quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

O elefante abandonado e o coelho confundido com um leão




Oceano Atlântico, 12 de Setembro de 2009

Contou-me que antes do naufrágio era alguém importante. Navegava no maior navio do mundo quando o oceano, de novo cansado com a arrogância de pequenos seres sem barbatanas, os decidiu afundar.
A minha presença era para ele um privilégio. Quando se está só, numa ilha apenas povoada por outras espécies, qualquer semelhante é bem vindo. Abalam-se preconceitos de côr, credo ou feitio. Apenas porque tudo se torna linear: a raça é a humana, o credo é o da sobrevivência e as vontades são comuns.

No Jardim Zoológico de Budapeste encontrarás um elefante acarinhado pela multidão. É o único elefante presente. Foi recolhido numa savana em Àfrica, onde após ser excluído da manada, esperava conformado, a sua morte.

Estavamos numa ilha banhada pelo atlântico que mais tarde me revelaram chamar-se Lisboa.
No meio da selva, entre presas e predadores, a camuflagem é tudo. Por isso, conservávamos imaculadamente limpos, dois casacos, duas calças, duas camisas, duas gravatas e dois pares de sapatos. Tudo recolhido nas traseiras de uma loja que vestia predadores de consumo - sem tolerância para botões ausentes, linhas soltas ou manchas em couro.
À hora de almoço íamos para a zona de restauração de um centro comercial, perfeitamente camuflados.

Quando um predador caça mais do que realmente precisa para se alimentar, é, meramente, um assassino. Um abutre, perante uma caçada de excessos, deixa de ser um necrófago e torna-se águia real.

Esperávamos que as bestas se alimentassem em frenesim e apoderávamo-nos dos seus tabuleiros abandonados - com a fartura de uma caçada tão vasta quanto desperdiçada. Eramos águias reais, por entre hamburgueres, batatas fritas e bordas de pizza deixadas de parte como ossos indigestos. Nem mesmo quando se comem os ossos se é necrófago, especialmente ossos de farinha e água  - que tantas vezes em vez de pizzas fazem pão.
Ás sete da manhã,  jantávamos – o momento favorito do meu dia. À camuflagem dos fatos, juntávamos duas malas de viagem. A ausencia de uma  roda em cada,  obrigava-nos a transportá-las à mão, mas o nó das nossas gravatas tornáva-nos (entre outras coisas) em dois senhores que preferiam o civismo de transportar o peso dos seus pertences a fazer barulho no chão. Aguardávamos um momento de distração na recepção de cada hotel e fingíamos sair do elevador. Depois seguíamos o cheiro do café, até a uma sala (para nós sempre imponente) onde nos esperava o mais luxuoso dos pequenos almoços. O nosso apetite voraz era castrado pela discrição mas ainda assim, comíamos até não poder mais. Era, porém, uma refeição com regras... Duas, três dentadas no máximo e depois, sorrateiramente, depositávamos a comida na  nossa despensa - que todos veriam como mala de viagem.  
Era o momento favorito do meu dia. Ninguém nos rosnava, os predadores deixávam-nos comer com eles e no fim, ainda nos acenavam, pedindo para voltarmos.

Como em todas as ilhas desertas, há momentos em que a comida escasseia, momentos em que faz frio e nem os predadores ousam sair à rua. Os hoteis esgotam-se, os fatos ficam sujos.


A 3 de Dezembro de 2009 fiquei doente e o meu fato irremediavelmente sujo.
Ele saiu para buscar comida, com o seu fato (ainda limpo) vestido.

Até os leões têm predadores, especialmente quando são encontrados sós.

Ao início da noite, quatro hienas acercaram-se dele e pediram-lhe o seu dinheiro, a sua mala. Encontrei-o numa viela com a sua camisa favorita – só lhe faltava um botão – tingida de sangue...
- Desculpa, acho que não vais conseguir recuperar a camisa.... Eles pensaram que eu era um leão.
Fechou os olhos e deixou cair no chão a sua mala aberta, com croissants e pães de leite sem qualquer dentada.
Dei as dentadas que consegui, vesti o seu fato e caminhei até à porta de um hospital.
Rasgaram-lhe o fato mas ele já me havia salvo a vida.
Um anjo de olhos grandes e azuis acordou-me. Aqueceu com um bafo o estetoscópio antes de mo encostar ao peito, sem perceber que o meu peito havia aquecido no momento em que a vi. Perguntou o meu nome...
- O meu nome é Filipe e naufraguei numa ilha deserta.
- O senhor está num hospital e aparenta ter sofrido um trauma grave que afectou o seu discernimento e memória.
- Talvez a memória, não o discernimento... Neste momento sei que não estou morto e no entanto, estou na presença de um anjo.
Ela corou e deu-me a mão. Não mais a largou.

Filipe Lascasas

3 comentários:

  1. Dou por mim à espera de algo teu para ler... e nunca me desiludo!
    Obrigada!
    Bjs
    Mi

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  2. Isto está a tornar-se num vício!!!
    Obrigada lascas, por me proporcionares momentos tão mágicos, mesmo estando longe.

    PS

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