terça-feira, 13 de julho de 2010

Sete



1 - Levantou-se mais cedo do que ontem. Sentado na cama acendeu um cigarro e viu o fumo e a sua ponta iluminada revelar-lhe que ainda respirava, ainda estava vivo. Foi à casa de banho, bebeu leite com vodka e fechou todas as janelas porque já era dia. Deitou-se novamente e aguardou algumas horas para que o seu maior inimigo (à volta do qual todos se viam obrigados a girar) desaparecesse no mar.
Não mais se moveu, permaneceu inerte, procurando adormecer para não ouvir o barulho ensurdecedor do sangue a correr-lhe nas veias. De todos os órgãos que sabia possuir - dos livros que o obrigaram a ler - o coração era aquele que mais detestava, porque era o que trabalhava mais, antes de todos, sem nunca fazer uma pausa e questionar porque fazia apenas aquilo e não outra coisa qualquer.

2 - Acordou novamente e abriu as janelas, a noite havia nascido e o céu estava coberto... Um lindo dia portanto. Pegou no telefone e encomendou três garrafas de vinho que davam para comprar o automóvel que não tinha. Pousou o telefone e levantou-o novamente para encomendar comida para sete pessoas. Hoje faria outro jantar especial, por isso encomendou comida extravagante... "Quero algo que um mero mortal não possa comer regularmente" (...) "Caro e bom!"

3 - Pôs a mesa só com um prato decorado a ouro e talheres de prata. Abriu todas as caixas de comida e todas as garrafas. Comeu mais do que lhe apetecia e bebeu as garrafas até à última gota.

4 - Dirigiu-se cambaleante, à sua sala de espelhos. Deitou-se no chão e contemplou os seus prémios assim como ele próprio, de todos os ângulos, até o sangue lavar o seu cérebro de uma grande parte do vinho. Adorava-se. Todos se haviam rendido ao seu talento. Não percebia porque insistiam em girar à volta de um outro astro.

5 - Saiu de casa, a pé, em direcção a um bar que frequentava regularmente. Detestava rotinas, por isso sentava-se todos os dias numa mesa diferente, reservada especialmente para o efeito. No meio do fumo provocado pela respiração que teimava em não o abandonar, bebia lentamente um porto mais velho do que ele e olhava discretamente à sua volta. Sentia-se revoltado com os sorrisos dos outros, pela forma despreocupada com que insistiam em viver, sem nunca fazerem uma pausa e questionarem porque faziam aquilo e não outra coisa qualquer. Detestava as suas felicidades ignorantes (porque é um facto que a ignorância anda de mãos dadas com a felicidade). Detestava os que vivem ao sol e giram à volta dele. Invejava-os.

6 - Nessa noite, uma mulher lindíssima, vestida de forma miserável, sentou-se na sua mesa sem permissão...

- Disseram-me que o podia encontrar nesta cidade. Já fui a seis bares e quase desisti, mas finalmente encontrei-o! O meu marido é um grande admirador seu... Está a morrer sabe, de cancro... Já conseguiu viver mais do que os médicos queriam. Sei que aquilo que o faria mais feliz seria ter uma obra sua; abri-la com as suas trémulas mãos e contemplar pela última vez "as pérolas que brotam da sua genialidade quase profética", como ele costuma dizer. Infelizmente com os tratamentos ficamos quase sem dinheiro e não posso comprar nenhuma das suas obras. Venho aqui pedir-lhe se nos pode oferecer uma... Aquela, de Ophelia, no rio...

Ele fixou o olhar puro da mulher e percebeu que ali mesmo se encontrava a oportunidade rara da sua redenção. Naquele preciso momento poderia ser salvo e recuperar o bilhete para o paraíso que há muito havia perdido.
Pousou o copo na mesa, fixou o seu olhar impuro no da mulher e disse-lhe:


- Não!


Levantou-se e foi embora.

1...2...3...4...5...6... pecados mortais que cometia todos os dias. O sétimo acontecia antes de se deitar, quando desengatilhava a sua pistola e decidia viver o dia seguinte. Viver era a sua maior vingança. 

Filipe Lascasas


Philip Glass -  Why Does Someone Have to Die

5 comentários:

  1. Conseguiste retratar o egoismo puro e actual. Parabéns!

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  2. Quero mais! Já tenho saudades! :-)

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  3. Fui de férias mas nunca deixei de escrever! A próxima não sei se é muito boa mas é importante. Em parte já ta dedico a ti, pois, como sabes, é bom saber que sentem a falta das nossas palavras.

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