quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Corre!


Era uma vez uma floresta encantada. Nela viviam todos os seres do mundo, ocupados nas suas vidas, a rir, a chorar, a fugir, a viver, a morrer…
Sim, a morte estava presente. O sofrimento também. Era uma floresta encantada não por tudo ser perfeito mas por ser real, por ser uma floresta da vida, onde a harmonia habita a uns metros do caos, a tristeza coabita com a alegria e por tudo de bom e de mau acontecer em função de um equilíbrio maior, superior a qualquer vontade…
Uma leoa caça uma mãe veado e alimenta os seus filhotes leões, um bebé veado chora a perda da sua mãe, uma flor nasce, uma flor morre, um filhote de coruja cai do ninho e morre na queda, um golfinho dá à luz, uma estrela nasce, outra cai e enquanto tudo isto acontece, os pássaros cantam, as hienas riem, os lobos uivam, uma árvore chora e a floresta vive… Plena de encanto.
Era uma vez um menino e uma menina que percorriam essa floresta. Carregavam enorme sacos às costas, cheios de sonhos enterrados, mágoas mal arrumadas, lágrimas a baloiçar e sorrisos que flutuavam à tona. Mas o que realmente enchia os seus sacos era o Passado. O peso do “Pretérito Perfeito” havia curvado as suas costas, obrigando-os a caminhar lentamente, com olhos postos no chão, fora do ritmo dos sonhos que jaziam no fundo dos sacos. De vez em quando revoltavam-se. Pousavam os sacos a rir e a chorar ao mesmo tempo, despejavam com fúria os verbos que mais lhes pesavam… “Chorei”, “Sofri”, “Perdi”, “Lamentei”, “Traí”,“Arrependi-me”, Menti, “Falhei”, “Desisti”. Esvaziavam o saco, enterravam os verbos, levantavam as costas e caminhavam, mas os verbos desenterravam-se por ordem cronológica e corriam atrás deles, como predadores de uma vítima que olha o horizonte e não encontra razões para fugir. Ao fim de uns minutos já estavam curvados de novo, a chorar e a rir ao mesmo tempo, com o peso de todos os anos que haviam vivido.
Num dia em que os pássaros cantavam, as hienas riam, os lobos uivavam e uma árvore chorava, chocaram um contra o outro e caíram, largando os sacos. De olhos postos um no noutro tentaram apanhar tudo do chão. Molharam-se nas lágrimas um do outro, devolveram sonhos que não lhes pertenciam, trocaram risos e soletraram os verbos que, um a um, voltavam sozinhos para os sacos.

- Deixa-me ajudar a carregar o teu saco! – Disse ele.
- És muito frágil, não conseguirás carregar o peso dos meus verbos!

Um filhote de coruja caiu do ninho e ele desviou-lhe a atenção. Um golfinho deu à luz e ela explicou-lhe porquê. Uma flor nasceu e ele ofereceu-lha. Uma estrela caiu e ambos fizeram desejos.
Encurvados e de olhos postos no chão caminharam, de mãos dadas, para não se perderem.

- Estamos numa floresta encantada, não achas que algo está para acontecer? – Perguntou ela.
 - Sim, definitivamente, algo está para acontecer… Estamos a chegar a uma ponte, um novo ano espera-nos na outra margem.
- Mais verbos? Verbos no Futuro?
- Sim. – Respondeu ele num suspiro.

O som da sua resposta atravessou a floresta e foi-lhe devolvido. Parou de caminhar, olhou para ela e disse baixinho:

- Vamos pousar os sacos e deixá-los nesta margem. Traz só os sonhos, para termos alguma coisa para comer.

Ela disse-lhe que sim com o olhar e ambos pousaram os sacos, muito devagar. Caminharam alguns metros e ela olhou para trás…

- O Passado soltou-se. Vai apanhar-nos!

Ele virou-se ,olhou o Pretérito Perfeito (ironicamente cheio de imperfeições) e disse-lhe:

- Já percebi que não adianta fugir... Vais sempre apanhar-nos. No entanto, não mais aceito carregar-te. Proíbo-te de nos barrares o caminho.

O Passado rugiu e atacou-os. Ele deu-lhe a mão e gritou:

- Corre!

Um veado que fugia parou e a leoa também. Os pássaros sustiveram os seus cantos, as hienas choraram, os lobos ganiram e uma árvore sorriu. Todos ficaram inertes a assistir à fuga dos dois. Eles correram pelas suas vidas, com os olhos fixos no horizonte, a rir e a chorar ao mesmo tempo. Por entre tropeções, quedas, carinhos e incentivos mútuos, lá atravessaram a ponte. Quando chegaram à outra margem ela deu-lhe um beijo na face e disse:

- Feliz Ano Novo!

Ele preparava-se para brindar a verbos no Futuro quando um som arrepiante o fez perceber que o Passado tentava atravessar a ponte…

- Os outros verbos vêm aí!
- Então corre... Corre!

Filipe Lascasas

À inventora (e pronunciadoras) do verbo  "Pedaçar" -  acto de juntar por meio de cola humana, partículas de corações e almas. (Um verbo ainda mais bonito quando pronunciado no Futuro)




Leonard Cohen - Waiting_For_the_Miracle

8 comentários:

  1. Que maravilhosa alegoria... e que perfeito esse pretérito perfeito cheio de imperfeições... não há onde se esconder do passado, mas pode-se sempre espremer um futuro do condicional.

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  2. Deixa-me dizer-te que fizeste encolher o pretérito perfeito de medo e encheste de coragem o presento e o futuro, se bem que incerto, para continuar além da floresta com mais garra ainda!!!!
    Esta história é das que mais me toca e muito importante para mim...tanto pelo "pedaçar" como pela longa caminhada...
    Palavras para quê? Não é necessário caro GÉNIO!
    Beijos

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  3. Fico feliz por mais alguém usar o "nosso" pedaçar de forma tão doce e verdadeira.
    O passado nunca nos irá deixar, mas não temos que o carregar como um fardo para o resto da vida, ele que se carregue a ele mesmo!

    Gostei :)

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  4. Pedaçar sem limites, sem fronteiras, sem barreiras...
    :)

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  5. ...e as palavras de todas vós (em prosa ou poesia) pedaçam-me sempre um bocadinho. Não parem! (Não é uma ordem, é um pedido!) :)

    Filipe Lascasas

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  6. :-)Pedaçar é mesmo um verbo que une! Fantástico!

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  7. Lascasas,

    mete este na pilha dos "a publicar"

    abração!

    rui

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  8. Linda! Linda! Linda! Linda! Mil vezes Linda...

    PS

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