem que sonhavas ser e do adulto que queres ver lembrado. No entanto, a constatação de seres esquecido, estando presente, condiciona-te, faz-te querer conquistar novas memórias, leva-te a mudar de carruagem.
Abandonei a ultima carruagem e abri as portas de outra, inconformado com os olhares dos meus amigos presentes - que admiravam precisamente quem eu era. Como um míudo que estranhamente prefere abandonar o conforto dos cobertores e ir para a neve, também eu ansiava pela forma como poderia ser lembrado.  

Quinta-feira, 7h57
No altifalante do comboio ouviu-se: “Chegou ao seu destino” . Não há pior frase para quem parte indagado sobre o seu e bastante certo daqueles a que não  quer chegar.
Aos 32 anos percebi que provavelmente havia entrado numa carrugem vazia até ao destino. Onde não seria lembrado; qualquer que fosse o livro que estivesse a ler, o casaco novo que tivesse comprado ou corte de cabelo que ainda poderia fazer. Percorri toda a lista e  percebo agora que as musicas em mp3 são escolhidas em função do que lembram, nao do que fazem sonhar.

Sexta, 7h50
Fazer:
Reunião preparada com o patrão
Almoço de conveniência com patrocínio que não podemos pagar mas queremos seduzir
Trabalhar a base de dados dos produtos só com 3 cafés
E-mail para a Beatriz convencendo-a de que estou mesmo feliz por ter encontrado o amor da sua vida.

Marcar:
Lista de publicidade a garantir em Amsterdão
Almoço com os pais sem dinheiro para gasolina.
Reunião de aprovação de ideias geniais com mentes limitadas.
Café com a Beatriz no fim-de-semana.

Rascunho do e-mail (não esquecer escrever ao almoço!)
“Beatriz:
O melhor da vida é, sem dúvida, a capacidade que ela tem em supreender-nos, bem como a sua ironia deliciosa que muitas vezes (e para quem decide não acreditar no acaso) quase parece orquestrada...
Há também uma série de rumos que ela muitas vezes assume e que me intrigam quase tanto como fascinam. Falo das coisas igualmente surpreendentes que nos acontecem quando tomamos decisões díficeis ou radicais. Hoje, e com a história que a minha vida tem contado, acredito fortemente que muitas vezes somos testados, como que se a nossa coragem para mudar, decidir, revolucionar, fossem uma chave exclusiva para portas que a vida só nos abre se a conquistarmos.
Não me admiro portanto, com o que contas, com as decisões dificeis que tomaste e com as consequências incriveis e boas que acabaram por surgir quando, sem notares, abriste novas portas. Fico feliz por estares feliz e que não haja nunca embaraço em conjugar palavras como "gémea" e "alma",  pois do amor, tal como da vida, só podemos exigir... Tudo.”

Nota: ponderar se mando este e-mail... Escrevi-o para ela ou para mim?

O cinismo deste e-mail faz-me quase enjoar sempre que recapitulo as palavras que usei. Condenei toda a vida falsos profetas e aqui estou eu, com o pretenciosismo parolo de ser tomado como um. O enjoo acentoou-se e percebi que talvez fosse do comboio que parecia andar depressa de mais... Calculo que se seja de estar na carruagem da frente. Vou voltar para trás, talvez lá tudo ande mais devagar... Talvez alguém não repare que voltei.

 A vida surpreende-nos quando tomamos decisões dificeis ou radicais...

À minha espera estava um milagre... Na primeira carruagem que entrei, vi todos os meus amigos ainda presentes, de pé, à espera de me abraçarem. E fizeram-no, enquanto suspiravam saudades de quem eu me estava a tornar.
Continuámos a andar; alguém abriu as portas da outra carruagem e... Foi incrível, os meus amigos de universidade esperavam-me também, de braços abertos, dizendo-me o quão orgulhosos estavam dos meus sonhos presentes. Na ultima carruagem, já o comboio estava quase a parar, encontrei os meus pais e os meus amigos de infância. A minha Mãe distribuia sandes,  iogurtes liquidos e beijos a mim e aos meus amigos -  todos, sem excepção,  irmãos que ela me queria ter dado.  
No alitfalante ouviu-se: “Chegou ao seu destino.”
Desta vez era o certo.

Por entre o fumo e os destroços fechei o caderno que era um diário, uma agenda e um livro de apontamentos. Nas primeiras páginas senti-me indiscreto mas nas últimas, a cada palavra lida, senti cumprir o desejo de alguém que queria ser lembrado.
O relatório que eu também assinei, regista que o comboio perdeu os travões e descarrilou a 180km/h, não deixando sobreviventes. Vários registos proclamam que a hora da colisão foi às 7h40. Ninguém (incluindo eu) teve a coragem de testemunhar e assinar que último registo no caderno havia sido escrito às 7h50.






Yann Tiersen - - Summer 78

5 comentários:

  1. Bem... mais uma daquelas que me deixa numa agonia sufocante.

    PS

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  2. Bla Bla Bla... yada yada yada... tu sabes :) o costume... és um génio! continua a escrever e a alimentar a alma dos teus leitores!
    Obrigada!
    beijos*
    Mi

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  3. ...tantas palavras por sms e e-mails... Tanta amizade, tanto carinho. Tantas razões para escrever mais e mais...
    Que posso eu escrever acerca disto?
    Nada me ocorre.
    Digam-me o que querem que escreva e assim farei.
    Alto! No meio da (des)inspiração uma palavra surgiu... Independente da vossa vontade:











    "Obrigado".

    Não é uma história mas é uma boa palavra, não é?

    Filipe Lascasas

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  4. És o melhor irmão do mundo :)

    PS

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  5. Ai a desilusão daquilo em que não nos tornámos...mas, ainda assim, e enaltecendo o lugar-comum, a verdade é que como nós não há ninguém! :-) bonita leitura...como sempre!

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