domingo, 1 de agosto de 2010

O diário da minha mãe.



Uma estatística parva afirma que setenta e cinco por cento das pessoas, refere a morte dos seus pais como o pior momento das suas vidas. Há um que pode ser pior e é precedido por uma anunciação que reza mais ou menos assim:

- A tua mãe está a morrer.

 A consciência  de que a morte está a acontecer – sem surpresas – e vais ter de assistir, sabendo-o. Esse é o pior momento da minha vida.
O meu pai teve a bondade de morrer rápido. Típico dele, do sentido prático e pragmatismo ressequido pela idade com que construiu a sua vida. Fez dela uma batalha calculada pela nossa felicidade e até na morte foi concreto.
A minha mãe é a raíz de todas as dúvidas sobre a vida. Nunca me deu respostas, nunca permitiu que a vida se apresentasse a mim de forma simples. Começou por me doar os genes da dúvida e da indagação; completou “o serviço” contrariando o meu pai no objectivo concreto de me tornar um “doutor bem sucedido”... Disse-me:

- Aceita lá esse cargo de director de jornal e continua a escrever.

O que me disseram de forma calculada e concreta foi:

- A sua mãe tem esclerose múltipla.

O que farias? Serias egoísta ou apenas um humano integrado nas estatísticas? Abdicarias de uma carreira com que sempre sonhaste? Farias todos os dias uma viagem de trezentos quilómetros  para mudar uma fralda que – além dos critérios olfactivos – há muito precisava ser mudada? Abandonarias o emprego que punha a comida no teu prato para dar à tua mãe uma papa intragável com medicamentos misturados?
Fiz-lhe as malas e acedi – de forma condescendente – aos pequenos caprichos que ela incluiu. Sentei-a no carro e conduzí-a ao lar de terceira idade “ Prado do Repouso” – o lar com o nome mais concreto e bonito que encontrei. Garanti – financeiramente – que a minha mãe teria toda a atenção “olfactiva” e alimentar necessária. Uma estatística (pouco parva) revela que noventa e nove por cento dos inquiridos, em situação análoga, procede da mesma forma.
Desfizemos as malas  no quarto, com a ajuda de uma enfermeira simpática que depois nos deixou a sós.

- Precisas de mais alguma coisa mãe?
- Chega-me o meu diário.

Na verdade, ela queria dizer “Diários”. Havia um caixote cheio deles. Durante toda a sua vida registara cada acontecimento com uma regularidade mecânica – uma das poucas coisas em que se assemelhava ao meu pai.

- É aquele. Está praticamente novo...

Arrancou do diário umas quantas páginas em branco e passou-mo para as mãos.

- Estas chegam-me para o que preciso de escrever a partir de agora. Leva-o contigo e usa-o. Deixa só umas últimas páginas para o teu filho.
Ela queria óbviamente que eu lesse o que lá tinha escrito. Foi o que fiz.
As primeiras páginas haviam sido escritas aquando o meu nascimento. A caneta foi a única a quem permitiu revelar as suas dúvidas sobre ter um filho...

“Serei egoísta ou apenas humana? O que devo fazer? Abdicar de uma carreira com que sempre sonhei? Acordar todos os dias para mudar fraldas que – além dos critérios olfactivos – há muito deveriam ter sido mudadas? Trocar um emprego por uma papa de bebé que ainda hoje me enjoa? (...)
Hoje meti-o na alcofa, entrei no carro e conduzi até uma agência de amas chamada  “Prado da Vida” – a agência com o nome mais concreto e tranquilizador que encontrei... Não fui capaz. Fiquei com o carro a trabalhar à porta durante uma hora. Olhei para ele e abandonei tudo. Decidi renascer. É isso que ele afinal representa – um renascimento. O mundo para o qual passarei a viver e a falar. Através dele viverei aquilo que não fui capaz de sentir. Através dele verei o mundo de outra forma, e ele irá soprar-me ao ouvido esquerdo, argumentos com a força de tufões - sobre a vida, sobre o mundo, sobre tudo.
Irei contrariá-lo (mesmo concordando com ele) e irei vê-lo passar de menino a homem. Viveremos debates intermináveis sobre a vida, sobre o mundo, sobre tudo – moderados pelo pai que (mesmo concordando com ele), será pai, e o fará calar.
Sempre que te calares, a força dos teus argumentos engolidos irá revolver a tua alma, irá fazer-te querer falar não com outro ou para um grupo, mas para o mundo. No dia seguinte acordarás mais crescido, mais homem passado de menino.

As restantes páginas do diário da minha mãe ficaram por ler. Voltei ao lar, fiquei uma hora a olhar para ela enquanto dormia e para um canto do tecto onde o sol ainda conseguia brilhar. Percebi que não há dívidas entre pais e filhos mas que a minha mãe guardava a hipótese do meu renascimento. Trouxe-a de volta a casa.

A deterioração progressiva da mente da minha mãe não foi mais que uma lenta e guiada viagem ao passado – ao nosso, como mãe e como filho.
Nos primeiros meses retomámos as nossas discussões filosóficas sobre a vida, sobre o mundo, sobre tudo. O meu pai já lá não estava –  mas à mesa. Essa era a única diferença em todos os outros jantares de duas horas ou mais, em que os argumentos da minha mãe sopravam como tufões no meu ouvido direito (que era onde ela se sentava). O meu  pai comia em silêncio, absorvendo o que íamos proclamando, tentando fazer sentido do que não cabia no seu mundo de matemática, contas certas e pragmatismo ressequido pela idade. De vez em quando, levantava o olhar para mim – quando me tornava mais efusivo nas argumentações, quando me precipitava a contrapôr os argumentos da minha mãe ou quando começava a falar antes de ela acabar...
Olhava sempre só para mim, nunca para a minha mãe. Era um moderador silencioso e – para minha raiva – parcial, como se apenas eu pudesse falar de mais, fugir das regras do debate ou exceder o meu “tempo de antena”.
O meu pai comía ao ritmo daquilo que a minha mãe lhe punha no prato. Depois levantava-se para ir buscar uma laranja. Depois analisava – uma última vez – o estado do debate. Olhava para mim mais duas ou três vezes e ía-se deitar.
Quando não era claro se o debate poderia converter-se em discussão, aguardava. Pousava a testa na mão, bocejava, esperava cinco minutos e então interrompia sem autorização:

- Vamos embora que já são horinhas.

Foram poucos os debates que se prolongaram perante a ausência do meu pai. Os que efectivamente prosseguiram, converteram-se em discussões, como se tal estivesse talhado desde o ínicio e o meu pai soubesse, desde o primeiro ou segundo olhar que me lançava. Nessas noites renunciava comer uma laranja. 
Uns meses após a deterioração da mente da minha mãe, retomámos os nossos debates. O meu pai já lá não estava – à mesa – mas persistia, como moderador silencioso, num canto mal estucado do tecto, onde o sol despejava ardilosamente uns últimos raios de luz antes de se pôr. Quando o sol desaparecia os debates continuavam, porque agora o meu pai permanecia por toda a sala, comendo uma laranja infinita, lançando olhares sobre os dois e desempenhando o papel que sempre fora o mais importante para nós: o de espectador.
Quem escreve diários – como a minha mãe – quem escreve, nunca fala sozinho, ou para outro, ou para um grupo – fala para o mundo. Quando o meu pai dizia:

- Vamos embora que são horinhas.

Era o mundo que nos mandava calar, e então quem escreve deve calar-se – quando o mundo nos mostra que não temos mais nada de interessante para dizer.
Os debates continuaram na nossa mesa em “meia lua” que – se quisessemos – abria para uma mesa redonda. O tampo fechado da mesa, do lado da parede, foi sempre para o meu futuro irmão e nunca se abriu. Penso muitas vezes se ele daria lugar a um prato para mais um espectador ou mais um orador. Penso em como eu e a minha mãe sentiríamos o nosso “tempo de antena” reduzir-se progressivamente, ou em quantas laranjas passaríamos a ter de comprar.
A deterioração da mente da minha mãe ditou sequencialmente, nos meses que vivemos, os temas dos nossos debates...
“Deus ou sinfonia do acaso” / “Coincidências ou destino” / “Livre arbítrio ou um árbitro ditador” / “Como um menino e uma menina trazem bebés ao mundo” / “Como e quando as meninas se tornam diferentes dos meninos” / “Como os meninos passam o cinto nas calças” / “De que lado irão estar sempre os botões de uma camisa”.
O meu pai, sempre presente, passou a olhar mais para ela – mais efusiva nas suas intervenções, mais precipitada a contrapôr a forma como eu lhe atava os sapatos, começando a falar antes de eu acabar de lhe dar banho. O meu pai estava lá e trazia-a ao colo comigo quando eu dizia:

- Vamos embora que são horinhas.

Deitava-se ao seu lado e ficava a olhá-la, passando de mulher a criança.

Agora, com a tua avó passada do estado de criança e convertida em pó de estrelas, conduzo por uma estrada estreita sem iluminação artificial, à procura da tua mãe.
Sigo uma placa enferrujada que diz “Sarrazola” e vejo o sol a pôr-se por trás de um campo de milho que quero acreditar não ter fim. Sigo em busca da tua mãe finalmente conformado (ou esclarecido) que nela, procuro também o lugar que a minha ocupava no mundo.
A tua mãe terá nascido entretanto e caminha agora mesmo entre uma multidão. Distingue-se de todos (ou da maioria) por uma fina camada de pó de estrela pousada nos ombros. De vez em quando sacode-se e arrepende-se, temendo ter levantado uma poeira. Mas é pó de estrela e não será nunca uma nuvem – será uma aura. Num desses momentos, irei ver a tua mãe entre a multidão, irei saber que é ela.
Sigo por uma estrada com iluminação natural e vejo um campo de milho que rezo não ter fim - para na parte do mundo que não percorri, haver ainda espaço para uma multidão e para ela.
A tua mãe é diferente da minha. Ainda mais bonita, com olhos de uma cor especial e argumentos só seus. Enquanto esperas nascer, ela irá soprá-los ao meu ouvido, o esquerdo ou o direito, não importa – pois ocupará na nossa mesa o lugar que escolher. A mesa não tem tampos mas estica – se quisermos – com uma tábua a meio.

Nunca escrevi diários até tu nasceres. Escrevi sempre para um mundo anónimo, no qual podia despejar sem controlo e sem remorsos, a arrogância dos meus argumentos.
Comecei a escrever este diário após nasceres, pois quem escreve está sempre a falar para o mundo e tal como o meu pai, tu serás agora o mundo para o qual eu quero falar. Com a tua mãe.


P.S.: Não vou escrever até ao fim. Deixei umas folhas em branco... Para ti.

Filipe Lascasas 


Antony and The Johnsons - "Hope There's Someone" + Sigur Ros - "Samskeyti" (for my mother) + Vanessa Quinones -  "Voices" (for yours)

5 comentários:

  1. Oh Filipe... não sabes se é bom... é lindíssimo! Obrigada por me levares para dentro das tuas historias, das tuas leves mas serias reflexões de moral, esse amor e desamor que retratas em todas as variantes, num todo debruado com detalhes primorosos, imagens deliciosas e não vou escrever mais para poder reler já!

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  2. Há muito que esperava uma nova crónica e hoje, finalmente, ei-la!!!! A balança entre pais e filhos só se equilibra no momento em que tu tiveres filhos...o dom da vida é o maior dom de todos!!! Tenho a certeza que os teus pais têm muito orgulho em ti, assim como eu tenho por ti. Esta tua história, para mim, é a melhor de sempre!!!!
    Beijos :)

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  3. Tenho a certeza que o teu Filho (ou Filhos) terá muito orgulho em ter-te como Pai da mesma forma que os teus Pais estão também cheios de orgulho!

    Adorei ler como sempre!

    Beijinho
    Mi

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  4. "Raistaparta" miúdo, isto é muito bom!

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