segunda-feira, 14 de junho de 2010

Notas de dívida




Procurei pagar sempre as minhas dívidas. As dívidas tornam-nos vulneráveis, cobardes, fracos.

Nota nº 1
Existem na minha vida, duas pessoas a quem fiquei a dever…
Uma delas aguarda-me no cemitério para onde me dirijo. Deixei cair o telemóvel quando atravessava a rua, baixei-me para o apanhar e quando acabei de ouvir o barulho dos pneus, já o pobre desgraçado que me empurrara, ocupava o meu lugar na capota de um carro…
“Como se paga uma dívida de vida a alguém que morreu?” – Até hoje, a única pergunta a que os meus contabilistas não conseguem responder.

Nota nº 2
Falava de dois credores… O segundo desapareceu, fazendo valer a alcunha que recebeu na escola: “Gasparzinho” – o nome de um fantasma simpático de banda desenhada que líamos em pequenos. Quando fui para aquela escola ele já lá andava, pairando errantemente de um lado para o outro - com uma caixa de sapatos a sair da mochila, as mãos enfiadas nos bolsos quase até aos joelhos, ombros caídos, cor pálida e uns olhos pequeninos enterrados no crânio. Era um “triste” – na escola isso significa que não se pertence a qualquer grupo. Confesso que me inspirava pena, mais até do que a que tinha pelos miúdos do grupo dos “Gordos”, dos “Betos” e dos “Crânios”. Esses eram alvo de chacota e alguma violência gratuita mas pelo menos possuíam um grupo de semelhantes com quem partilhar lamentações e infortúnios… No entanto, se queremos parecer fortes na comunidade escolar (ou em qualquer outra), não devemos nunca mostrar compaixão. Tal como os outros, bati nos “Gordos”, insultei os “Betos”, ameacei os “Crânios” e fingi que ele não existia.

Sem dívidas, sem compaixão ou qualquer outra vulnerabilidade, tornei-me líder do maior grupo da escola. Fui também eleito “Chefe de Turma”, o meu primeiro cargo importante. O “Chefe de Turma” era detentor do poder exclusivo da distribuição dos pacotes de leite a cada elemento, da organização de sorteios de cadernetas e alguns cromos que uns sujeitos com fatos e gravatas baratas, deixavam gratuitamente à professora (com o intuito de que a cobiça dos não premiados atingisse os “bolsos” dos pais). Por fim, era responsável por regar diariamente as plantas e os feijões em algodão que púnhamos a crescer nas janelas para as aulas de ciência. Foi esta última tarefa que me fez contrair a primeira dívida… Atrasei-me depois do toque de saída a regar os feijões e o meu grupo abandonou a escola sem mim. Quando finalmente saí, deparei-me com o maior grupo de uma escola rival à minha espera. Tinham paus e pedras. Queriam “negociar” uma dívida de futebol mal acertada… Chorei, mais do que um “Gordo”, um “Beto” ou um “Crânio”, limpando as lágrimas a cada passo que dava. Senti pena de mim – estava vulnerável, era fraco. Quando me preparava para enfrentar a humilhação, o “Gasparzinho” surgiu como um fantasma à minha frente e gritou:
- A prova de que vocês não valem nada a jogar futebol é que não conseguem sequer apanhar um “lingrinhas” como eu.
Empurrou-me e desatou a correr. Passaram todos por mim, atropelando-se para o apanhar. Eu regressei a casa por outro caminho.
No dia seguinte, o “Gasparzinho” apareceu cheio de feridas na cara e nos braços. Passei todos os “recreios” a tentar falar com ele sem ser visto, mas ao contrário dele, estava sempre rodeado de pessoas. A forma de agradecimento mais conveniente que encontrei, foi guardar-lhe os pacotes de leite que traziam gravuras de aviões de guerra – os mais desejados. Passei também a dar-lhe mais dois pacotes por dia.
(O meu psicólogo comentou um dia, a respeito desta história, que eu estava a tentar comprar o silêncio do “Gasparzinho”. Não podia estar mais enganado… Ninguém acreditaria na história dele, uma história que confrontava a sua força imperceptível com a minha cobardia bem camuflada; um “fantasma” contra um “Chefe de Turma”.)
A mais pura das verdades é que a única altura do dia em que sentia algum conforto e paz interior, era quando, disfarçadamente, o via a colocar mais uma gravura de avião recortada na sua caixa de sapatos.

Nota nº3
Cheguei ao cemitério e fiquei surpreendido com o reduzido número de pessoas presentes no funeral. Imaginava que um sujeito com a coragem e o altruísmo para me salvar de um atropelamento, mesmo sendo ainda jovem, era alguém que já se notabilizava na sua comunidade… No mínimo, um herói para alguns e um exemplo para os restantes. No entanto, mesmo com a presença dos familiares mais próximos, não estavam cá mais do que dez pessoas.
Quando o Padre terminou a cerimónia, a mãe limpou as lágrimas, deu dois passos em frente, olhou-nos a todos e retirou de um saco de plástico uma caixa de cartão…
- Era nesta caixa que o Manuel guardava as coisas que lhe eram mais queridas. Vou entregar uma a cada um de vós porque sei que ele gostaria que ficassem com elas.
Apenas ergueu a cabeça quando chegou a minha vez. Fixou o meu olhar durante uns segundos e colocou-me na mão dezenas de gravuras de aviões,  estampadas em papeis de pacotes de leite.

Filipe Lascasas




Em 2001 ganhei a cicatriz no canto do meu olho direito a lutar pelo "Gasparzinho". 
A todos aqueles para quem tenho dívidas.




Noiserv - Tokyo Girl


4 comentários:

  1. Costuma-se dizer que dos fracos não reza a história, porém há registos sublimes que enobrecem as mais "pobres" das almas, através de gestos simples, que, por muito pequenos que sejam, marcaram uma vida ao ponto de a tornar possível. A vida não é feita de grandes actos, mas de pequenos grandes gestos como guardar os pacotes de leite com as gravuras dos aviões...Não se dá ouro nem dinheiro, dá-se algo de coração.
    A tua dívida está mais do que paga hoje.
    Beijos :-)

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  2. O comentário anterior diz tudo. Como uma história tão triste pode ser tão bonita...

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  3. acabo de ler um história e penso que não podes fazer melhor porque seria impossível e eis que... cá está mais uma fantástica!
    Fantástica como tu!

    P.S. Ainda me deves um café!

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  4. ...e depois disto fiquei sem palavras.

    Fico em dívida.

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