segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Sala de Espera



Abri a mala para confirmar que tinha trazido mais de sete pijamas e o vento levantou no ar  trinta e três folhas, escritas numa antiga máquina de escrever. Corri uns metros atrás delas mas desisti, desprendendo-me de um sentimento de posse que se tornava cada vez mais relativo.
Nas folhas, voavam letras de uma vida preenchida de trabalho (relatórios criminais) e alguns desabafos – num diário que não visitava muitas vezes. Sentei-me e vi o meu passado voar, num espectáculo que preencheu o céu e me mostrou – de forma tão simples – o quão vulneráveis somos aos ventos da vida.
Quatro folhas pousaram à minha frente: um dos meus relatórios (sobre alguém que se fazia passar por médico - que nunca apanhámos) e três páginas do meu diário...


Folha nº1 (De um relatório – há quinze anos atrás)

A polícia concluiu não haver matéria para indiciação criminal e a Ordem dos Médicos – a mais interessada – prefere evitar possíveis embaraços. Disseram-me que se a imprensa ou a religião forem metidas ao barulho, estarei a atirar-me para um pesadelo institucional – ao  qual todos ousarão dar respostas perante a nossa impossibilidade de  responder a perguntas.
(Todos sabemos o que acontece, no mundo actual, a quem lança perguntas sem dar respostas, mesmo que erradas.)
Não temos suspeitos. As vítimas deste indivíduo não acusam qualquer tipo de drogas nas suas análises, além de cafeína e ácido acetil salicílico.
Todos relatam o mesmo: um médico de bata suja e  estetoscópio ao pescoço pergunta “como se sentem”. Após registar os sintomas, debruça-se na maca e da-lhes um abraço. Segura as suas mãos enquanto lhes dá o que agora sabemos ser uma aspirina. Depois, diz-lhes que vão morrer.

“A sua morte aproxima-se. Prepare-se para a abraçar.”

Pede-lhes cinco nomes e contactos das pessoas de quem mais sentem saudades. Promete – pela sua honra e experiência – aliviar-lhes o sofrimento.  
As salas de espera dos maiores hospitais de Lisboa tornaram-se caóticas, com pessoas vindas de todo o mundo, exigindo ver os seus entes queridos à espera da morte...
No entanto, o que torna tudo pior, são as consequentes reclamações de centenas de visitantes - exigindo indemnizações de viagens e tempo perdidos – perante a constatação de que os seus amigos e familiares não estão assim tão doentes e logo, não irão morrer (pelo menos nos próximos dias úteis).

Facto: os pacientes ficaram curados. Uns - mais psicologicamente voláteis - atribuem a sua cura ao abraço e à visão dos que mais amavam, à volta da sua maca. Outros, ao comprimido milagroso dado pelo falso médico.
Apesar de o caso estar arquivado, continuo, no meu tempo livre, a frequentar salas de espera em hospitais e clínicas. Ele, como que adivinhando os meus passos, nunca apareceu.

Folha nº2 (Do diário - há catorze anos atrás)

Atendi o telefone e do outro lado, um médico disse para não me preocupar. A Beatriz falou-me, a soluçar...

- Estava a correr no recreio da escola e caí, Papá.

Há já dois anos que ela não me chamava “Papá”. A mãe não atendia o telefone e por isso, o pai – eu – estava autorizado a  ir vê-la.
Foi na quarta-feira, faltavam dois dias para a visita oficial deliberada pelos tribunais.
Encontrei-a numa maca com o braço engessado. Disse-me que se portou bem na operação e não sentiu dores porque lhe deram um comprimido. Pediu-me que a abraçasse porque “o médico disse que tinha de o fazer”.

Folha nº3 (Do diário – há seis anos atrás)

A Beatriz telefonou-me, a soluçar. A mãe não tem telefone fixo para assuntos destes e ela precisava que o Papá – eu mesmo – fosse ter com ela, três dias antes da visita juridicamente autorizada.
Fui encontrá-la num banco de jardim, a chorar e a acariciar a cicatriz no braço - como sempre faz quando está preocupada e espera o pai vir salvá-la, num dia da semana.

- O João deixou-me porque gosta de outra.

Dei-lhe um abraço de uma hora e uma aspirina. Ela meteu-se no autocarro, duas horas depois, já sem dores.

Folha nº4 (Do diário – há um dia atrás)

Telefonei à Beatriz a soluçar. Dei um único número ao médico para ele marcar.

- Dizem-me que tenho de ser internado,Bia.

Ela empurrou a porta, trocou umas palavras baixinho com o meu médico de bata suja e começou a acariciar a sua cicatriz – uma antiga ferida que recordarei sempre como a marca da cicatrização com a minha filha de doze anos.


Ela chama-me. Chama-me “Papá” – só não o fez durante dois anos, há muito tempo atrás. Vou atirar esta e as outras quatro folhas ao vento. Vou ter com eles, todos eles.
Compreendo agora que não é preciso um curso de medicina para saber que as mais agonizantes doenças que padecemos, curam-se com um abraço, uma aspirina e a companhia dos que mais amamos.
Quando estas folhas pousarem à tua frente, se estiveres com ressaca de vida, toma uma aspirina e vai... Procura a companhia dos que mais amas e deixa que te abracem. Abraça também todos os que ainda poderão vir a amar-te.
Não desperdices o teu tempo na solidão, pois estarás numa sala de espera onde apenas morte virá, um dia, para te abraçar.

Filipe Lascasas

Para ouvir com: “Vaporous” - Elsiane

4 comentários:

  1. Quantas e quantas vezes tudo seria bem mais simples de se resolver com um abraço, um sorriso..

    Beijos :)

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  2. Bons conselhos numa belíssima estória!

    PS. Andei a ouvir Elsiane durante uns tempos! Soube-me bem ver aqui (mais) este bom conselho

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  3. Lascasas,

    Para mim, uma das tuas melhores.
    PARABÉNS!!!

    rui

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  4. ...e é como um olhar... Muitas vezes "vale mais que mil palavras"...!

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