sábado, 20 de fevereiro de 2010

Pétalas de uma só árvore




(9h 00m 52 segundos): Uma amendoeira em flor deixa cair no chão as primeiras cinco pétalas.
(9h 01m 35 segundos): Luís, presidente de uma grande empresa, olha pela janela do seu gabinete e deixa cair todos os papéis que tem na mão. Não encontra sentido no que o rodeia, nas roupas que traz vestidas, nos objectos que decoram a sua sala do trono. Tira a gravata e sem dizer uma palavra, arranca no seu carro preto sem destino certo.
(9h 02m 36 segundos): Raquel, uma rapariga morena, procura desesperadamente uma faca de cozinha, por entre seringas usadas, limões espremidos e pratas amachucadas. Vai para a sala, atira contas por pagar e uma ordem de despejo para o chão e escreve uma carta em cima de uma pequena mesa cheia de marcas de cigarros. Após o ponto final, arregaça as mangas e a tremer, pousa a lâmina no seu pulso direito.
(9h 03m 12 segundos): Filipe, um menino com oito meses de idade, é abandonado num contentor cheio de trapos velhos.
(9h 04m 26 segundos): Carla, uma médica de urgências, acorda a chorar e decide faltar mais uma vez ao emprego. Caminha até ao quarto azul-céu do filho, com dois caixotes de cartão, para empacotar brinquedos que nunca foram usados. Olha para o seu ventre, deixa cair os caixotes e prostrada num berço, chora compulsivamente.
(9h 05m 06 segundos): Ricardo, em liberdade condicional, entra no seu carro vermelho decorado com fotografias de Carla, uma médica grávida que há oito meses atrás lhe retirou duas balas perto do coração. Vive amargurado, por Carla não reconhecer a sua cara desde que lhe limparam o sangue.
(9h 30m 06 segundos): um violador sai de uma drogaria com um pé-de-cabra e quatro metros de corda. Arranca num carro vermelho a grande velocidade, rumo a casa de uma médica.
(9h 31m 26 segundos): Um trapo enrola-se no pescoço de um bebé que aflito, agita-se e chora.
(9h 32m 40 segundos): Uma brisa forte corre por entre as árvores de um pomar e abraça uma amendoeira, levantando no ar milhares de pétalas.
(9h 33m 12 segundos): Uma rapariga morena fazia nascer do seu pulso duas gotas de sangue quando ouviu o choro de um bebé. Saiu de casa a correr e com uma faca que tinha na mão, cortou um trapo que apertava o pescoço do bebé quase sem ar. Pegou na criança, colocou-a cuidadosamente no banco de trás do seu carro, apertou-a com o cinto de segurança e arrancou rumo à cidade, para lhe buscar fraldas e comida.
(9h 44m 29 segundos): O pára-brisas de um homem vestido com um fato sem gravata, encheu-se de pétalas e ele parou o carro no meio da rua. Ao sair, viu uma chuva de pétalas abater-se sobre um pomar e caminhou para lá. Aproximava-se de uma amendoeira quando ouviu um estrondo, mas continuou a caminhar. Olhou para o céu, abriu os braços e permaneceu inerte, coberto por um manto de pétalas.
(9h 45m 13 segundos): Uma rapariga com um bebé no banco de trás do seu carro deparou-se com um carro preto parado numa curva e para evitar bater-lhe, desviou-se, colidindo com um carro vermelho que vinha em sentido contrário.
(9h 45m 14 segundos): Um homem chocou com outro carro e desmaiou, deixando a cabeça cair sobre a buzina do seu volante.
(9h 45m 15 segundos): Uma médica ouviu uma buzina, abriu a persiana de sua casa e viu dois carros a deitar fumo. Pegou no seu estojo médico e correu para lá.
Abriu a porta de um dos carros e uma rapariga caiu no chão. Impulsivamente mediu-lhe o pulso ensanguentado, mas após reparar no seu estado, percebeu que já nada mais podia fazer por ela. Correu para o carro cuja buzina tocava e viu um homem caído sobre o volante, com quatro metros de corda e um pé-de-cabra pousados no seu regaço. Partiu o vidro da janela e utilizou o pé-de-cabra para abrir a porta que estava encravada. Depois, transportou o homem com a cara tapada de sangue, para o meio da rua; fez-lhe respiração boca-a-boca, massagens cardíacas e conseguiu traze-lo à vida. Quando acabou de ligar para o Hospital ouviu um bebé chorar no primeiro carro. Desapertou-lhe o cinto e pousou-o cuidadosamente em cima da mala de um carro preto, parado no outro lado da rua. Verificou com rigor, se o bebé estava bem...
- “Tens muita sorte em não te teres magoado, meu menino lindo! Estás a precisar que alguém te mude as fraldas...”
Ouvia-se já o som das sirenes quando a médica levou o bebé para um quarto azul-céu de sua casa. Deitou-o num berço vazio e foi buscar fraldas a um caixote de cartão.
(9h 50m 07 segundos): Um agricultor viu no seu pomar um homem de braços abertos e olhos fechados, coberto de pétalas e estático, debaixo da sua única amendoeira...
- O que é que está aqui a fazer?
- Engraçado... Andei todo o dia a fazer-me essa mesma pergunta.

Acabei este relato com um borrão de tinta que me escorreu da caneta inerte. Fechei o bloco cheio de perguntas, paguei o café e meti-me no carro. A caminho de casa fui de repente iluminado por dois ou sete raios de sol que haviam conseguido furar as nuvens cinzentas dessa tarde. Faziam questão de morrer no mar, magnífico e majestoso, como só ele fica quando pensa que o sol, nesse dia, brilha só para ele.
Parei o carro no meio da estrada e caminhei para as ondas iluminadas. Ouvi um estrondo, mas continuei a caminhar...

Filipe Lascasas

Para Salvador Dominguez e para aqueles que carregam as mais árduas missões. 

7 comentários:

  1. Vou imprimir para nunca mais perder!
    Obrigada!
    Bjs
    Mi*

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  2. O relógio não pára, nem a vida seguida do imprevisto, do imponderável...magnífica crónica. É a melhor e a minha preferida!
    Beijos da prima

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  3. Muito bom, parabéns!
    Gostei tanto que não resisto a algumas criticas, que sei teres a humildade suficiente para decidires se fazem sentido:

    Tem mais atenção aos pequenos detalhes.
    Ex mais flagrante: "O que é o senhor está cá aqui a fazer?"
    Outro:
    "buscar fraldas": soa-te bem?

    rui

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  4. Soa...Já mudei. Obrigado!!!

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  5. É daqueles que não se quer parar de ler! Onde acaba o caus e começa a coincidência...demais!

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  6. Obrigada, por mais uma vez me surpreenderes com as tuas histórias, que têm sempre um muito de verdade.
    Bjito
    Sandra

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  7. Demais....Conclusão: não há coincidências; tudo tem explicação; nunca desistir; viver cada dia como se fosse o último...enfrentar cada desafio sp a sorrir pq devemos pensar q existe sp alguém bem pior do q nós!

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