sábado, 16 de janeiro de 2010

Génesis




Ao primeiro dia...
A Humanidade recebeu a mais horrível notícia desde a sua criação: o Sol tinha morrido.
Morto e apagado, caía agora desamparado por entre um sistema que outrora fora seu. Como se tal não bastasse, uma estranha e mórbida combinação de posições astrais determinava que o Sol se despenharia no nosso planeta, porventura o único para o qual tinha valido a pena brilhar.

Ao segundo dia...
Os cientistas evocaram a grandiosidade do Homem e calcularam as hipóteses de sobrevivência. Os religiosos evocaram a fé e rezaram pela salvação. O resto do mundo parou e aguardou instruções de ambas as partes.
Quando faltavam trinta minutos para o fim do segundo dia, os cientistas anunciaram que pelas leis da física, iríamos morrer. Os religiosos anunciaram que pelas leis de Deus, a extinção era inevitável.

Ao terceiro dia...
O mundo entrou em depressão. As ruas estavam desertas e as prateleiras de anti-depressivos e bebidas alcoólicas, completamente vazias. Esporadicamente ouvia-se um grito de desespero, uma lamentação, um choro, mas a maior parte do tempo o silêncio era total, quase aterrador. Parecia até que a própria Natureza se tinha apercebido da eminência do seu fim...  As folhas das árvores quase não se mexiam, os pássaros não cantavam e as pessoas que continuaram a trabalhar nos zoo's de todo o mundo juraram que todos os animais se recolheram nas jaulas, recusando sair cá para fora.

Ao quarto dia...
Passava apenas um minuto da meia-noite quando um casal de namorados com setenta e sete anos ousou evadir-se do lar de terceira-idade onde estava aprisionado. O velho debruçou-se sobre a janela de um carro abandonado, no meio da outrora, avenida mais movimentada do Porto. Empurrou para as entranhas do rádio uma cassete que trazia no bolso, aproximou-se da velha e perguntou:
- A menina concede-me uma última dança?
O silêncio abraçou a melodia da valsa que os velhos dançavam e deixou-a atravessar o mundo inteiro (à velocidade do som). Os deprimidos vieram à janela e sorriram. Depois, um a um, desceram às ruas do mundo e dançaram também.

Ao quinto dia...
O Planeta assistiu à maior festa alguma vez celebrada pelos seus habitantes. De todos os continentes surgiam relatos de cães a beijarem gatos, leões a abraçarem zebras. tubarões a dançarem com focas. Em Israel derrubaram o muro das lamentações e no mesmo local construíram um palco a que chamaram "muro das celebrações". Nele tocaram noite e dia, artistas Palestinianos e Israelitas, juntando num só repertório temas hebreus e árabes. Apenas os temas religiosos foram censurados...
Em Cuba dancou-se ao som de Rock n' Roll  e nos Estados Unidos fumaram-se charutos cubanos. Os Brancos honraram os Negros e os Negros perdoaram os Brancos.
Todos os seres que se conseguiam mexer, dançaram. Os restantes cantaram.

Ao sexto dia...
Não há registo de se ter visto, nas ruas e avenidas do mundo inteiro, uma só bandeira de qualquer nação. Contudo, em Amesterdão, um grupo de pintores e poetas pintou nas paredes da cidade uma bandeira com todas as cores conhecidas, a que chamaram: "Bandeira da Humanidade". Nela estava escrita uma frase:
" A nós, Humanos, foi dado um corpo. Nós criámos o Espírito e imortalizámos a Alma. É esse o nosso legado."
As companhias ferroviárias, rodoviárias e de aviação anunciaram em todos os países, viagens gratuitas para qualquer lugar. Sem nunca pararem de dançar, todos os amigos se abraçaram, todos os familiares se juntaram e todos os perdidos se (re)encontraram. Cozinharam-se as melhores iguarias, fizeram-se as melhores sobremesas e decoraram-se as mais belas árvores de Natal.
As operadoras de telecomunicações bateram os recordes de SMS's enviadas num só dia, como é óbvio. No inicio do dia, sete em cada dez mensagens continham a palavra: "desculpa". No fim do sexto dia, nove em cada dez mensagens continham a palavra: "obrigado".

Ao sétimo dia...
Deus, cansado de descansar, pensou em descer à terra para julgar os vivos e os mortos, enquanto havia vivos. No entanto não o fez...
Momentos antes do sol cair, já não havia pecadores e santos, defeitos e virtudes, ódios e amores... Apenas um mundo unido e alegre que se despedia do universo, celebrando em apoteose, a mais agridoce dádiva da Criação: a consciência de existir.

O Universou fechou os olhos e ouviu-se um "Big Bang".

Filipe Lascasas

6 comentários:

  1. Confesso que de início estava um pouco melindrada com o tema, mas digo já que está soberbo, genial!!! Adorei!!!
    Parabéns!!!

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  2. Obrigado a todos.

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  3. Está fantástico! :)
    Achas que consegues espalhar de forma credível a mensagem de que o mundo vai acabar?
    Era um começo...

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  4. Posso tentar, mas duvido que as companhias aéreas ofereçam bilhetes... :)

    Cá vai:

    O mundo vai acabar!

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  5. Obrigada! :)

    Não era pelos bilhetes...o meu pai trabalhou na TAP ;)

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