quarta-feira, 9 de junho de 2010

Essência. (Entrevista entre um biólogo e um jornalista)



Recebi uma carta com o bilhete de avião e as indicações sobre local onde deveria encontrá-lo...

- Anda à procura de mim também, não anda?
- Não... – Respondi, com o sorriso que utilizo para premiar bom sarcasmo – Andava à procura apenas de si.
- Não diga isso... Nunca andamos à procura de uma só coisa...

Entrámos no táxi, deixei as malas no hotel e fomos a uma pequena cafetaria... Abri a mala, pousei o gravador em cima da mesa e comecei a entrevista...

Melitaea aetherie... Assim se chamava. Acreditava que ela era de origem Russa, mas não o sabia ao certo. A verdade é que a procurou por todo o mundo. Gastou todo o seu dinheiro, hipotecou a sua casa, perdeu o emprego mas nunca desistiu de a procurar.
Viu-a pela primeira vez da janela de um comboio que atravessava a Vagueira e apaixonou-se nesse instante. Contou-me que tinha previsto todos os detalhes do encontro: o lugar, a hora do dia, a roupa que tinha no corpo, até o número de nuvens no céu. Viajava quilómetros e caminhava durante horas até encontrar tal lugar... Um vale imenso, cercado por montanhas generosas com a sombra. Sentava-se numa rocha rodeada pelas tulipas vermelhas que ela mais gostava e esperava-a, até cair a noite.
Após milhares de lugares, somados a 48 meses, avistou algo no horizonte. Soube imediatamente que era ela. Os olhos do corpo desfocavam a sua imagem, mas os da alma avistavam-na com nitidez.
Ela aproximou-se com cautela, serpenteando as flores, parando ocasionalmente para falar com elas. Apesar da ansiedade, ele permaneceu inerte, contemplando-a durante horas. Depois levantou-se, pousou tudo o que tinha na mão e dançou com ela, perante uma plateia de tulipas vermelhas.

- Não teve medo de a perder com tanto tempo à espera, tanta hesitação?
- Não. Quando um sonho se concretiza devemos vivê-lo. Em toda a sua essência, respeitando meticulosamente todos os pormenores que o compõem. Sabia que ela não iria embora antes de dançar comigo. Era assim que o tinha sonhado.
- E depois?
- Bem, depois tirei esta foto, peguei na rede e apanhei-a. Ela esperou por mim.

Peguei na foto, perplexo e confuso...

- Então sempre a apanhou! Trouxe-a consigo?
- Claro que não – disse ele, num tom que não me deixaria presumir sarcasmo – retirei-a da rede com cuidado, segurei-a com um dedo e deixei-a partir.

A foto era real – comprovaram-mo na redacção. Qualquer museu de História Natural lhe teria oferecido milhões pela Borboleta e no entanto, após uma vida inteira de procura, ele tinha-a deixado partir...

- Eu sei, parece ilógico – respondeu-me com um sorriso – mas tente compreender... Eu tinha encontrado o que procurava. Não poderia impedi-la da sua própria procura. Além disso, poderá haver mais alguém que também um dia viva para a encontrar. Talvez depois de ler o seu artigo, quem sabe?! Todas as criaturas têm o direito de viver para encontrar ou, pelo menos, morrer procurando.

Da redacção ao comboio, do comboio até ao mar, do mar até casa... Todos os dias procuro novas razões para procurar.
Ás vezes encontro. Depois danço, sorrio e vivo meticulosamente todos os pormenores daquilo que sonhei. Abro as redes antes que os pormenores se esgotem e antes que se estrague o que é belo por ser efémero.

Um dia encontrei-o novamente, desta vez num bar, no Bairro Alto. Carregava um olhar vazio, perfeitamente comum e igual ao de qualquer um de nós - quando sentimos fugir das mãos algo que há muito procurávamos...
“Off the record” e com muitas cervejas na mesa, fiz-lhe mais uma entrevista...

- Explica-me este sentimento, a razão de estarmos bêbados e sem nada para procurar.
- Em momentos como este, dançamos sozinhos, em praias onde não tiras os sapatos e crescem tulipas vermelhas. Questionamos tudo o que deixámos fugir e a razão de uma nova procura demorar tanto tempo a chegar. Em momentos como este, os minutos de espera parecem anos e é em momentos como este que a maioria sucumbe.

Não sucumbimos. Não fechámos as redes – pelo menos esta noite. Rimos e bebemos mais - desafiando os anos a transformarem-se em minutos - enquanto ressacamos em cima de tulipas murchas.
Uma empregada com calças descaídas vai novamente oferecer-nos os tremoços e a cambalear, vamos embora com uma certeza (“off the record”):

Desde as viagens à lua até à contemplação do átomo... Ainda não percebemos que na essência da nossa essência, jaz a esperança de nunca encontrarmos nada definitivo, de nunca obtermos respostas finais.
Nascemos cheios de perguntas e vivemos para a procura. Quando nos é permitida uma boa morte, morremos velhinhos, cheios de perguntas.
Quando já nada mais houver para procurar e todas as perguntas tiverem resposta, a humanidade saberá, na essência da sua essência, que terá chegado o seu fim.

Segundos antes da nossa extinção como humanos, compreenderemos como Deus está e sempre esteve, triste, velho e sozinho. Sentado, talvez - numa rocha rodeada por tulipas vermelhas - à espera que cheguemos.

Filipe Lascasas

Para a Mi, que há anos me convence a escrever, mesmo quando não devo quero.




Norsev – Tokyo Girl + Fanfarlo - Comets

9 comentários:

  1. Linda a borboleta...eterna a procura de algo e quando não te procurei encontrei-te!
    BELO!!!

    Beijinhos

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  2. Obrigado!! agora vou acabar de beber as cervejas que o biólogo está ali a um canto sozinho... ;)

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  3. Belo como sp!!!! Adorei....
    Beijinhos

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  4. um beijinho para ti Anocas que tantas vezes me diriges palavras simpáticas. ...Uma simpatia mais cúmplice do que objectiva, confessa. :)
    Ainda assim a suficiente para também escrever para ti.

    beijinhos

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  5. Prima:

    Obrigado. No "tal" jantar levo-te (um) agradecimento.

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  6. Bonitas descrições, belas imagens... foi como mergulhar num mar de tulipas vermelhas, claro!

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  7. Obrigada uma vez mais por alimentares o meu vício! Claro que vou sempre convencer-te a não parares, mesmo sabendo que se trata de um pedido um tanto egoísta de quem já não passa sem uma lufada de ar fresco por escrito de vez em quando! :)

    Beijinho
    Mi*

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  8. Devias sempre escrever mesmo qd não queres... ainda bem que exsite a Mi.

    SJoão

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