domingo, 10 de outubro de 2010

Invalidez



- Abre o vidro por favor, prometo que não te faço mal.

Ainda olhei para a luz do semáforo, mas o vermelho estagnado obrigava-me a encará-la…

- Tenho fome, estou com frio mas apenas preciso de dinheiro para curar a ressaca.

Abri a carteira e dei-lhe todo o dinheiro que possuía. Ela agradeceu e o verde pousou o meu pé no acelerador.
Senti-me gozado. Horas antes, num almoço de negócios, divagava com uma convicção inabalável sobre o problema da mendicidade e da pobreza no mundo. “Parasitas” – foi a palavra que mais vezes usei. “Não querem trabalhar. Dão-se ao luxo da rejeição social e parasitam confortavelmente todos os que arduamente contribuem para a sociedade.”
Senti raiva e revolta, por isso voltei para trás. Tinha de exigir o meu dinheiro de volta.
Já não a encontrei nos semáforos. Abordei o primeiro parasita análogo que encontrei naquela zona e perguntei por ela.

- Olhos verdes, cabelo negro, pele suja, casaco vermelho de malha… e não, não te dou esmola!
- Ah! A inválida... Vá em frente. Encontra-a na primeira casa abandonada ao fundo da rua.
Entrei no antro e encontrei-a sentada, com uma seringa espetada no braço.

- Bem-vindo! Sente-te em casa! - Disse-me ela com um tom que assumi provocador.
- Vim aqui apenas para exigir o meu dinheiro de volta. Não entendo muito bem o que me levou a dar-lhe o dinheiro porque condeno pessoas da sua natureza mas agora exijo que mo devolva.
- Posso partilhar uma das doses, foi nisso que converti o dinheiro. A razão de me teres oferecido o dinheiro é simples… Por incrível que possa parecer és sensível à minha invalidez.
 “Invalidez”?! Assumi a palavra como o auge de toda a provocação iniciada nos semáforos. Preparava-me para manifestar também o auge da minha raiva sobre aquela criatura deplorável quando ela se antecipou…

- Não esse tipo de invalidez mais comum… Nasci com a incapacidade de mentir. Por isso, deixei de ter amigos depois da infância. Fui boa aluna na escola mas na universidade chumbei vários anos… No dia em que recebia uma bolsa de mérito, perguntaram-me o que achava do contributo dos professores para a minha aprendizagem e, inválida como sou, disse a verdade.
Anos depois, arranjei um mau emprego numa boa empresa. Fui honesta na entrevista mas apesar de tudo, tinha qualificações para lá trabalhar. A minha vida correu razoavelmente bem como operária e uns tempos depois, fui promovida para um lugar na administração da empresa e tudo mudou. A minha invalidez impossibilitava o desempenho de qualquer função de chefia.
Também estive quase para me casar... Mas deves imaginar o que aconteceu na altura de fazer votos que me exigiam como eternos.
Desde então vivo da caridade de pessoas como tu, sensíveis à verdade, dispostas a aceitá-la e a premiá-la.
Não me lembro se a deixei a falar sozinha. Meti-me no carro e voltei ao meu emprego. Durante todo o dia senti picadas atrás da nuca sempre que eu ou alguém mentia. À noite, quase com a nuca em ferida, fui à varanda procurar a cura para a insónia. A olhar o céu percebi que a nossa maior qualificação profissional e social é a capacidade de mentir ou, simplesmente, nunca dizer toda a verdade. O mundo tornara-me válido.

Procurei-a novamente. Levei-a a um café e pedi-lhe que apenas me ouvisse. Depois, despejei compulsivamente em cima da mesa trinta e dois anos de verdades escondidas.
A mesa caiu, ela chorou e eu gritei. As paredes do café começaram a tremer e o chão a rachar. Tudo o que estava em cima das mesas explodiu. As loiças, a comida e as garrafas saíram disparadas dos armários como se projectadas por canhões.
Todos os que lá estavam fugiram, cobertos de lixo e em pânico, enquanto um buraco, do tamanho do edifício, se abria até ao centro dos pecados da humanidade.
Enquanto caíamos, arranquei com todas as forças a minha máscara e a de todos os que comigo haviam participado no baile de máscaras burlesco e de aparências a que chamamos vida. 

Procurei-a, levei-a a um café, partilhei com ela a dose do dia anterior e fiz-lhe companhia, para vos contar a verdade.


Filipe Lascasas


Esta história – como a vida – é uma obra de ficção. Não sou inválido.



The Irrepressibles - The Tide 

7 comentários:

  1. Seria bonito se toda a gente se assumisse e tirasse a máscara...ai seria, seria!!!!
    Mais uma crónica única e que merece ser publicada :)

    Beijinhos

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  2. Fantástica!

    Uma bela crítica.

    No outro dia, depois da esmola ao sr. de casaco vermelho, também fiquei a pensar...

    PS

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  3. Se toda a gente tirasse a máscara...ainda no outro dia eu, a Lina e a Car falávamos da eventualidade das pessoas serem acompanhadas por balões com o que realmente pensam! Mais uma história em que se mergulha nos teus mundos!Repito o que deixei no meu blogue: A tua companhia e Fondant caseiro - irrecusável!:-)

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  4. ...se esses balões efectivamente existissem, a vida não era obra de ficção e não seria preciso partilhar doses para ouvirmos a verdade.

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  5. Obrigado pelos vossos comentários. Nunca como agora (e nos próximos tempos) foram/serão tão importantes.

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  6. De novo voltando aos balões... fazem apenas sentido se não formos inválidos e, a bem da verdade, a maior parte de nós não o é... a irrealidade aparece ao equacionarmos a possiblidade de sermos inválidos, de dizermos apenas e somente a verdade!

    Mas verdade, verdadinha, para mim, "a maior qualificação profissional e social" é a omissão. Socialmente aceitável. Mais leve na consciência...

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  7. Ah, esta história, como a vida, é uma excelente obra de ficção :)

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